quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Tristeza




É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não

Não lembro quando foi a primeira vez que ouvi o Samba da Benção (por Vinicius de Moraes e Baden Powell), mas sei exatamente quando parei para prestar atenção na letra e em seguida chorei feito adulto. As circunstâncias não interessam, mas sim o fato de que se trata de um dos textos mais belos que jamais li. O contraste com Tom Jobim (“Tristeza não tem fim/ Felicidade sim”) é assustador: enquanto Vinicius – o branco mais preto do Brasil – ultrapassa com sua poesia o próprio conceito de tristeza, Jobim fica desfilando uma sucessão de lugares comuns (“A Felicidade é como uma gota de orvalho numa pétala de flor...”), nos fazendo suspeitar que, na verdade, ele não tem a mínima idéia do que está falando. Pois Vinicius já enterra a alegria logo de início, dizendo que é a melhor coisa que existe, para em seguida não mais voltar a falar no assunto. Porque o seu tema é a tristeza, e se não fosse tristeza não haveria o samba, a canção, a poesia. Sem tristeza não haveria arte e é a arte que nos ensina a lidar com essa estranha dimensão do humano que é a tristeza. Lembro de Cruz e Sousa, poeta negro (é curioso como a cor da pele aparece tanto quando se fala do assunto), chamado por Leminski de “Blues e Sousa”, e que como poucos sentiu a violência discriminatória, a dor de ser negro no Brasil. E escreveu: “Mas essa mesma algema de amargura/ Mas essa mesma desventura extrema/ Faz que tu’alma suplicando gema/ E rebente em estrelas de ternura”.

Senão, não se faz um samba não
Senão é como amar uma mulher só linda
E daí? Uma mulher tem que ter
Qualquer coisa além de beleza
Qualquer coisa de triste
Qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza
De se saber mulher
Feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor
E pra ser só perdão

Lembro da crítica rasteira, burra, dizendo que Vinicius era um porco machista, que só via na mulher um objeto, “feita apenas para amar” e, pior, “Para sofrer pelo seu amor e pra ser só perdão”. A crítica é uma ciência grave, e que dela se afastem os que não entenderam nada. Na verdade, não existe nada menos machista do que “Uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza”, e segue-se a isso uma investigação sobre essa “qualquer coisa” tão misteriosa que as mulheres têm e que os homens desconhecem. Sofrer por amor ? Perdoar ? Que mistérios são esses, que comportamento estranho é esse que as mulheres têm ? E que as faz praticar essas coisas tão estranhas como amar, sofrer, perdoar... No Samba da Benção, Vinicius sugere que a mulher é capaz de uma transcendência, de algo que a coloca em contato com aquelas coisas das quais nós, pobres homens, só conseguimos nos aproximar através da arte. E essa transcendência, na verdade, é uma operação interna: mulheres não “entram em contato”, elas tem essa sensibilidade como parte integrante de seu ser. Talvez seja esse o sentido do “qualquer coisa de triste” que a mulher tem: a tristeza enquanto metáfora de um universo emocional que os homens apenas tateiam e tentam dar forma com suas criações externas, artísticas. Como o samba.

Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não

Hoje em dia pratica-se o culto à alegria. Ao menor sinal de tristeza, surge a suspeita de que isso seja o sintoma de algo pior, e a própria suspeita já mergulha o indivíduo no vórtex que leva à depressão: consulta, tratamento, ingestão de substâncias químicas e, no horizonte, o medo que resulta em pânico. Mas medo de quê, exatamente ? De não ser feliz como devemos ser felizes ? (aliás, a expressão por si só já é assustadora: "dever ser feliz"). Oras, a contemporaneidade elegeu a tristeza como inimigo, mas quem disse que nosso tempo é mais feliz que os outros ? Francisco Bosco, meu filósofo pop preferido, cita a leitura que Delleuze fez de Espinosa. A alegria ocorre quando se dá a realização de uma potência. Um escritor conquista a potência através do domínio da linguagem, um pintor através do domínio das cores e formas, e assim por diante. Portanto, não existe produção artística triste: todo blues melancólico que possui como tema o sofrimento, deixa de ser triste por ser a realização de uma potência. No fundo, a tristeza aponta para alguma coisa misteriosa, para algum lugar certamente dentro de nós mesmos. E no Samba da Benção, Vinicius termina por desvendar todo o mistério da tristeza: o bom samba “é uma forma de oração”, trazendo implícito que a fé e mesmo a esperança estão por trás de toda a tristeza. Pois um dia ela vai deixar de ser triste e, enquanto isso não ocorre, ouvimos um samba.


Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração




terça-feira, 15 de setembro de 2009

Primeiro aniversário




E eis que o blog completa um ano. Comemoro comendo bolo e lembrando três campeões de audiência:

Ouro Preto – 4 de junho, 2009 – 26 comentários

O texto deve ter mexido com as lembranças de quem foi na viagem (de fato, ninguém permanece indiferente a Ouro Preto). Além disso, falar sobre essa viagem mexe com a minha memória, com camadas espessas de memória que eu vou depositando naquela cidade a cada ano. Talvez daí o recorde de comentários: desde há muito percebi que quanto mais o texto desvenda algo essencialmente “meu”, mais ele tem leitores ou provoca comentários (de fato, os muitos textos que escrevo pensando a cidade tem uma média de leitura muito inferior; minhas ambiciosas resenhas cinematográficas então, quase passam desapercebidas). Desde o nascimento do blog, tento fugir do confessional, mas lentamente descubro que o texto ideal é aquele que parte do comentário sobre o fato corriqueiro para em seguida tentar desvendar algo do mundo.

Lazare Ponticelli – 16 de setembro, 2008 – 23 comentários

O obituário de Ponticelli, último soldado francês sobrevivente da Primeira Guerra Mundial. O texto saiu em The Economist, simplesmente traduzi e divulguei, após leitura em aula. Muito mais que um mero obituário, o texto fala de memória e talvez tenha sido a razão de sua aceitação. Mas confesso que me surpreendi com o sucesso do texto, e me impressiona mais ainda os 15 comentários em três dias, recorde total.

Che cossé l’amor – 31 de agosto, 2009 – 22 comentários

Escrito meio apressadamente, para dar conta de um tema que estava sempre à espreita e que era pedido por alguns. De propósito, deixei de lado a única visão do que talvez possa ser chamado de amor de fato: o amor unilateral, que não espera retorno, o amor incondicional, o amor de mãe por exemplo. A ironia foi deixar uma pista na trilha sonora: a divertida música de Pio Leyva – cubano das antigas – “Amor verdadero”, que conta a história de um desgraçado que foi abandonado por tudo e por todos, exceto pela mãe. Mas os leitores se apressaram em me apontar essa visão de amor, seja pessoalmente, seja em comentários. Por exemplo, na bela citação de Vieira (que eu não conhecia), mandada pela Mari:

Ora, vede, definindo S. Bernardo o Amor fino, diz assim: 'Amor non querit causam, nec fructum'; o Amor fino não busca causa nem fruto. Se amo porque me amam, tem o amor causa; Se amo para que me amem, tem fruto: o Amor fino não há de ter por quê nem para quê. Se amo porque me amam, é obrigação, faço o que devo; Se amo para que me amem, é negociação, busco o que desejo. Pois como há de amar o amor para ser fino? 'Amo, qui amo, como ut amem': Amo porque amo e amo para amar. Quem ama porque o amam é agradecido; Quem ama para que o amem é interesseiro; Quem ama, não porque o amam, nem para que o amem, esse só é fino.
.
Também deixei de lado uma referência básica, O banquete, e a única pessoa que de alguma forma intuiu a opinião de Platão sobre amor foi certa comentarista anônima ("Ana") que, apesar de uma parca educação (e de uma contradição de termos) sugeriu que o discurso sobre amor jamais poderia ter um sujeito enunciante.

Seja como for, agradeço aos que acompanham o blog e espero que todos tenham tido, enquanto liam, ao menos metade da diversão que eu tive enquanto escrevia. Abraços e feliz aniversário !