domingo, 21 de junho de 2009

Pequenos poderes



Dia desses, falando sobre a Revolução Francesa, surgiu a lembrança de que os mais fanáticos defensores do Rei, no processo revolucionário, eram “novos-aristocratas”, ou seja, burgueses que haviam recebido títulos de nobreza por serviços prestados à monarquia. De fato, durante décadas que antecederam a Revolução muitos burgueses aspiravam obter títulos de nobreza, e puxavam o saco do Rei até não mais poder para obtê-los. Tornar-se nobre era uma ambição de muitos burgueses, viver dos privilégios concedidos pelo Rei, um ideal. “Pai rico, filho nobre, neto pobre” foi um ditado que surgiu na época do absolutismo, numa referência à forma como burgueses tornavam-se nobres e, em seguida, deixavam de lado os negócios, passando a viver dos favores do Rei. Uma vez tendo obtido privilégios, lutaram até a morte para mantê-los.

A história toda me lembra os kapos de Auschwitz. Nos campos de extermínio mantidos pelo regime nazista, os kapos eram prisioneiros judeus que ficavam encarregados dos serviços mais sujos ou cansativos, aqueles que os alemães achavam indignos de fazer. Por exemplo, o trato cotidiano com os demais prisioneiros. Por serem eles mesmos judeus, os kapos sabiam que sua sobrevivência só seria garantida se eles desempenhassem com eficiência seu trabalho, tornando-se de certa foram insubstituíveis para seus mestres alemães. Assim, os kapos muitas vezes tratavam os prisioneiros judeus com mais violência que os próprios alemães. Cito um trecho do “Dicionário dos Campos De Concentração”:

Cada vez que um novo transporte de prisioneiros chegava em Mathausen, o kapo August Adam separava os professores, advogados, juízes e religiosos e perguntava cinicamente a eles; “Você é um advogado ? Um professor ? Que bom ! Está vendo este triângulo verde ? Significa que sou um matador. Tenho cinco condenações: uma por assassinato e quatro por roubo. E aqui quem manda sou eu. O mundo virou de cabeça para baixo, não ? Você me entende ? Precisa de um tradutor ? Pois aqui está ele.”, e dizendo isso apontava para o porrete com o qual passava a espancar os prisioneiros. Depois de satisfeito, organizava uma Scheisskompanie e os mandava para esvaziar as fossas.
Mas talvez eu esteja citando exemplos extremos ou distantes demais de nossa realidade. Permitam-me lembrar um triste episódio pelo qual passei poucos anos atrás, quando o destino me obrigou a tirar um daqueles afamados vistos de entrada para os Estados Unidos. O processo todo beira a violência e humilhação: desde as longas conversas telefônicas com gravações (devidamente cobradas), passando pelo pagamento de uma taxa abusiva, lista de espera e, no dia selecionado para a entrevista, uma fila interminável. Organizando a fila, do lado de fora do Consulado, os seguranças: funcionários brasileiros, devidamente uniformizados, com cassetetes na cintura e uma bandeira dos Estados Unidos no ombro. Alguém pode imaginar a arrogância e o autoritarismo desses imbecis, uma vez usando um uniforme com a bandeira americana ? O estúpido poderzinho a eles atribuído subia à cabeça de forma atroz.

Aqui, mais uma vez, lembro da experiência do nazi-fascismo. O nazi-fascismo encontrou campo para seu florescimento em momentos de crise e humilhação social, como na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial ou o resto do mundo durante a Grande Depressão. Para o indivíduo desempregado, empobrecido, humilhado, o nazi-fascismo propunha um discurso grandiloqüente, um sentido de missão e, sobretudo, um uniforme e uma função dentro de um quadro hierárquico que permitia o exercício da autoridade. Resgatava-se assim a auto-estima perdida pelo indivíduo, nem que para mantê-la viva fosse necessário agredir ou humilhar outros indivíduos. Para os pobres seguranças fascistinhas do Consulado americano, uma posição de autoridade e um uniforme com a bandeira americana no ombro significaria, provavelmente, o fim de uma vida de humilhações. Afinal, quem vai trabalhar em uma empresa de segurança privada senão alguém que já está na fronteira da marginalidade ?

Mas os pequenos poderes proto-fascistas com os quais cruzamos no cotidiano não assumem somente a forma de autoritarismo armado. A fúria organizadora também tem o seu papel. E aqui entram em cena aqueles cegos burocratas, com seu desejo autoritário de controlar o mundo, disciplinando os corpos, estabelecendo critérios de uma suposta normalidade. Na sua fúria normativa, eles não podem ver um fato sem criar uma regra, não conseguem interpretar um comportamento sem pressupor um desvio. Nesse papel, alguns síndicos de prédio são imbatíveis. Em 2º lugar na minha lista de síndico-fascista-preferido-de-todos-os-tempos está a Sra.N., pacata funcionária aposentada, síndica de um edifício que freqüento. Aliás, ela é uma ex-diretora de escola (me parece que a mulher nasceu para fazer as regras serem cumpridas). Incorruptível, porém dotada de uma fúria normativa assustadora. Recentemente, afixou um pequeno quadro na mesa do porteiro, de costas para ele e voltado para quem chega: “Favor não distrair a atenção do porteiro”. Preocupada com a segurança do edifício, a nossa brava síndica jogou no lixo a humanidade do porteiro, julgando-o incapaz de agir por conta própria ou tomar suas próprias decisões, tratando-o como um animal enjaulado que não deve ser alimentado ou coisa parecida.

E aos que não entenderam nada do porque desse post, apenas confesso: escrevo com raiva. E dedico cada linha do post ao síndico do edifício onde estaciono meu carro, o síndico número um da minha lista, o homem que criou o conceito de Volksgemeinschaft de condomínio. Sieg Heil !

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Na imagem, o kapo Georg, no campo de Dora, desenhado por Leon Delarbre em 1944 (extraído de www.memoire-juive.org/kapos.htm )

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Ouro Preto


O primeiroAdicionar imagem frio do ano aguça a memória. O inverno traz Ouro Preto, que sempre foi e sempre será uma cidade infinita. Nunca se deve deixar de voltar para Ouro Preto, em cada viagem algo novo sempre é descoberto. A partir da regularidade da viagem (todo ano, em julho, de ônibus, levando um grupo) uma questão surge e fica no ar: se a cidade é sempre a mesma e os lugares visitados são os mesmos, o que muda ? Só pode ser o viajante, que vai se redescobrindo como uma pessoa diferente a cada retorno, e sabemos que isso é que dá valor a uma viagem.
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Gostaria de poder falar sobre Ouro Preto da mesma forma que o Paulão, antigo professor de História do Brasil do Anglo. Se não com as mesmas palavras com que ele me apresentou a cidade pela primeira vez, pelo menos com a mesma paixão com a qual ele descrevia Ouro Preto em sala de aula, falando da Inconfidência Mineira, e que fez com que um aluno, em um momento qualquer da década de 1980 desabafasse: “Pô, Paulão, por que você não leva a gente pra Ouro Preto ?”. Assim nasceu a primeira viagem do Anglo para as cidades históricas de Minas Gerais.

Entrei na aventura bem mais tarde, como convidado, e jamais esquecerei cada detalhe da primeira vez que estive em Ouro Preto, em 1999. A paisagem surpreendente, o ar da montanha, a visão noturna do Colégio onde nos hospedamos, a arquitetura da cidade explicada minuciosamente pelo Paulão. Os becos estreitos cobertos de névoa, ganhando ares de mistério. O frio da cidade contrastando com o fogo das paixões.

Porém, o aspecto mais encantador da viagem sempre foi a possibilidade do convívio entre as pessoas sem as restrições habituais do cursinho, como os horários rígidos balizados pelo toque do sinal ou mesmo o número excessivo de pessoas. Em Minas, os encontros se multiplicam e, sob o impacto das descobertas do dia ou mesmo da cachaça de Minas, acabam por transformar cada conversa em um Alegre Colóquio. Paulão era mestre no colóquio de botequim, falando de história, de música, da MPB que ele tanto gostava, das lembranças de viagens anteriores com outras turmas, de sua vida dura de estudante durante o regime militar. Paulão falava sobre o que era ser negro no Brasil. E tudo isso no meio de noites infindáveis, sob o espetacular firmamento de Ouro Preto, pelo menos antes que a névoa começasse a cair na alta madrugada.

Herdei a viagem em 2003 (estranha herança sem testamento), e imprimi o meu caráter ao roteiro: menos história do Brasil, mais história da Arte; menos pinga com mel, mais Filosofia. Foi quando fiz as minhas próprias descobertas, imediatamente compartilhadas com os alunos, como a obra do mestre Athaíde e seus anjinhos ou a igreja do Rosário e sua surpreendente fachada curva. Todavia, a parte que mais me honra nessa herança é a possibilidade de ser o novo anfitrião de Alegres Colóquios cada vez mais vibrantes.

As turmas de 2007 e 2008 foram talvez as melhores em todos os tempos, e passaram a fazer parte dessa longa corrente que dura já mais de vinte anos. E é isso que me empolga em manter a tradição da viagem: compartilhar descobertas, ir além da nossa experiência de cursinho limitada por quatro paredes, proporcionar o mesmo espanto que tive ao contemplar o barroco mineiro (que me ensinou um novo olhar), sentir o impacto da memória das minas. Me empolgo ao proporcionar a todos a possibilidade de fazer parte dessa corrente.

Leio comentários no blog de pessoas que estiveram na viagem cinco, seis anos atrás e hoje acompanham minhas divagações: agora não são mais alunos, mas continuam sendo companheiros de descobertas. Fico sensibilizado e não consigo deixar de imprimir a esse post um caráter emotivo, assumindo o lado confessional que sempre tento evitar desde que inaugurei o blog.

Faço a todos que me lêem um convite para participar de Alegres Colóquios nas cidades históricas de Minas Gerais, do dia 22 ao 26 de julho, ou então de 27 a 31. Quem não for mais do Anglo que se sinta convidado do mesmo jeito, sempre fico feliz em receber ex-alunos no grupo.

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Na foto, a turma de 2007 descobre, perplexa, as imagens que se escondem nas sombras da escultura de Aleijadinho. As caras são ótimas: alguns enxergam, ficam encantados; outros ainda não e forçam a vista apertando os olhos. À direita, um menino esfrega os olhos, exausto. Nessa hora, minha explicação não basta: as pessoas tentam se ajudar umas às outras, tentam ensinar como olhar diferente.