quinta-feira, 23 de julho de 2009

La joie et la tristesse



Desde há muito Paris deixou de ser uma cidade e passou a ser uma marca, tão falada e comentada, disputada e visitada, que dificilmente percebemos que ainda existe uma cidade debaixo daquela massa compacta e espessa dos discursos e imagens. De tão citada, mostrada e reproduzida, Paris passou a ser uma cidade imaginária.

Paris vende, ainda mais no Brasil depois que a valorização da moeda nos tornou a todos uns globetrotters: agora a classe média pode ir a Europa, e Paris passou a fazer parte da memória afetiva de multidões de brasileiros. A indústria cultural se move. Nos cinemas, a simples presença do nome da cidade no título do filme, já serve para atrair milhares de saudosos de Paris. Nas livrarias, não é raro uma prateleira dedicada a Paris, e que apresenta muito mais que os tradicionais guias de viagem. Camisetas e roupas com o nome Paris também estão por todos os lados. Pois Paris foi engolida e cada vez que cruzamos com essa Paris imaginária, ela se torna mais imaginária do que nunca.

Todavia, no meio da avalanche, há tesouros a serem descobertos. Ontem revi “Paris, je t’aime” – título mais apelativo impossível – e descobri que gostei do filme muito mais do que poderia imaginar. Trata-se, basicamente, de uma seleção de curtas e algumas das histórias contadas no filme melhoraram tremendamente com o tempo. Segue abaixo a fala final de Carol, personagem interpretada pela atriz norte-americana Margo Martindale, no último episódio do filme, “14e Arrondissement” (direção Alex Payne):

Et puis, quelque chose m’a arrivé, quelque chose difficile de décrire.

(silêncio)

Assise lá, un être seule dans un pays étranger, loin de toutes les gens que je connais, un sentiment est venu a moi. C’était comme je me souvenait de quelque chose que je n’ai jamais connu ou que j’avais attendu toujours, mais je ne savait pourquoi. Peut-être c’était quelque chose que j’avait oublié ou quelque chose que m’a manqué toute la vie. Seulemant je pouvait dire que j’ai senti, au même temps, la joie et la tristesse, mais pas trop tristesse, parce que je me sentait vivant. Oui, vivant.

Vai sem tradução, o francês dela é impagável, intraduzível. O trecho tem que ser ouvido, mais do que lido: veja o episódio todo em http://bit.ly/Ns0gD , com legendas em inglês. Além disso, o trecho citado acima faz lembrar um fragmento de Camus, que apareceu no blog no início do ano: http://bit.ly/4livo3 .

Deixo as palavras de Carol como despedida. Nos próximos dias, os alegres colóquios serão realizados em Ouro Preto, só voltando em agosto. Abraços a todos.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Ainda o Beco...



(Completo o texto iniciado no último post, mantendo a distinção entre grafitti e pixação).

Pixação & Transgressão

Desde há muito está disseminada a idéia de que transgredir é bonito. A partir dos anos 60, com a crítica à sociedade administrada e a imbecilização do cotidiano, a transgressão passou a ser vista como forma de contestação. Meio século depois, a transgressão foi banalizada, esse discurso caiu no vazio. Na década de 1960 uma juventude trangressora tomou as ruas em nome de utopias; a luta fracassou e deixou no ar uma pergunta amarga: como destituir os poderes se de antemão já estava descartada a criação de novos poderes ? O movimento fracassou (nenhum sucesso era possível), as utopias não vingaram. Sobrou apenas o desejo de manter o comportamento transgressor, agora pintado com cores anarquistas.

Tal comportamento está presente nos grupos de pixadores, que orgulhosamente ostentam o nome libertário de “coletivos”. Certos pixadores rejeitam até o princípio da autoria: qualquer um do grupo pode assinar vício ou fds ou susto's, só para citar alguns dos mais visíveis. E, para fazer parte do coletivo, basta pixar, mais libertário que isso impossível.

Porém, a questão anarquista observada pelo viés da pixação, acaba expondo os limites do movimento. Uma sociedade é livre quando seus indivíduos não estão submetidos à opressão, por exemplo, das leis impostas pelo estado. Dessa forma, uma sociedade anarquista deve estar fundada na auto-disciplina e no respeito a valores comuns. O pixo enquanto forma de transgressão anarquista resulta na deterioração do espaço que deveria ser público. Ao invés de destruir o privado (que pode ser fonte de desigualdade etc.), o pixador destrói espaços que deveriam ser de encontro, de trocas, de sociabilidade; justamente aquilo que, supostamente, deveria ser valorizado. Curiosamente, espaços ultra-pixados são evitados pelas pessoas e freqüentados somente pelos pixadores. A criação desses espaços exclusivos através da pixação resulta no oposto do libertário, ou seja, um comportamente seletivo, excludente e, no seu limite, fascista.

Pixação & Deterioração

Falo de pixação enquanto deterioração não porque o pixo destrói prédios “bonitos”, que, afinal, são tão escassos em São Paulo. Simplesmente constato que pixação (ao contrário do grafitti) dá idéia de abandono e marginalidade. Daí para a atuação do crime organizado é um pequeno passo, e dada a situação de quase guerra civil que vivemos, o pixo vai efetivamente contra o que é de interesse coletivo.

Interessante pesquisa foi feita em uma universidade holandesa (Groningen ?), suas conclusões confirmam o que constatamos diariamente em São Paulo. O experimento foi realizado ao longo das estações (de arquitetura padronizada) de uma linha de trem de subúrbio. Em todas elas havia um estacionamento de bicicletas, encostado na parede do fundo da estação. Os pesquisadores retiraram todas as latas de lixo dos estacionamentos, pixaram as paredes de metade das estações e, em um determinado dia, deixaram nas bicicletas estacionadas um folheto de propaganda qualquer. Em seguida, observaram a reação das pessoas. Nas estações não-pixadas, quase 100% dos donos de bicicletas amassaram e guardaram o folheto de propaganda no bolso, provavelmente para jogar na próxima lata de lixo. Nas estações pixadas, cerca de metade dos donos de bicicleta amassaram a propaganda e jogaram no chão. Pixo da idéia de abandono, gera mais abandono e sujeira ainda.

Na Universidade de Columbia, um experimento semelhante com janelas quebradas: diante de uma fachada com janelas quebradas, as pessoas não se incomodam de jogar lixo. Ou seja: pixação destrói.

(“Ah, mas é bom criar sujeira para contestar a hipocrisia da sociedade burg...” zzzzzzzzzzzzzz... rrrrrrrrrooooonnnnccc... zzzzzzzzzzzzzzzzz...)

Pixação & Existência

Zezão dizia que começou a pixar seu nome para provar sua existência. Isso ocorreu na época em que trabalhava como moto-boy e, segundo ele, era uma pessoa invisível: não recebia bons dias, as pessoas fechavam o vidro do carro quando ele se aproximava. Os únicos que percebiam sua existência eram seguranças de banco, que invariavelmente deixavam-no preso na porta giratória, desconfiados de sua atitude (?) suspeita.

E aqui ele pôs o dedo na ferida. Pois vivemos cercados de pessoas invisíveis, pessoas próximas de nós, a quem nunca notamos a existência. Ou, o mais comum: notamos a existência, mesmo assim seguimos em frente, passamos reto. Quem está lendo esse blog provavelmente nunca foi invisível, mas, pergunte-se se já tratou alguém assim. Porteiros, empregadas, faxineiros, mendigos, pedintes... a lista é infinita. Diante da agressividade do nosso silêncio, como se queixar de um “grito de existência” na forma de pixo ? Como não ser tolerante com quem costuma ser vítima cotidiana da intolerância ? Portanto, viva o pixo existencial, desprovido de ideologia barata! Por mais destruidores que sejam seus efeitos, essa é a cidade em que vivemos, e a quantidade gigantesca de pixações em todas as paredes da cidade da testemunho de quantas pessoas estão gritando desesperadas, quantas pessoas estão em busca de expressão.

Daí uma pergunta: será que não é possível que essas pessoas se expressem de uma forma que vá além de por o nome na parede ? É aqui que a pixação pode virar grafitti.

Pixação & Estética

Há uma estética das letras rúnicas, agressivas do alfabeto da pixação paulistana. No Beco do Batman, um dos grafiteiros transformou a forma do pixo em um padrão agregado á sua pintura (foto acima). Poucos anos atrás, o Itaú Cultural na Av. Paulista passou por uma reforma e cobriu a obra com um tapume branco, divertidamente pixado com um padrão desse tipo. No Cemitério São Paulo, pixadores foram apresentados á arte em cerâmica e puseram seus rabiscos ao longo do comprido muro branco, em espaços simétricos, e o resultado foi surpreendente.

O ponto é: há um gigantesco potencial estético nos garranchos dos pixadores. Há uma enorme energia criativa – sob a forma de vontade de expressão – por trás da ação dos pixadores. Aliás, toda essa reflexão surgiu a partir dos alegres colóquios que se iniciaram com visitas à galeria Choque Cultural e, principalmente, à sua recém encerrada exposição de arte gráfica. Se a pixação for desprovida de um viés ideológico bobo, ela pode se converter, junto com o grafitti, em uma forma de arte singular. Pode até ajudar a definir os rumos de uma nova arte possível no novo milênio, após quase um século de crise da arte.

domingo, 12 de julho de 2009

Beco do Batman



Dos alegres colóquios realizados ultimamente no Beco do Batman – verdadeiro museu a céu aberto do grafitti –fica a suspeita de que a arte de rua é o futuro da arte, justamente por salvá-la da perda de sentido.

Hoje, quando vamos ao museu, topamos com as famosas “instalações”, quase sempre herméticas, isto é, absolutamente incompreensíveis sem um manual de instruções devidamente oferecido pelo artista. Ou então, cruzamos com aquelas propostas de “chocar a platéia burguesa”, como se, a essa altura, alguém ainda tivesse alguma sensibilidade para ser chocada. (Hoje em dia, depois de Auschwitz e Hiroshima, expor um urinol não consegue provocar outra reação além de um bocejo entediado). Finalmente, há essa mania boba de querer superar a vanguarda da semana passada, se convertendo na vanguarda da vanguarda, pelo menos até a semana que vem: sem a compreensão de toda a história da arte, incluindo as últimas dissidências conceituais entre grupelhos semi-desconhecidos, não se consegue entender porque tal artista resolveu usar sua obra para “questionar a arte” pela milésima vez.


A arte de rua traz de volta pelo menos três elementos que se perderam desde que se iniciou aquele surdo diálogo com si próprio que tem caracterizado a arte nos últimos anos. Em primeiro lugar, o grafitti nos coloca diante do inesperado, e isso tem a ver com o próprio suporte usado pelo artista: nada menos que a cidade. No meio de uma entediante jornada do cotidiano, viramos uma esquina e damos com uma súbita explosão de cores. Equipamentos urbanos cinzas, funcionais, desinteressantes passam a ganhar interesse ao se transformarem em formas inéditas.

Além disso, o grafitti nos faz olhar diferente. Claro que aqui cabe uma ressalva: não é por ser uma pintura e estar na rua que o grafitti ganha automaticamente estatuto de obra de arte. Porém, muitas dessas obras conseguem, e passam a pedir um tempo de contemplação maior do que o dispensado em uma passagem rápida, talvez de carro ou ônibus. Quando oferecemos esse tempo, descobrimos no grafitti coisas que não havíamos percebido da primeira vez, acabamos por perceber um novo significado (ou novos múltiplos significados) na imagem que contemplamos.

Finalmente, o grafitti abre espaço para a reflexão. Trata-se da arte na rua, que se oferece aos cidadãos de uma cidade que rejeita o espaço público. Dessa forma, o grafitti nos convida a reocupar esse espaço ou pelo menos chama atenção para sua deterioração. Seu suporte principal é o muro, e é chocante a quantidade de muros que nos cercam, sinalizando insegurança e exclusão, ao mesmo tempo em que chamam atenção para a pobreza da arquitetura que nos cerca (uma arquitetura que multiplica ao infinito as superfícies verticais brancas ou cinzas; seja como for, logo sujas).

Há que diferenciar grafitti de pixação, já comecei a fazê-lo nos posts de 27 de outubro (http://bit.ly/RbJ87 e http://bit.ly/4u9zKe) e 2 de novembro (http://bit.ly/BG9kf ) do ano passado. Porém, a primeira visita com os alunos ao Beco do Batman e o alegre colóquio com Zezão, grafiteiro inspirado, ajudou a colocar a questão da pixação em um novo plano. Volto ao assunto no próximo post.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Sob efeito hipnótico




Não resisti, comprei o quadro. Agora passarei os próximos dias sob efeito hipnótico das cores e formas que terei diante de mim. Ficarei paralisado, cada vez que sentar no sofá em pleno deleite solitário, e ouvirei o fantasma de Michelangelo cochichar no meu ouvido que a obra de arte pede a solidão para produzi-la ou contemplá-la. Pensarei obsessivamente no significado de ter uma obra de arte para mim e só para mim, para ninguém mais. Mas saberei que o artista que agora financio – tornei-me um mecenas ? – permanece engajado na sua arte, e sua arte é de rua. O preço que paguei pelo meu prazer pessoal libertará o artista para que ele permaneça produzindo para as pessoas, tendo a cidade como suporte.

Saberei que tenho sobre a brancura imaculada da parede de casa um quadro com imagens que pertencem à rua. Terei convidados para o jantar sentados diante da inscrição “PIXELTOSCO” em azul vibrante, e saberei que a maior parte deles jamais conseguirá ler essas palavras, escritas com a grafia mais tortuosa dos muros de São Paulo. Ficarei dias pensando em como aquela superposição alucinada de inscrições em uma tela de 200 x 150 cm resultou em uma beleza plástica impressionante.

Sim, terei que viver com a lembrança vergonhosa de que, ao saber do preço, eu pedi um desconto na obra de arte. Mas tanto faz, a compra foi feita, resta apenas aguardar a entrega. E hoje, uma quinta-feira em que chove mais que a Lisboa de Bernardo Soares e a Los Angeles de Blade Runner, a galeria diz que fará a entrega da tela, a partir das 14h. Curiosamente - máximo da coincidência - no mesmo dia e horário em que a loja de material de construção prometeu entregar minha privada nova.

Toca o interfone: subitamente, vivo um momento Duchamp.