segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Che cossé l'amor ?



Volta e meia brinco de Filosofia: escolho um tema (vá lá, um conceito) e exploro, torturo, tento ampliar seu alcance, tento fazer nascer a “faísca” de que falava Platão. Dessa forma, assumo a atitude filosófica de me perguntar sobre o mundo à minha volta e convido os leitores para fazerem o mesmo. Porém, como diálogo, o troço todo nunca avança muito: um link para “comentários” e o longo tempo entre pergunta e resposta acabam desanimando a todos. Tenho certeza que o blog tem mais leitores passivos que colaboradores, mas sei que os leitores passivos partem da leitura do texto para suas próprias descobertas, animando os seus próprios alegres colóquios. E é justamente por quererem avançar nas suas descobertas e alimentar sua reflexão sobre este ou aquele assunto, que muitos me pedem para abordar alguns temas específicos. Dentre estes, o inominável sempre aparece: pedem-me que fale sobre o amor. Mas, como diria o perplexo guerreiro viking em Asterix e os Normandos, “Como posso fazer algo que desconheço?”

[Interlúdio pop: durante 27 anos, René Goscinny e Albert Uderzo produziram 24 volumes de As Aventuras de Asterix, um verdadeiro monumento cultural do século XX. Além de soberbamente engraçados, cada álbum de Asterix gira em torno de um ou dois assuntos explorados de forma genial: sob a capa espessa de um humor anárquico, existe quase uma proposta de reflexão sobre conceitos. Em Asterix e os Normandos, por exemplo, “discute-se” o conceito de medo. Após a morte de Goscinny (o responsável pelos textos) a obra foi tocada apenas pelo desenhista Uderzo, que foi incapaz de manter o pique: os álbuns passaram a ser entediantes, com os personagens repetindo seus comportamentos como verdadeiros clichês, e com interesses de mercado meio óbvios por trás de cada novo título.]

Tateio sobre o assunto. Usei a palavra inominável (alguns diriam inefável) porque mal sei se o amor existe ou, no mínimo, sou incapaz de chegar a um entendimento sobre o que seja o amor. Sei que tem algo a ver com a atração que sentimos por uma pessoa, mas antes que eu possa entendê-lo, sou perturbado pelo fato de que tal atração quase sempre vem atrelada ao desejo de posse.

Por que não nos limitamos apenas gostar, por que existe também o desejo de possuir ? Qual o mistério que se esconde por trás do desejo de posse que vem junto de todo amor ? Pois me parece que é justamente isso que caracterize o amor: gostar + possuir. Talvez seja por isso mesmo que muitas vezes, quando nos referimos ao ato sexual, usamos o verbo “possuir”, muito mais transcendente do que “transar” (do que “comer” então nem se fala). E talvez seja por isso que gostemos tanto de histórias de vampiro, evidentes metáforas do amor, uma vez que falam da posse física e espiritual de uma pessoa, em um tempo infinito. Histórias de vampiro nos fazem crer que o amor de fato existe.

Aqui se abre o aspecto mais perturbador de toda relação: queremos que o amor seja correspondido, mas isso faz com que além de possuidores, sejamos ao mesmo tempo objeto do desejo de posse de Outro. Quando sabemos que alguém quer nos possuir, de alguma forma nos sentimos envaidecidos (amados), ao mesmo tempo em que lamentamos o risco de perda da liberdade. Se eu sou objeto da posse de alguém, corro o risco de deixar de ser quem eu sou, de perder essa identidade pacientemente (dolorosamente) construída ao longo de anos. Da mesma forma, quando queremos possuir, sabemos que, ao exercer o controle sobre o Outro, a pessoa amada corre o risco de deixar de ser quem ela é: uma vez tornada objeto de nossa posse, ela deixa de possuir as características que despertaram o amor.

Mas, é possível a atração entre duas pessoas sem o desejo de possuir ? Certamente que é, mas nesse caso não será chamada de amor, portanto trata-se de um tipo de relação que não me interessa como objeto de reflexão. Considerando, portanto, que o desejo de possuir seja indissociável do que chamamos de amor, é possível que duas pessoas se possuam sem se “destruir” mutuamente ? Em outras palavras, um amor correspondido é possível ?

Primeira resposta: não, o amor é sempre unilateral, platônico, até. Toda realização do amor implica em sua morte. Dante amou Beatriz, e uma prova incontestável de seu amor foi a Divina Comédia. Na obra, o poeta florentino consumou seu amor com Beatriz apenas em verso, descrevendo uma cena idílica nas nuvens do Paraíso, canto 31, em meio a um concerto de anjos. Sabemos que Dante jamais dirigiu sequer uma palavra a Beatriz na vida real, suspeitamos que se eles fossem amantes reais, Dante jamais perderia seu tempo escrevendo algo como a Divina Comédia, preferindo obviamente ficar com sua amada, “possuindo-a”.

Segunda resposta: sim, o amor correspondido é perfeitamente possível, pois a destruição de uma individualidade não deve ser vista como negativa. Aliás, ao invés de “destruição”, melhor seria pensar em “construção” de algo novo. No amor, construímos uma nova identidade, nos descobrimos amando. Impossível, não lembrar de post recente, sobre fuga. Amor tem algo de fuga, no sentido de deslocamento. Pois o amor verdadeiro deve nos completar: quando se ama, brilha o entendimento.

domingo, 16 de agosto de 2009

De volta à Cidade




A força do dia fez com que eu me refugiasse numa caverna; no fundo havia um poço, no poço uma escada que abismava na treva inferior. Desci; por um caos de sórdidas galerias cheguei a uma vasta câmara circular, a muito custo visível. Havia nove portas naquele porão e oito davam para um labirinto que falazmente desembocava na mesma câmara; a nona (através de outro labirinto) dava para uma segunda câmara circular, igual à primeira. Ignoro o número total de câmaras; minha desventura e minha ansiedade as multiplicaram. O silêncio era hostil e quase perfeito, outro rumor não havia nessas profundas redes de pedra além de um vento subterrrâneo, cuja causa não descobri; sem ruído, perdiam-se entre as gretas fios de água enferrujada (...)

No fundo de um corredor, um muro não previsto me barrou os passos, uma remota luz caiu sobre ele. Ergui os olhos ofuscados: no vertiginoso, no mais alto, vi um círculo de céu tão azul que pareceu-me púrpura. Alguns degraus de metal escalavam o muro. O cansaço me relaxava, mas subi, só me detendo às vezes para pesadamente soluçar de felicidade. Fui divisando capitéis e astrágalos, frontões triangulares e abóbadas, confusas pompas de granito e mármore. Foi-me assim concedido ascender da cega região dos negros labirintos entretecidos à resplandecente Cidade.

O texto acima descreve com incrível semelhança a primeira vez que me aventurei sozinho pela imensa rede de metrô de uma cidade grande e me perdi por alguns instantes. Na verdade, acho que prolonguei voluntariamente minha situação de “perdido”, saindo em estações diferentes para ter surpresas, pegando a linha errada para ver onde iria parar. A cidade era Paris, o ano 1990 (a rede de metrô é a da figura acima). Foi assim que descobri, por exemplo, a Linha 6, que de repente deixa de ser subterrânea e oferece aos passageiros que vão na direção de Étoile uma magnífica vista da torre Eiffel.

O fragmento citado, todavia, não tem nada a ver com metrô, pelo contrário. É a descrição fantástica que o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) faz da “cidade dos imortais” em um dos contos do livro O Aleph. Seja como for, a idéia de um labirinto em que câmaras idênticas se sucedem, ligadas umas às outras por túneis e caminhos subterrâneos chega a ser quase precisa. As estações do metrô de Paris são muito semelhantes entre si: longas plataformas ferroviárias, com tetos como se fossem seções de cilindro, cobertos de azulejos brancos de uma ponta a outra. A monotonia das paredes de azulejo branco é quebrada pelos painéis publicitários (e os painéis se repetem em todas as estações, ajudando a criar o aspecto labiríntico em que as câmaras são de fato idênticas) e por uma placa azul turquesa, onde está escrito o nome da estação em branco.

Aliás, os nomes das 380 (repito, trezentos e oitenta) estações de Paris por si só já são uma delícia. Nomes de lugares, nomes de pessoas, nomes históricos. Nomes de batalhas ! Há milhões de fantasmas por trás de algumas estações que têm nomes das batalhas da França: Bir-Hakim (1942, cinco mil mortos), Iena (1806, trinta mil mortos), Sebastopol (1855, setenta mil mortos), Alésia (52 a.C., talvez cem mil mortos). Porém, o que chega a ser engraçado (ou no mínimo inusitado) são as estações que foram rebatizadas, e acabam tendo dois nomes. Por exemplo, a estação Barbés-Rochechouart, que reúne o nome de um revolucionário de 1848, Armand Barbés, com o de uma aristocrata do Antigo Regime, Marguerite de Rochechouart.

Mas o post de hoje não é sobre nada disso, e sim sobre uma notícia da semana que passou, segundo a qual a prefeitura de São Paulo irá gastar, nos próximos anos, algo em torno de 4 bilhões de reais com obras viárias. Ou seja, com avenidas para automóveis. Tal volume de recursos seria suficiente para construir cerca de 20 km de metrô. Trata-se de uma notícia escandalosa.

Há um princípio do urbanismo, comprovado desde há muito segundo o qual as “vias criam o seu próprio tráfego”. A idéia que a construção de avenidas e cada vez mais avenidas serve para “desafogar” o tráfego é uma mentira atroz. Lembro da recente construção da famosa Ponte Estaiada – com seus cabos imensos, como se a cidade já não tivesse fios demais pendurados sobre nossas cabeças – que foi justificada como uma forma de levar o tráfego rapidamente de um ponto para outro e que imediatamente se converteu em um verdadeiro estacionamento a céu aberto nos horários de pico. O princípio do urbanismo que citei surgiu a partir das fracassadas experiências ocorridas em Nova York a partir da ação de Robert Moses (1888-1981), que planejou o desenvolvimento da cidade dando prioridade aos automóveis. Sem a mínima preocupação com conservação, Moses derrubava bairros inteiros e degradava outros tantos para abrir avenidas, pontes e vias elevadas, tendo iniciado suas furiosas atividades de engenharia já na década de 1920. Quarenta anos depois, o modelo estava esgotado e a cidade paralisada.

Na cidade de São Paulo ainda estamos nas mãos dos carros, e décadas seguidas de abertura de avenidas asfaltadas não resolveram o problema do tráfego. O que é evidente, pois o problema de circulação não se resolve com automóveis (e um dia as gerações futuras irão rir de nós, constatando que para nos deslocarmos do ponto A até o ponto B levamos junto 700 kg de ferro, aço e borracha, emitindo poluentes no processo). Avenidas, obviamente, tem um efeito eleitoral magnífico, pois tem imensa visibilidade: 100 km de avenidas são mais visíveis que 20 km de metrô, dando impressão de que o prefeito construtor de avenidas asfaltadas é um sujeito que “faz” as coisas.

Os argumentos mentirosos para justificar tal uso imbecil de recursos são infindáveis: “Metrô é obrigação do Estado e não da Prefeitura”, repetem os sucessivos prefeitos, assumindo publicamente sua omissão. “Metrô leva muito tempo para ser construído, enquanto o problema do tráfego é imediato”, tal argumento tem sido utilizado há décadas para justificar a falta de iniciativa. De fato, se 30 anos atrás os recursos tivessem sido destinados ao metrô e não aos minhocões da vida... Mas o argumento do tempo que leva a construção do metrô aponta para outra tragédia: uma infinidade de avenidas asfaltadas pode ser construída durante um mandato de 4 anos, enquanto um simples trecho do metrô pode levar muito mais tempo, muito além do mandato de um prefeito ou governador. Portanto, estes jamais irão iniciar uma obra que será concluída por outro. E a cidade que se dane.

As mentiras não param. Os míseros 60 km do metrô de São Paulo estão divididos em cinco linhas... que cinco ? Existe UMA linha de metrô em São Paulo, a número 1, azul, Tucuruvi-Jabaquara. A linha 2, verde, é um mero ramal (nove estações) e a linha 3, vermelha, é apenas a adaptação de trilhos que já existiam na superfície desde há muito. Já a linha 4, amarela, prevista para 2010 (claro, ano de final de mandato do governador candidato à presidência), vai bater dois recordes negativos: maior tempo de construção e maior distância entre estações (aliás, terá somente 7 estações novas, sendo portanto mais um simples ramal). Finalmente, existe a linha 5 lilás, que leva do nada a lugar nenhum em 6 estações.

É uma vergonha. Todo o planejamento e construção do metrô de São Paulo desde a inauguração é prova de uma incompetência feroz, bem como da submissão do interesse público a ambições mesquinhas. Comparemos com outras cidades, que tiveram metrô inaugurado mais ou menos na mesma época que o de São Paulo (1974): Seul, hoje com 287 km em 10 linhas e Cidade do México, com 202 km em 11 linhas. E são linhas reais, e não de mentirinha como as nossas. Em nome de uma carreira política, destrói-se a cidade.

Defendo radicalmente o metrô porque é a única alternativa que temos. E porque em um transporte coletivo minimamente civilizado como o metrô, podemos nos livrar do isolamento destruidor (e quase assassino) dos carros, multiplicando as trocas e os encontros, ou seja, praticando o “viver junto” que é o princípio mais essencial e prazeroso das cidades.

Fugir (continuação)

O último post foi certamente um dos mais instigantes. Nos comentários, o conceito de "fugir" foi melhor delimitado, ou mesmo ampliado, e acabou ganhando novos significados que eu jamais havia pensado. Assim se cumpriu o projeto do blog: levar o pensamento adiante, para mim e para os leitores, como em um Alegre Colóquio.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Fugir




Anos trás precisei de documentos ( = provas) para um processo imbecil na justiça contra um certo estelionatário, na época proprietário de uma escola onde eu trabalhava. Naquela escola funcionava um caixa dois: os salários eram pagos “por dentro” e “por fora”, havendo inclusive duas contabilidades paralelas, uma legal outra ilegal. Eu achava curioso que os procedimentos eram idênticos nos dois casos, recibos, holerites e assinaturas para lá e para cá, mesmo na contabilidade paralela. A única diferença é que os procedimentos do caixa dois eram feitos todos em uma sala discreta, com portas abertas, é bem verdade, o troço todo era ao mesmo tempo secreto e do conhecimento de todos.

Percebi que se possuísse os documentos “secretos” do caixa dois teria um trunfo na justiça. Certa ocasião, fui à tal sala discreta da contabilidade e, quando peguei uma pilha de documentos para assinar recibos atrasados, perguntei à contadora: “Puxa, vocês não tem medo que alguém use esses papéis em um processo contra a escola ?”. A mocinha respondeu, “Ah, mas é por isso que esses papéis nunca saem dessa sala”. Foi o sinal. Larguei a caneta e, para sua surpresa, pus a pilha de documentos debaixo do braço e saí correndo pela escola.

Foi uma fuga maravilhosa. Ninguém poderia imaginar: um professor correto, correndo desabaladamente pelos corredores da administração, passando como um foguete em frente à sala do proprietário-estelionatário (que nada sabia do que se passava), atravessando a sala de espera, onde pais de alunos não entendiam o porquê da correria (claro, com a mocinha da contabilidade bufando atrás de mim). Passamos correndo pelo pátio, pegamos o corredor lateral que dava para a saída da escola, ela gritando “Pare ! Volte!”. Próximo ao portão, ela ainda tentou gritar para o porteiro que me detivesse: “Não deixe ele sair !”. Cumprimentei o porteiro, velho conhecido, alcancei a rua e parei, exausto. A mocinha, ofegante, me alcançou, mas já não era mais possível nenhuma ação. Apenas olhei para ela e para a escola atrás dela, onde algumas pessoas já olhavam pela janela, e me ocorreu que jamais voltaria naquele lugar.

Foi uma saída espetacular.

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Tento estabelecer claramente os significados de fugir e sair. O que diferencia um ato do outro ? A meu ver, sair dá idéia sobretudo de deslocamento. Mas o que faz esse deslocamento diferente do fugir ? Nos dois casos pode ser um deslocamento voluntário ou não, para longe ou para perto, tanto rápido quanto devagar. Em que circunstâncias uma saída passa a ser uma fuga ? Em outras palavras, do quê, exatamente, fugimos ?

Os gregos, com a perspicácia habitual, nos ajudam. A origem mais remota da palavra fugir vem de φεύγω (feugo), às vezes aparecendo como διαφεύγω , com o acréscimo da preposição δια- (através de, por meio de). Platão usa a expressão διαφεύγει με, no sentido de “isso me escapa”, ou seja, algo que ignoro. Em Isócrates, há πολλά με διαφεύγεν, que quer dizer “esqueci muitas coisas”. Aqui começamos a descobrir do que fugimos. Fugir significa não pertencer mais ao pensamento, o que põe em jogo o esquecimento. Na fuga, lidamos com a memória, saímos de uma situação ou de algo que não queremos mais que faça parte de nosso pensamento. Será que esse algo é uma parte de nós ? Quando fugimos, apagamos alguma coisa, criando assim um espaço em branco que pode ser construído talvez da forma que quisermos.

E é por isso que existe algo de transcendente em toda fuga. A fuga deve ser dramática, não existe fuga insidiosa ou discreta, pois esta se confunde com o mero desaparecimento. Um fuga não deve ser o fim, mas o início, pois quando fugimos nos reinventamos. A fuga significa fazer tábula rasa do passado, gerando a possibilidade de começar de novo, e é esse o sentido que aproxima o fugir da filosofia. Na filosofia devemos nos perguntar sobre as coisas que parecem óbvias, mas que descobrimos que não são: toda filosofia parte da fuga do senso comum, do mero entendimento das coisas ao nosso redor como dados.

Porém, às vezes pensamos estar fugindo quando simplesmente não enfrentamos. Pois há aqueles que fazem da fuga um modo de vida, e isso acaba impedindo a criação de qualquer coisa, ou mesmo a constituição de um eu. Nesses casos, no espaço em branco deixado pela fuga constrói-se um nada avassalador.

domingo, 2 de agosto de 2009

Senzala




Para quem foi para Ouro Preto, uma foto da senzala da Casa dos Contos, tal como era antes do verdadeiro crime museológico que presenciamos. Segue abaixo uma cópia da carta que enviei para a direção da Casa dos Contos no ano passado e que, como vimos, acabou não resultando em nada.


Ouro Preto, 15 de julho, 2008

Para:
Direção da Casa dos Contos
Centro de Estudos do Ciclo do Ouro
Ouro Preto, Minas Gerais

Prezado senhor,

Como professor de História do Curso Anglo de São Paulo (centro de excelência na preparação para vestibulares desde a década de 1950), tenho tido oportunidade de visitar a Casa dos Contos com grupos de alunos nos últimos dez anos. Trata-se, sem dúvida, de um dos pontos altos da viagem anual do Curso para as cidades históricas de Minas Gerais e sempre me chamou atenção o cuidadoso trabalho de restauração e exposição aí realizado.

Recentemente, tive a surpresa de constatar que a senzala foi transformada em uma sala de exposições, completamente tomada por mostruários e vitrines contendo uma infinidade de objetos que, apesar de bastante interessantes, acabaram por “matar” aquele espaço, tão significativo no conjunto da edificação.

O espaço vazio, silencioso e sombrio da senzala sempre foi um local privilegiado para a evocação da trágica experiência da escravidão e, mais de uma vez, observei meus alunos adolescentes em momentos de profunda introspecção (e, certamente, reflexão) diante do sentimento de ausência proporcionado por aquele espaço.

Agora, infelizmente, a senzala se encontra paradoxalmente cheia (de objetos) e vazia (de significado). Sua singularidade foi perdida: a quantidade excessiva de objetos expostos não apenas é desnorteante como desvia a atenção da própria senzala, hoje transformada em uma sala como outra qualquer. Seus mostruários evocam as vitrines dos afamados “shopping centers”, transformando uma experiência historicamente densa em um mero simulacro da experiência do consumo: a história deixa de abrir uma possibilidade de reflexão e dá origem à uma atividade banal, empobrecida. (Insisto: essa perda de sentido contrasta com a própria riqueza dos objetos expostos que, francamente, devem ser retirados daquele espaço).

Impossível não lembrar do conceito benjaminiano de aura: “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja”. A de senzala foi jogada no lixo, a experiência de uma visita à Casa dos Contos é hoje bem menos interessante do que outrora. E, para os que a conheceram no passado, trata-se de uma experiência quase angustiante.

Acredito que a Direção da casa dos Contos levará em consideração minhas observações, no seu objetivo de preservar a memória de Ouro Preto, compreendendo e valorizando a História e a preservação da memória não como espetáculo, mas, sobretudo, como instrumento de reflexão.

Atenciosamente,

Gianpaolo Dorigo

- Bacharel e Licenciado em História pela Universidade de São Paulo
- Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
- Bolsista do CNPQ junto ao Museu Paulista da USP (Museu do Ipiranga) em 1987-1989.
- Pesquisador visitante junto ao
Musée Royal de l’Armée et d’Histoire Militaire de Bruxelas, Bélgica (1990)
- Professor do Curso Anglo-vestibulares desde 1991.
- Autor de livros didáticos de História e Filosofia para Ensino Médio pelas editoras Scipione e Anglo.
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PS.: Sobre o termo "local de memória" (lieu de mémoire), conforme usei neste ano: trata-se de conceito de largo uso na historiografia francesa recente, cunhado pelo historiador Pierre Nora. O também historiador, inglês, Colin Jones explica: "Designa uma instituição ou local em que se focou a consciência histórica de um povo e que ao longo do tempo recebeu contínuas incrustrações da memória coletiva".