quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Feliz 2010


O tal do Cristo devia ser um cara impressionante. Morreu e as pessoas não pararam de falar dele, mais ou menos como o Sócrates. O problema é que algumas pessoas começaram a tentar monopolizar a herança de Cristo e criaram um troço chamado “igreja”, uma chatice. Já pensou se tivessem feito o mesmo com o Sócrates ? Os diálogos de Platão seriam lidos como um Evangelho, e os templos teriam por trás do altar uma taça de cicuta ao invés de um crucifixo. Numa eventual missa, o sermão seria substituído pelo diálogo com os crentes. Provavelmente o próprio sentido de crença seria discutido, e se o padre fosse um bom dialético, faria os fiéis duvidarem da sua crença: assim, a religião socrática teria como seu principal fim não salvar a alma, mas salvar seus membros da crença em uma única fé. Seria uma religião suicida e, cá entre nós, ela já existe com o nome de Filosofia, devidamente cultuada em grandes templos chamados Universidades.

Mas, divago. O que me preocupa é a forma como o aniversário do Cristo deu origem aos rituais natalinos que celebramos todo ano, religiosamente (ha! “religiosamente”!), queiramos ou não, acreditemos em religião ou não. Os três principais rituais natalinos são 1) trocar presentes; 2) falar sobre um certo “espírito natalino” e praticar coisas como sorrir para quem não gostamos e dar gorjetas para quem mal sabemos da existência durante o ano todo; 3) comer feito porcos gordos. Sobre presentes e espírito natalino, já falei no ano passado divirtam-se em http://bit.ly/6qsWeI . Sobre comer...

A.J.Liebling, meu gordo preferido, escreveu: “Mens sana in corpore sano é uma contradição em termos, uma fantasia de quem acha possível ter simultaneamente duas coisas excludentes. Ninguém em seu juízo perfeito pode se dar ao luxo de abrir mão dos prazeres debilitantes; nenhum ascético pode ser considerado sadio a ponto de merecer confiança. Hitler foi o arquétipo do homem abstêmio. Quando, na cervejaria, os outros alemães viram que ele estava bebendo água, deviam ter percebido logo que não era confiável”. Por trás do fragmento, há uma visão mordaz tanto sobre a crítica gastronômica quanto sobre a então “nova” cozinha francesa (velha já de anos), que introduziu o hábito das porções minúsculas. Liebling acreditava que o verdadeiro prazer de comer tem a ver com “fome”, ou melhor, com “gula”, que é a transformação da comida em objeto de prazer.

Acredito que seja possível fazer uma crítica gastronômica racional. Qualquer pessoa pode discorrer, com o devido treino, sobre ponto de cozimento, textura, complexidade de sabores. Mas fica faltando algo, que é nada menos que o gosto pela comida, ou melhor, o desejo pela comida, o que significa considerar o ato de comer como uma experiência que merece ser chamada de carnal, muito mais que sensorial. Falo aqui sobre a volúpia de comer

A volúpia faz do ato de comer algo que vai além da experiência animalesca (comer para sobreviver) e da própria experiência humana (discurso racional sobre o alimento). Comer voluptuosamente significa uma experiência radical, que nos aproxima do divino. Lembro dos textos de Benjamin sobre a comida, mais especificamente sobre comer figos: “Jamais provou uma iguaria, jamais degustou uma iguaria quem sempre a comeu com moderação. Assim se conhece talvez o prazer da comida, mas nunca a avidez por ela, o desvio do caminho plano do apetite, que leva à mata virgem da comezaina. É na comezaina, a saber, que estes dois se reúnem: a imoderação do desejo e a monotonia com que ele se sacia. Comer, isto significa antes de tudo: comer radicalmente”.

[Interlúdio pop: em Seinfeld, George Costanza - sempre ele - exemplifica os prazeres da vida de solteiro com a possibilidade de comprar um queijo inteiro para nele enterrar a boca, mordendo a ponto de esfregá-lo na cara como uma almofada, chafurdando em um mar de gostos e aromas e cores e consistências. A descrição de George é muito mais moderada, deixo aqui meu registro verbalmente exagerado de algo que no fundo também gostaria de fazer.]

Volto ao Natal e às festas de fim de ano, quando os exageros alimentares são a norma. Anos atrás, passei o fim de ano como convidado em uma família que tinha o hábito de preparar, na ceia de Natal, todas as carnes festivas possíveis: pernil, lombo, presunto, peru e chester. Para que o almoço do dia 25 não ficasse com cara de sobra, reforçava-se a refeição com uma picanha e, já que abriu a churrasqueira, umas lingüiças. Como eu era convidado, a família, de origem polonesa, fez questão de acrescentar uma iguaria típica: o delicado pirog, pastel de batata recheado com bacon e frito na banha de porco [foto]. Desnecessário dizer que adorei. Repeti os pirogs várias vezes.

Acredito que os excessos de fim de ano, sobretudo os natalinos, sejam uma forma de vingança contra os demais rituais da época. Mais do que em qualquer outra época do ano, somos obrigados a várias coisas, dar presentes, conviver com parentes (todos eles, mesmo aqueles que mal conhecemos), dar gratificações polpudas, participar de amigos-secretos, sorrir feito bestas. A cada garfada, nos vingamos, é o que nos resta. “Também te amo, tia, mas agora passa a costela”.

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PS.: Os textos de Benjamin sobre comida estão em "Imagens do pensamento", no volume II das Obras Escolhidas (Ed.Brasiliense). O fragmento de Liebling e outros textos deliciosos encontram-se no impagável Fome de Paris (Ediouro). Benjamin, coitado, era magro e chegou a passar fome. Liebling, que escrevia para a New Yorker, morreu aos 59 anos, com o fígado despedaçado e o coração entupido.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Quase auto-ajuda


Muitos perceberam a semelhança que existe, na língua inglesa, entre as palavras history/story (“história”) e storey/story (“andar” de um edifício). Os dicionários etimológicos nos informam que tais palavras têm a mesma origem no latim historia, e é uma referência, provavelmente, ao fato de que os edifícios mais altos na Idade Média européia tinham relatos pintados em sua fachada. Tais edifícios eram igrejas e os relatos, bíblicos. Acho essa explicação meio duvidosa. Se buscarmos as origens mais remotas dessas palavras, hipóteses bem mais instigantes poderão ser examinadas.

A palavra latina historia vem do grego historia (ϊστορία), uma daquelas palavras helênicas que têm vários significados: pesquisa, conhecimento, narrativa. A partir daí: historen (ίστορεω, indagar, pesquisar) e histor (ϊστωρ, homem sábio, juiz). Aprofundando um pouco mais, historia foi formada pelos gregos a partir da junção da palavra istos (ιστός) com o verbo roi (ροή, fluir). E aí vem a parte poética da coisa toda: istos literalmente significa bastão ou mastro, e a palavra é utilizada também como referência a uma determinada peça que serve para sustentar um tear. Por causa disso, um tecido trançado ou uma rede também era chamado pelos gregos de istos. Assim, história significa literalmente “a trama que flui”.

Istos, como sufixo, surge em uma infinidade de palavras gregas, sempre no sentido de firmeza, permanência, ponto fixo; remetendo sempre ao sentido original de bastão ou mastro. Assim, istemi (ϊστεμι, istos + emi, que é uma variação de “ego”, eu), significando: erguer, permanecer, ficar, instaurar, fazer surigir. Aliás, istemi deu origem ao alemão stehen e ao inglês stay. E já que estou falando em inglês, volto à questão que provocou essa reflexão: as semelhanças entre history/story e storey/story. Acredito que essa semelhança aponta para o sentido original da palavra história, que vai muito além da mera referência a paredes pintadas em igrejas medievais. De fato, acredito que quando escrevemos a história ou mesmo quando contamos uma história, o nosso objetivo é “por em pé” o passado, ou seja, ordenar nossa memória para que ela possa permanecer. É dessa forma que fazemos surgir nada menos que nossa identidade. Uma vez que o substrato da memória é o passado, acabamos por construir nossa memória (nossa história pessoal) como um edifício, com diversos andares, bem ordenados um depois do outro. A contagem numérica dos anos é uma forma extremamente prática de ordenar o passado e erguer o nosso eu, o nosso ego. Daí sim, a trama de nossa existência pode fluir à vontade, como se fosse um navio impelido pela vela solidamente presa ao mastro de nossa memória.

Recorro à essa avalanche erudita para refletir sobre o presente. É Natal, aproxima-se o ano novo. Impossível fugir das avaliações de fim de ano, da seleção de memórias que irão identificar a ano de 2009 como um dos andares de nossa existência. Esta é a época do ano em que nos dedicamos a transformar nossa vivência em memória, encontrando um lugar para o que já passou e refletindo sobre aquilo que vai continuar fazendo parte de nosso presente em 2010. Há aspectos francamente prosaicos nesse processo, pois lembraremos do ano que passou não só pelas pessoas que conhecemos ou pelos espaço que freqüentamos ou visitamos, mas também pelo universo pop no qual estamos mergulhados (e sua infinidade de músicas, filmes, vídeos); e é curioso como nem sempre temos controle sobre a construção dessa memória Como fazer com que “I gotta feeling” do Black Eyed Peas não seja a música do ano, aquela que irá nos transportar de volta para 2009 em qualquer momento do futuro que estejamos ? Ou então, como evitar identificações óbvias, do tipo “2008, ano do cursinho” e bizarras, como “2006, ano que tive hemorróidas” ?

Ainda assim, sugiro que nos dediquemos a essa tarefa de avaliação de fim de ano. Com uma ressalva: por um lado podemos ter um sentimento de perda nessa época do ano, levando em consideração tudo o que passou; mas por outro, podemos encarar essa época a partir de uma perspectiva de ganho. O que ganhamos em vivência é muito maior do que os ganhos práticos, quaisquer que sejam eles. Em 2009, construímos mais um pedaço de nossa história (sem a qual não somos nada), e para o qual podemos voltar quando quisermos, no respectivo andar de nossa memória.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Na chuva

(por Liniers)