segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Aqui jazz




Aos 14 anos, eu me achava o máximo da malandragem ao cortar o cabelo no glorioso “Aqui Jazz – Cabeleireiros”, que existe ainda hoje diante do Cemitério da Aclimação. O local atraía todo o tipo de doidões e esquisitões do bairro, bem como qualquer jovem cabeludo que se achasse alternativo. No meio desse verdadeiro circo, despontava a figura do proprietário, o Magrão, sempre acompanhado de seu fiel braço direito, o Ameba, que eu desconfiava estar eternamente chapado.

É estranho que os cabeludos do bairro tivessem como ponto de encontro justo uma barbearia, mas isso diz muito sobre o frouxo grau de radicalismo dos jovens de classe média da época. Os anos de ouro do Movimento Jovem já haviam acabado há muito e, sob o peso da repressão dos últimos anos do Regime Militar (por essa época, também bastante frouxa), nosso radicalismo se limitava a ouvir discos de rock, dos dinossauros do rock (The Who, Deep Purple, Led Zeppelin) e a olhar com desprezo a moçadinha que ia dançar nas tardes de sábado ao som da disco music de então (Donna Summer, Sylvester e – deus me livre ! – Bee Gees). No "Aqui jazz", preferìamos aquelas bandas que dificilmente tocavam no rádio, exceto por uma ou outra baladinha besta do tipo Stairway to heaven. E, claro, nada de jazz.

Na época, quando se falava em jazz, eu pensava em algo do tipo dixieland, que era cultivado por umas poucas bandas em São Paulo. Das atrações estrangeiras que aqui chegavam, quase todas se esmeravam no fusion ou em outros sons experimentais e, convenhamos, começar a ouvir jazz por aí é um tiro no pé. Nunca esqueço um show de Chick Corea, transmitido pela TV Cultura, quando o músico americano sentou-se diante de um magnífico piano de cauda, inclinou-se diante de sua tampa aberta e começou a batucar na madeira do piano, para delírio da platéia e minha perplexidade total. Eu ainda levaria anos para conhecer o verdadeiro jazz, que foi vanguarda nos anos de 1920 e 1930, e que acabou dando origem a bebop, west coast e outras maravilhas.

Porque o jazz é feito de nuances, e pedem um ouvido minimamente competente. Da minha precária formação musical, resultou o longo tempo que levei para educar os ouvidos, sem método nenhum, sem conhecimento técnico, apenas ouvindo milhares e milhares de músicas, de todos os tipos, sem parar, ao longo de muitos anos. Acredito que todas as pessoas que gostam de música um dia chegam no mesmo ponto e passam a ouvir música adulta, jazz, ou mesmo música clássica.

Na verdade, não só o jazz, mas o mundo é feito de nuances, e é pena que elas se percam por simples desconhecimento. Nas aulas, enfatizo as nuances e as múltiplas leituras de obras de arte, eventualmente de uma ou outra música, do clássico ao blues. Mas não são apenas quadros, todo a natureza, todas as pessoas podem ser lidas de mil formas. Recentemente, em um alegre colóquio, até me falaram sobre as múltiplas leituras que são possíveis a partir da observação de um olho e de suas sutis mudanças de cores.

[Interlúdio pop: lembram-se do filme A garota com o brinco de pérola ? (se não conhecem, assistam). No filme, o pintor Vermeer diz para a jovem Griet (Scarlett Johansson, em um de seus primeiro papéis) olhar o céu e dizer a cor das nuvens. A moça, mal olhando pela janela diz, “Oras, elas são brancas”. Porém o pintor insiste e diz, “Olhe bem, olhe com atenção. Todas elas. São brancas mesmo ?” E o olhar da jovem Griet começa a perceber milhares de nuances e reflexos e texturas que ela, maravilhada, jamais havia percebido. Pois o grande livro do mundo nos fala o tempo todo, e é inesgotável a reserva de símbolos que ele emprega, como dizia o frei Guilherme em O Nome da Rosa. Ainda no registro da cultura pop, lembro de um episódio de Sex and the City, quando Carrie namorava um músico de jazz. Ele pergunta se ela gosta desse tipo de música e ela diz, “mas como vou gostar de um tipo de música que não se pode cantar junto, não se pode dançar ?” Trata-se de outra relação com a música, válida (por que não ?), mas que nada tem a ver com a sutiliza instrumental do jazz. Me arrisco a dizer que talvez mulheres se liguem à música com mais facilidade através de outros registros, por exemplo, o corpóreo: através da Dança.]

Porque o jazz tem alma. Assim como o blues, uma mesma canção de jazz é diferente cada vez que é tocada novamente. São os mesmos acordes, a mesma letra, a mesma tudo, e ainda assim a música sai diferente. Paradoxalmente, na música pop, canções diferentes parecem ser todas a mesma coisa. É por isso que muitas vezes os CDs de jazz apresentam, por exemplo, música 1, “Bag’s Groove – take one”; música 2, “Bag’s Groove – take two”; música três, “Bag’s Groove, take three”, e assim vai.

E porque é impossível falar do jazz sem falar da história do jazz (enquanto boa parte da música pop se resume ao mero aqui agora). Me encanta a história da disseminação do jazz, de como ele foi sendo descoberto no mundo inteiro. A Primeira Guerra Mundial foi decisiva, quando soldados norte-americanos (incluindo cerca de 200 mil negros) foram para a Europa, particularmente para a França, levando suas armas e seus instrumentos musicais. Após o conflito, muitos músicos negros ficaram, outros para lá se mudaram, fugindo da segregação racial e criando uma nova vida, com muito mais dignidade. Como o clarinetista Sidney Bechet e o trompetista Arthur Briggs, aos quais se juntou a cantora e dançarina Josephine Baker, todos atuando em Paris.

Na Alemanha, o jazz foi copiado por músicos brancos, e mais tarde acabou sendo considerado uma arte degenerada pelo regime nazista recém instalado; vejam no magnífico poster acima, como o jazz era visto pelos alemães. Na União Soviética, o grande desenvolvimento da música clássica sempre foi acompanhado da dedicação de seus músicos ao jazz, nas horas vagas. A cidade de Odessa, chegou a ser conhecida durante algum tempo como a New Orleans soviética, onde despontava a banda de Leonid Utyosov.

No início da Segundo Guerra Mundial, o gênero já estava estabelecido, e pode-se até dizer que o swing de bandas como a de Benny Goodman e Glenn Miller (que morreu na guerra) foram a trilha sonora do conflito. Mas nessa época já estava nascendo o bebop e, da mesma forma que no final da Primeira Guerra, ao final da Segunda não foram poucos os americanos que ficaram pela Europa, voltando a encher de jazz os cabarés esfumaçados de Berlim e Paris da Guerra Fria. Nessa época, mudou-se para Paris o saxofonista Johnny Griffin, e Sidney Bechet começou a ser chamado de “Le dieu”/“o Deus” pelos existencialistas. Também nessa época, Josephine Baker foi condecorada pelo próprio general De Gaulle, pelos serviços prestados junto à Resistência Francesa contra os nazistas.

Finalmente, chego onde queria: há cidades que incorporaram uma vocação jazzística, e Paris é, de longe, a mais importante delas. Outrora, os bares de jazz se multiplicavam na região de Montmartre, hoje em dia já é mais difícil encontrá-los. Mas, quando viajo, ainda gosto de freqüentar um ou outro porão onde se toca o bom jazz em Paris (e a aproximação da viagem do Anglo para a França me faz pensar se devo levar os jovens para algum desses adoráveis buracos). Para sentir o gosto do ambiente de jazz na capital francesa, recomendo uma das melhores programações de jazz do rádio, em http://www.tsfjazz.com/ (clique em “écouter l’antenne”). E divirtam-se.

sábado, 17 de outubro de 2009

Do não-negativismo enquanto paradigma



Gostei da escolha do Rio de Janeiro como sede da Olimpíada de 2016, mas não pelos jogos em si, que acho uma bobagem entediante. Em geral, considero os esportes olímpicos de uma tremenda infantilidade: apostar corrida, ver quem pula mais alto, ver quem é mais forte. Tais modalidades Olímpicas são simples celebrações da força bruta, e convém lembrar que Jogos Olímpicos nasceram (Grécia Antiga) ou renasceram (Europa, 1896) em épocas marcadas pela valorização da guerra ou da figura do guerreiro habilidoso, algo que, sinceramente, já deu o que tinha que dar. Acredito que hoje em dia as Olimpíadas (e mesmo o futebol) se consolidam devido à possibilidade que esses eventos têm de transferir para arenas neutras um certo furor nacionalista (proto-fascista) que de alguma forma todos possuímos, sublimando assim o nosso eventual e sempre desconfortável desejo de sangue. (ando lendo muito Luis Felipe Pondé, raios...)

Desprezo esportes olímpicos da mesma forma que na infância não achava graça nenhuma em apostar corrida (eu sempre perdia; hoje em dia me vingo escrevendo um blog). A melhor crítica ao esporte que vi está em um dos meus filmes preferidos de todos os tempos, que é também um dos cinco filmes que eu levaria para uma ilha deserta (e que, curiosamente, trata de uma ilha deserta ), chamado Man Friday (no Brasil, Sexta-feira). Há um trecho absolutamente impagável de competição esportiva, uma corrida na praia entre Robinson Crusoé e Sexta-Feira, seguido de uma premiação patética ao som do grito das gaivotas. Mais eu não conto, apenas recomendo VIVAMENTE o filme.

Esportes com bola, por sua vez, tem outro significado. Primeiro porque incorporam um aspecto lúdico, de diversão, que vai muito além das brincadeiras infantis baseadas na força. Segundo, porque esportes com bola possibilitam uma enorme gama de movimentos corpóreos, que acabam muitas vezes por aproximá-los da dança, antítese da força bruta. E, finalmente, porque implicam em algum tipo de planejamento ou de estratégia para a vitória que traz junto alguma atividade do pensamento. Nesse sentido, esportes com bola têm como pré-requisito algo de minimamente cerebral, e não deixa de ser irônico observar que jogadores de futebol semi-alfabetizados e nada intelectualizados sejam dotados de uma capacidade de processamento de informação (articulando espaço, tempo, movimento) absolutamente surpreendente.

Isso para não falar das infinitas metáforas. A multiplicidade de eventos possíveis em uma mera partida de futebol abre-se para leituras que admitem “o épico, o trágico, o lírico, o cômico e o paródico”, citando o livro de José Miguel Wisnik, Veneno remédio: o futebol e o Brasil. Trata-se de um livro indispensável, de que se falou tão pouco, mas que deveria ser leitura obrigatória para entender o país, o esporte. Vejam por exemplo, os trechos brilhantes onde Wisnik comenta a Lógica do futebol, a onisciência do juiz e a questão do tempo.

Curiosamente os esportes com bola norte-americanos ainda se prendem à celebração da força bruta. Assim, no futebol americano, trata-se do embate puro e simples de dois corpos coletivos em função da ganho de terreno (diante do futebol americano, o Rugby passa a ter uma leveza insuspeita). Ou mesmo o baseball e o basquete (o mais plástico de todos os esportes norte-americanos), que são praticados de forma a repetir infinitas vezes um repertório reduzido de movimentos, produzindo dados em larga escala e permitindo o processamento desses dados em séries estatísticas infinitas. No futebol, séries estatísticas tem algo de patético e não costumam dizer nada.

Seja como for, celebro a escolha do Rio de Janeiro como sede olímpica por dois motivos que nada tem a ver com o esporte. Primeiro, porque nossas cidades estão tão degradadas, mas tão degradadas que qualquer operação urbana torna-se indispensável, nem que para isso tenha que haver uma Olimpíada. Um evento como esse ajuda a pensar a cidade, a refletir sobre o tecido urbano. Um evento como esse significa que o mundo vai pousar os olhos sobre a cidade e, o que temos a oferecer ? Falta de metrô ? Fiação elétrica em postes ? (minhas duas atuais nêmesis...) Intolerável ! Pois então pensemos na cidade e mãos à obra. “Ah, mas a roubalheira...”, isso é outro problema, que deve ser encarado com Olimpíada ou sem Olimpíada. E que o imenso volume de recursos mobilizados seja motivo para que se encare o problema como nunca.

Porém, há um outro aspecto no Rio de Janeiro enquanto cidade olímpica. Nos últimos anos, as sedes de Olimpíadas ou são cidades normais de países em condições de receber tal tipo de mega evento (Londres, Sydney, Atlanta, Barcelona), ou cidades simbólicas (Atenas e não há outra), ou cidades emergentes, de países cuja “normalidade” é reconhecida (Seul, Pequim). Não tenho dúvida sobre o grupo onde Rio de Janeiro se encaixa. Pois há no ar esse estranho otimismo em relação ao Brasil, esse estranho reconhecimento de que o país, apesar dos seus problemas, é como os outros, e respeitável a ponto de sediar um evento como a Olimpíada.

Trata-se de uma mudança de paradigma. Nos acostumamos a pensar o Brasil como um lugar onde nada dá certo e, de fato, nada deu certo nas décadas de 1980 e 1990. Foi a época da grande estagnação (e, que lindo, também foram meus verdes anos !), que se prolongou até o início do novo século e que fez com que adotássemos o pessimismo realista como forma de enxergar o Brasil. O último momento de otimismo, o milagre econômico dos anos 1970, provou ser uma mentira: um crescimento falso, fundado em uma dívida que um dia explodiu. Se lembrarmos que a década de 1960 foi de crise política e ditadura, constatamos que o clima otimista simplesmente desapareceu ou nunca existiu na memória das pessoas. A última vez que ouvimos um discurso positivo sobre o Brasil, ele foi pronunciado pelo regime Militar nos anos 1970, e descobrimos em seguida que era uma mentira.

A escolha do Rio de Janeiro pode representar uma mudança de paradigma na forma como enxergamos o Brasil. Claro, rejeitamos qualquer otimismo inocente (pois a miséria, a violência e a disseminação de práticas políticas arcaicas batem à porta). Porém, ao mesmo tempo, desconfiamos que o pessimismo pode ser paralisante. Acho que finalmente chegou a hora do não-negativismo.


domingo, 11 de outubro de 2009

Refletindo sob(re) a chuva



Mal tinha dez anos quando comecei a falar da “minha chuva preferida”: é aquela que aparece nas primeiras páginas de “O Caso Girassol”, 17º volume das aventuras de Tintim, na edição cânone de 22 álbuns. Trata-se de uma narrativa soberba, poucas vezes um autor de história em quadrinhos foi tão feliz quanto Hergé na abertura de “O Caso Girassol”. Para recordar, a história começa com Tintim e o Capitão caminhando serenamente pelo campo, quando são surpreendidos pelo trovão que anuncia uma tempestade. A chuva marca o início de uma sucessão de fatos tremendamente perturbadores, que incluem raios cada vez mais próximos, corte na energia elétrica, chegada de personagens misteriosos e ameaçadores, tiros no parque, buracos de bala, vítimas que desaparecem e, sobretudo, vidros se estilhaçando por todos os lados. Todo o universo tranquilo e muito bem conhecido do castelo de Moulinsart desmorona a partir do início da tempestade.

Garoto, eu corria para reler pela centésima vez “O Caso Girassol” cada vez que uma tempestade de verão se anunciava. Tinha um estranho prazer em começar a ler a aventura ao mesmo tempo que percebia as inúmeras mudanças provocadas pelo início iminente da chuva: o vento morno que precede as tempestades de verão, portas e janelas batendo, gritos vindos dos fundos das casas vizinhas, na medida em que as donas de casa corriam para pegar a roupa estendida no varal. Logo, gotas imensas começavam a cair, lentamente preenchendo todo o espaço do chão seco, ao mesmo tempo em que um cheiro único, indescritível, se desprendia do chão, algo como uma mistura de vegetação e de pedra, mofo, cimento.

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Que estranha atração é essa que a chuva provoca ? Além de estranha, inesperada: apenas recentemente, graças ao Twitter, descobri como as pessoas gostam da chuva, anseiam pelo início da chuva e talvez de alguma forma se descubram sob a chuva. Na minha vida, fui acrescentando várias outras chuvas ao meu repertório de preferidas: a chuva ácida que cai sobre Los Angeles no futurista Blade Runner, a chuva interminável sobre Macondo em Cem Anos de Solidão. Ou ainda em um esquecido filme francês da década de 1950, Rififi. Seu diretor, o norte-americano Jules Dassin, fugitivo do macartismo, recriou a atmosfera do film-noir em Paris, fotografando a cidade de forma única: sem nenhuma das paisagens que fizeram a fama da cidade, mas apenas mostrando uma sucessão de ruas sempre molhadas, sempre após a chuva, sempre em preto e branco. (Subitamente, lembro de Walter Benjamin falando sobre a beleza do Sena: o rio é belo porque reflete a cidade, duplicando Paris).

Porém, as descrições de chuva na Lisboa de Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa) são particularmente tocantes. Copio fragmentos de uma de suas descrições da chuva, no caso, de um final de tempestade:

Depois que os últimos pingos da chuva começaram a tardar na queda dos telhados (...) ouviu-se o abrir de janelas contra o desesquecimento do sol. Então, pela rua estreita, do fundo da esquina próxima, rompeu o convite alto do primeiro cuteleiro, e os pregos pregados nos caixotes da loja fronteira reverberaram pelo espaço claro (...)

O silêncio que sai do som da chuva espalha-se, num crescendo de monotonia cinzenta, pela rua estreita que fito. Estou dormindo desperto, de pé contra a vidraça, a que me encosto como a tudo. Procuro em mim que sensações são as que tenho perante esse cair esfiado de água sombriamente luminosa que destaca das fachadas sujas e ainda mais, das janelas abertas. E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou (...)

Mas que pensava eu antes de me perder a ver ? Não, sei. Vontade ? Esforço ? Vida ? Com um grande avanço de luz, sente-se que o céu é já quase todo azul. Mas não há sossego – ah, nem o haverá nunca ! – no fundo do meu coração, poço velho ao fim da quinta vendida, memória de infância fechada ao pó no sótão da casa alheia. Não há sossego – e, ai de mim !, nem sequer há desejo de o ter...

Foram esses trechos que me ajudaram a refletir sobre a chuva. O início e o fim da chuva são dois momentos em que o mundo – ou , mais precisamente, a cidade – se transforma diante de nossos olhos. Trata-se, portanto, de dois momentos privilegiados para contemplar o mundo a nossa volta e entendê-lo, talvez até a achar nosso lugar dentro dele. O início ou o fim da chuva representam um limiar, em que nossa faculdade de observação e compreensão das coisas é despertada: é quando desaparece o nosso olhar "de sempre", desprovido de sentido, com o qual contemplamos uma realidade cotidiana que se repete infinitas vezes e no qual estamos imersos. Em outras palavras, desaparece um olhar que é pura objetividade, e que nos mostra uma sucessão de atividades banais, de coisas entediantes e repetitivas que fazem grande parte de nosso dia a dia. Quando ultrapassamos o limiar, graças as mudanças provocadas pela chuva, emerge nossa subjetividade, que acaba por dar contexto e significado às coisas, que nos faz descobrir um sentido que está oculto na banalidade que, descobrimos, é só aparente. Assim, a paisagem vista pela janela mil vezes da mesma forma passa a apresentar uma multidão de figuras novas: o grito do cuteleiro, o martelar de pregos (ou mesmo a corrida da dona de casa rumo ao varal de roupa) todos eles vão ganhando forma e ocupando o universo das sensações a nossa volta, mais ou menos como um artista começa a despejar cor sobre uma tela. A cidade vai tomando forma como um organismo vivo diante de nossos olhos, e as infinitas particularidades que acabam por formar o todo, perdem o seu caráter de forma única a passam a ser uma construção cultural, um sentido.

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Volto para o Tintim. Na página 2 de “O Caso Girassol”, a chuva despenca com intensidade, e fatos perturbadores logo irão começar. O primeiro deles encontra-se no último quadrinho da página, um dos meus quadrinhos preferidos em toda obra de Hergé, e cujo significado total eu demorei a perceber. Na imagem, Tintim, o Capitão e o “bravo” Nestor correm da chuva, sem saber que estão sendo observados por um espião da Sildávia. Mas, no mesmo quadrinho, um espião da Bordúria observa o espião sildavo que observa nossos heróis. E, nessa estranha operação do olhar, nesse verdadeiro ziguezague de olhares que se superpõem sem nunca se cruzarem, há ainda um outro: o do leitor, que é o único que tem conhecimento do que acontece, o único que vê tudo.

Ter a experiência da chuva nos dá a ilusão de poder tudo saber, de quem sabe poder construir o mundo onde estamos, a partir de seu aparente desmembramento. E isso é o que mais desejam todos aqueles amantes da chuva, que não superaram a sensação de estranheza e desassossego que é estar no mundo.