terça-feira, 31 de março de 2009

As divertidas aventuras de Vicky e Cristina em Barcelona



Chama atenção que o título do filme de Woody Allen não seja algo do tipo “Vicky e Cristina em Barcelona”, mas “Vicky Cristina Barcelona”. O primeiro título nos remeteria às alegres aventuras de duas personagens naquela cidade (que é uma forma como o filme pode ser lido); já o segundo, ao colocar os três nomes lado a lado, traz a cidade para o mesmo plano das personagens centrais, sugerindo uma outra leitura, que considere Barcelona como protagonista do filme.

O primeiro dado a considerar sobre a cidade de Barcelona é que ela representa um modelo europeu de cidade, em oposição ao modelo norte-americano de cidade.

Modelo norte-americano e europeu de cidade


O modelo norte-americano começou a ser definido por volta de 1900, quando surgiu ou quando se generalizou o emprego de inovações técnicas como siderurgia, ferrovia, eletricidade e motor de combustão interna. Assim, edifícios construídos com vigas de aço podiam ser cada vez mais altos, telefones e elevadores possibilitaram a instalação de residências e escritórios em andares elevados, vias asfaltadas (adaptadas para uso de automóveis e com metrô por baixo) passaram a cercar quarteirões verticalizados. Tais inovações foram adotadas com especial vigor nos Estados Unidos, onde não existia uma urbanização tão intensa quanto na Europa, havendo, portanto, mais espaço para a construção do novo. Dessa forma, espalhou-se o modelo norte-americano de cidade em que o centro é verticalizado e ocupado por edifícios de escritórios, com a população se deslocando cada vez mais para áreas periféricas da cidade, onde se concentram as habitações.

Após a Segunda Guerra Mundial, o processo de esvaziamento dos centros das cidades e criação dos suburbs se acelerou nos Estados Unidos. O desenvolvimento do transporte automobilístico e a crescente prosperidade da classe média norte-americana, viabilizou o sonho de uma ampla casa suburbana, cercada de muito verde e com fácil acesso para todos os lados através de uma vasta rede de highways, em que circulam os diversos automóveis que a família pode possuir. Além disso, em pleno contexto da Guerra Fria, o governo dos Estados Unidos passou a estimular tal solução urbanística, na medida em que a baixa densidade demográfica dos novos subúrbios tornaria a população do país menos exposta a um massacre, no caso de um conflito nuclear. Assim, o centro vertical e comercial da cidade passou a ser cercado pelos bairros cada vez mais horizontais destinadas à residência.

A Europa viveu essa inovações com menos vigor. A existência de cidades antigas, com centros históricos centenários, desestimulou a construção de grandes arranha-céus, que significariam a descaracterização ou mesmo destruição de áreas insubstituíveis. Edifícios antigos foram adaptados a novas funções e quando surgiu a necessidade de construção de grandes espaços para escritórios, sob a forma de arranha-céus, eles foram autorizados apenas na periferia (em Paris, o bairro de La Defénse; em Londres, as revitalização do East End). Dessa forma, algumas grandes cidades européias invertem a lógica da cidade norte-americana: o centro permanece relativamente horizontal, e a periferia vai se verticalizando.

Barcelona representa um tipo específico de cidade européia: a cidade mediterrânea. De fato, nas regiões quentes das vizinhanças mar Mediterrâneo, desde há muito surgiu a tendência de deslocamento das classes mais abastadas para as colinas que cercam a cidade. Mais frescas e espaçadas, a casa ou villa na colina passou a ser símbolo de riqueza ou mesmo ostentação, de Barcelona a Florença, de Lisboa a Atenas.

Os dois modelos de cidade e o filme

No modelo norte-americano, o centro da cidade é morto ou vazio, exceto nas horas de trabalho. Ao mesmo tempo, nos suburbs, o contato entre as pessoas é rarefeito: o isolamento das casas, a atomização provocada pela ênfase no uso de automóveis, tudo contribui para que os encontros entre pessoas sejam pouco freqüentes. Mesmo os encontros sociais em espaços coletivos (restaurantes, pubs ou bares, tão típicos da cultura européia), são dificultados pela eterna dependência do automóvel. Já o modelo europeu parece multiplicar os encontros, seja no fato de que o “viver junto” seja realmente praticado, seja na ênfase ao transporte coletivo e à valorização dos espaços públicos em oposição aos privados.

Oras, o filme que abordamos gira em torno de encontros. Vicky e Cristina e encontram Juan Antonio em um galeria e, na mesma noite, voltam a encontrá-lo em um restaurante. Mais tarde, em plena angústia emocional, Vicky topa com Juan Antonio no Parc Güell. Já no final do filme, Judy articula um novo encontro entre os dois. Aliás, a vida de Juan Antonio gira em torno de encontros, há toda uma sociabilidade expressa, por exemplo, nas rápidas cenas de mesa de bar com Cristina ou Maria Elena e amigos.

Já a sociabilidade norte-americana se dá em outro contexto. Doug e Mark falam de seus encontros para o golfe ou para partidas de bridge, em episódios sempre impregnados de relações profissionais. Mesmo os encontros casuais (parece que os americanos se tropeçam uns nos outros pelas ruas das cidades européias), são sempre com “colegas da firma” ou “amigos do escritório”. No ponto culminante de um desses encontros enfadonhos, Vicky suspira ouvindo um violão melancólico, enquanto na mesa fala-se sobre a importância de estar conectado à internet 24 horas por dia.

Porém, a diferença mais marcante entre as duas formas de sociabilidade vai além dos meros encontros provocados pela cidade ou pelos modos de vida diferentes na Europa e Estados Unidos. Os personagens europeus apresentam uma estranha compulsão em dizer a verdade, o que provoca perplexidade nos interlocutores norte-americanos e também alguns dos momentos mais cômicos do filme. Lembremos o primeiro diálogo de Vicky, Cristina e Juan Antonio. Já os americanos não conseguem dizer a verdade: não mentem, mas limitam-se a dizer não-verdades. Os americanos do filme se relacionam através de jogos sociais, insinuações, do cumprimento de um etiqueta social até certo ponto rígida. Em um caso extremo, Judy, a anfitriã de Vicky e Cristina, tem toda uma vida não verdadeira; e ela adverte Vicky para que não caia no mesmo erro. Mas há ainda uma diferença fundamental entre os personagens norte-americanos e europeus no filme: os europeus produzem arte, enquanto os americanos demonstram uma incapacidade brutal de produzi-la e, muitas vezes usufruí-la. Cristina só se transforma em fotógrafa pelas mãos de Maria Elena.

Se os diferentes modelos de cidade nos chamam atenção para as diferenças entre a cultura européia e a norte-americana, o comportamento dos personagens do filme na cidade de Barcelona leva essa reflexão para outro patamar. Na verdade, menos importa a diferença entre europeus e americanos, mas a contraposição entre, de um lado, produzir arte/dizer a verdade e do outro indiferença à arte/impossibilidade de ser verdadeiro. Portanto, o filme gira em torno da arte e seu significado: existe uma verdade a ser dita pela arte. Ou ainda, o filme, enquanto obra de arte, tem a obrigação de ser verdadeiro, e a primeira verdade que a arte deve afirmar é uma verdade sobre si própria e seu significado.

Por volta de 1900, em pleno turbilhão urbanístico da Segunda Revolução Industrial, o austríaco Gustav Klimt pintou a sua Nuda Veritas, a verdade nua. A imagem, bidimensional (portanto conceito, e não representação do concreto) mostra uma mulher nua, cercada de símbolos primaveris (flores, expressando a esperança no renascer) e segurando um espelho voltado para frente. No espelho, nenhuma imagem: cabe à arte a construção da verdade.

Se arte é instrumento que nos permite dizer a verdade, resta uma pergunta: será que ainda vale a pena ? O pai de Juan Antonio escreve poemas, mas os destrói por que não merecem ser lidos. Talvez não haja mais lugar para a verdade no mundo, talvez o modelo norte-americano tenha vencido.



segunda-feira, 23 de março de 2009

Sils-Maria blues



Sempre me intrigou porque as pessoas adoram citar Nietzsche. Talvez porque seja aparentemente fácil, seus livros trazem páginas e páginas de aforismos em frases rápidas e bem humoradas. Veja, por exemplo, o capítulo quarto de Além do Bem e do Mal – agora em edição de bolso, na banca mais próxima de sua casa – contendo nada menos que 122 frases supimpas, que abrilhantam qualquer festa, impressionam em qualquer colóquio. Claro, tal “facilidade” de citação, bem como a linguagem carregada de metáforas usada pelo bigodudo filósofo acabam por desviar a atenção de um pensamento vibrante e nem sempre fácil de acompanhar.

Porém, vejo dois outros fatores que levaram Nietzsche a se tornar um filósofo pop. Em primeiro lugar, aquela estranha tendência que as pessoas têm de identificar genialidade com loucura. A foto mais famosa de Einstein mostra-o pondo a língua de fora, em gesto bem pouco aceitável para um velhinho de cabelos brancos. Em “The Big Bang Theory”, o comportamento das pessoas geniais é no mínimo exótico, e todos rimos com as esquisitices e pouco apego às convenções demonstrado por Sheldon, Leonard et caterva. É como se o exotismo fosse sinal externo da genialidade, e não poucas pessoas assumem comportamentos bizarros querendo demonstrar uma pretensa sabedoria. Oras, Nietzsche teve problemas mentais sérios, e muitos dos seus textos sugerem um equilíbrio mental precário. Os capítulos de um de seus últimos livros, Ecce Homo, tem títulos bem pouco normais: “Por que sou tão inteligente”, “Por que escrevo tão bons livros”.

Em História da Loucura, o francês Michel Foucault (leitor atento de Nietzsche) sugeriu que para muitas pessoas a experiência da loucura é vista como possibilidade de entrar em contato com um conhecimento que escapa ao racional. Na des-razão se esconderia um saber oculto e, ao mesmo tempo que rimos do louco, sabemos que ele é capaz de enunciar as verdades mais claras. Citando episódio célebre: em 1807, na fuga de Lisboa, a rainha de Portugal, demente, não parava de perguntar: “Mas por que corremos tanto ? O povo vai pensar que estamos a fugir !”

Em segundo lugar, Nietzsche é alemão. Por aqui, a língua é ignorada pela maioria, e conhecê-la parece ser um feito grandioso. A esquisitice das palavras e os sons guturais, bem como o acúmulo de consoantes rudes que mal usamos em português (K e W, principalmente) e a escassez de vogais; tudo faz com que a língua pareça ter uma complexidade infinita. Veja a palavra “Nietzsche”, por exemplo, com essa magnífica sucessão de T, Z, S, C e H. Um nome quase tão complexo quanto Wittgenstein, mas muito mais fácil de citar: basta dizer “nitx” e pronto. Em São Paulo, até dizemos “nitxi” (italianado, “nicci”; no Sul os gaúchos dizem “ni-tche”).

Digo isso para falar de um conceito presente em Nietzsche e que costuma ser citado a torto e à direito, nem sempre com a compreensão devida. Trata-se do Eterno Retorno. O enunciado é aparentemente simples: como no budismo, a morte não é o encerramento da vida e, ao contrário do cristianismo, a morte não é a abertura para a vida eterna. O que acontece é que renascemos para uma nova existência finita, que ao se encerrar começa de novo e assim em um ciclo eterno. A vida não é linear, mas circular, ou melhor, em espiral: seguimos em frente retornando sempre ao mesmo ponto, e a vida dentro da qual renascemos é a mesma que acabamos de deixar.

A abertura para o misticismo é evidente, bem como a possibilidade de enveredar pela discussão falaciosa acerca de “destino”. Porém, o que deve ser ressaltado é o sentido ético do Eterno Retorno: nossas escolhas devem ser muito bem pensadas porque serão repetidas, nossa vida deve ser bem vivida porque voltará a ocorrer. Independente de existir ou não um Eterno Retorno, e na impossibilidade mesmo de prová-lo, resta a alternativa de apenas ter “fé” nessa idéia, de acreditar pura e simplesmente no Eterno Retorno. A justificativa ? Acreditar no Eterno Retorno significa dar à vida um sentido imediato, independente de grandes saberes ocultos (ou religiosos) ou justificativas metafísicas mais complexas, e só isso já basta para que passemos a acreditar na sua existência. Ou, “na existência” pura e simples.

O ponto é que uma idéia aparentemente carregada de misticismo e espiritualidade nem sempre deve ser tratada como tal, melhor seria se a enxergássemos por outro ângulo. E aqui chego onde queria. Muitas vezes tomamos o discurso religioso como uma balela sem fim (ainda mais nesses tempos em que a Igreja Católica se dedica a causas vibrantes como excomunhões e condenação ao uso de preservativos), porém há algumas coisas que não deveríamos simplesmente ignorar. O professor Luis Felipe Pondé, que escreve na Folha de São Paulo às segundas-feiras, nos ajuda a pensar a Igreja ou a religião de uma forma diferente: costumo discordar de cada vírgula que escreve, mas não consigo deixar de lê-lo. E tenho vontade de rasgar o jornal e fazê-lo engolir cada pedacinho, cada vez que ele perturba minhas convicções iluministas. Porém, convenhamos, não se pode esperar nada melhor de um texto.

Na Idade Média, as heresias pululavam. Uma das minhas preferidas é aquela que considerava a dualidade do universo conforme expresso na oposição entre o Bem e o Mal. O homem, ser inferior, era capaz tanto de um quanto de outro e, diante da finitude do mundo, todo o Bem e todo Mal de que o ser humano era capaz na terra era limitado. É como se houvesse um “estoque” finito de Bem e Mal sobre a terra, esperando para ser realizado. Para maior glória do senhor, esses hereges decidiram esvaziar rapidamente o estoque do Mal terreno, cometendo todos os atos de maldade possíveis e imagináveis no mais breve tempo possível. Dessa forma, o Bem triunfaria na terra, “e as previsões do Senhor pelos seus profetas se realizarão”.

Na prática, o resultado era invadir castelos, matar senhores e tomar a terra. Sabemos que as heresias acabaram por se tornar a expressão da revolta social na Idade Média. Porém, brinco com a idéia de estoques limitados de Bem e de Mal na terra. Não seria a crença nesse princípio o fundamento de uma ética ainda possível ? Pois se eu considerar que meu estoque pessoal de bondade e maldade são finitos, passarei a pensar quase obsessivamente no momento da virada: quando um deles se extinguiria, e eu passaria a viver na plenitude do outro. Incorrigivelmente otimista, penso na extinção do Mal, no dia em que me transformarei senão em bondade plena, mas pelo menos em uma pessoa melhor. E por descartar a inútil e falaciosa discussão acerca do “destino”, sei que tenho condições de agir já, para que essa virada deixe de ser um futuro acaso e passe a ser realidade imediatamente. Dessa forma, penso no Mal de que já fui capaz em minha vida, voluntariamente ou não, e imagino que seu estoque já tenha de fato acabado.

É quando um arrepio atravessa a espinha: mas e se foi o Bem que se extinguiu em mim desde há muito ? E se todo esse Mal que já fiz seja apenas o que me resta daqui para frente ?



quarta-feira, 18 de março de 2009

O desfecho:

Virei para o lado e perguntei para uma das pessoas da mesa:

- Essa pergunta tem mais a ver com sua linha de pesquisa, não ?

quarta-feira, 11 de março de 2009

Ex silentio



Tendo voltado à Universidade após longa ausência, tive empolgação suficiente para me dedicar a atividades voluntárias, como seminários ou grupos de estudos. Porém, a mais vibrante iniciativa foi quando inscrevi um trabalho no Primeiro Encontro de Pós-Graduandos em Filosofia da PUC que, para minha surpresa, foi selecionado. Vi aí o dedo da minha orientadora, que acabou montando uma mesa apenas com seus orientandos, incluindo o moderador, justamente no primeiro dia do Encontro.

A coisa toda deveria funcionar assim: cada participante da mesa apresentaria um breve comunicado sobre o estado de suas investigações e em seguida estaria aberto o debate com a platéia, sob orientação do moderador. O Encontro foi no glorioso TUCA, o Teatro da Universidade Católica, venerável local impregnado da história recente do Brasil. Após a abertura feita pelo chefe do departamento, iniciaram-se os trabalhos para uma platéia, convenhamos, reduzida. Senti uma certa insegurança: querendo ou não, a Filosofia não é minha área de formação, há assuntos que jamais estudei (além de outros que estudei e não entendi patavina). Porém, ao assumir a palavra, os temores se dissiparam: como bom professor, fiz a “lição de casa”: preparei meu discurso, acrescentei um ou outro gracejo - aquém das bobagens de cursinho, mas além do padrão desse tipo de encontro. Em pouco tempo, conquistei a platéia que, aparentemente, se interessou no meu trabalho.

Respeitei o tempo previsto, vinte minutos, e passei a palavra para o segundo expositor. Para minha surpresa, tanto ele quanto os outros dois que vieram em seguida, limitaram-se a LER um texto escrito previamente, provocando os devidos efeitos soporíferos na platéia. O resultado foi que, na hora do debate, as perguntas vieram todas para mim, uma vez que as pessoas só haviam se interessado - ou permanecido acordadas - durante minha apresentação.

Na primeira fileira, uma jovem senhora, óculos grossos, pasta com textos xerocados em cima do colo, cabelos e ideologia no estilo Luciana Genro. Ela fez a primeira pergunta. Longa. Demorada. Lá pelas tantas, incompreensível. No meio da sua fala, dei-me conta de que já não fazia mais a mínima idéia do que ela estava falando. De repente, ela parou. Terminou a pergunta, não tendo sequer a consideração de usar um ponto de interrogação em sua última e incompreensível frase. Breve expectativa no auditório. Olhos voltados para mim. Subitamente, ela levanta a mão e ainda acrescenta: “Só queria explicar que usei a palavra ‘ideologia’ no sentido da fenomenologia do espírito”.

Claro. Como não pensei nisso antes.

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O episódio todo me fez lembrar dos filmes americanos que todos passamos a odiar com o tempo, nos quais um policial durão prende o psicopata assassino e imediatamente recita a 5ª Emenda à constituição norte-americana. Naquele dia, no TUCA, pensei em invocá-la, o que me garantiria o direito de ficar calado. A 5ª Emenda (e a equivalente lei brasileira que, vergonhosamente não sei identificar) dá ao acusado o direito de permanecer em silêncio, defendendo-o de qualquer possibilidade de auto-incriminação. E eu sabia que se começasse a responder a pergunta da colega naquele evento acadêmico, fatalmente diria bobagens, de algum jeito me auto-incriminando (sob acusação de “arrogância intelectual”, ou seja, participar de um encontro sem estar preparado).

O ponto é que às vezes ansiamos pelo silêncio. Por exemplo, quando aquela pessoa, cujo único conhecimento do mundo se deve à leitura diária dos matutinos, pergunta nossa opinião sobre o escândalo do dia ou o movimento da bolsa na véspera. Quando o colega de trabalho, tentando ser amistoso, nos pergunta se o Honda Civic é tão bom assim quanto parece, ou então pergunta qualquer coisa sobre, sei lá, o Corinthians. Ou ainda, em todas as situações que envolvem um elevador e mais de uma pessoa. Desejamos o silêncio, somento o silêncio.

Porém, muitas vezes o silêncio causa perplexidade. O silêncio desestabiliza. Considerando sobretudo a esfera das relações humanas, observo que o silêncio surge como a anulação da dialética. De fato, o silêncio significa a suspensão de logos, da palavra racional, portanto, o silêncio significa a não-enunciação de um discurso: no silêncio, não há tese a ser negada, portanto não existe antítese possível. Não há superação dialética, o silêncio põe em jogo a suspensão de qualquer processo. Em silêncio não há mudança, não há avanços nem retrocessos.

Mas silêncio não é só negação do processo, é também o ato consciente de permanecer calado. Responder uma pergunta com o silêncio, significa criar uma infinidade de sugestões: talvez a resposta exista mas não seja para meus ouvidos, talvez a resposta exista mas seja perturbadora demais para ser enunciada, talvez uma resposta exista e, ao ser ocultada, deixe nas entrelinhas a existência de um saber oculto. É aqui que entra em cena o misticismo. Como todo misticismo, o silêncio traz a possibilidade da enganação, da falsa sugestão. Ao mesmo tempo, o silêncio pode trazer uma forte dose de ironia: permanecer em silêncio pode significar “eu não me rebaixo ao nível do seu discurso”, trazendo portanto forte dose de agressividade Seja como for, o silêncio faz parte dos jogos de poder que praticamos no cotidiano.

Brinquemos com os jogos de poder, talvez seja a única forma de apontá-los claramente. Em janeiro, visitando Paris com a turma do Anglo, pedi e recebi autorização de diversos Museus para atuar como guia do grupo. Na prática isso significou que em cada Museu eu deveria usar um crachá dizendo “Droit de parole”, o que me divertiu loucamente (na foto, o crachá verde do Musée d’Orsay). O “Direito de falar” era meu, e a conclusão implícita era a de que as demais pessoas do meu grupo NÃO tinham o mesmo direito, pois não portavam crachá. Ao mesmo tempo, o crachá inseria a minha palavra (e a minha pessoa) em um quadro institucional, transformando-a automaticamente na “palavra verdadeira”. No Beaubourg, diante de uma tela de Rothko, uma funcionária do Museu passou a acompanhar atentamente minha fala. Qualquer barbaridade que eu dissesse seria sancionada ou legitimada pelo Museu em questão, fosse o Louvre, o Orsay ou o próprio Beaubourg.

Adorno, sempre ele, disse que qualquer diálogo banal faz parte da mentira, uma vez que dá uma aparência de normalidade a relações humanas deterioradas desde há muito. Em nossos diálogos cotidianos nos calamos sobre o sofrimento, portanto acabamos por criar e perpetuar um silêncio criminoso.

Penso em Adorno e, enquanto isso, ouço um tango.