domingo, 28 de fevereiro de 2010

Duas culturas

Metrô de Paris: coelhos meigos .



Metrô de Tóquio: kamikazes alucinados.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

"Foodies"



– Amanhã eu vou levar a Dani até Santos para ver a avó, daí eu aproveito e dou uma esticada até o Guarú pra pegar onda.

A informação foi gritada na mesa ao lado, por um rapaz muito grande, muito forte, que mal sentou à mesa e já começou a falar no celular em um volume muito maior do que o ambiente permitia. Muitas pessoas fazem isso, elevam o volume alguns decibéis quando falam ao celular. Outras – percebam, é muito curioso ! – aumentam o volume quando falam de algo de que se orgulham. Avós falando dos feitos dos netos, pessoas tolas falando de seus estilos de vida glamurosos, o Gian citando Nietzsche. (Sério, uma vez me vi fazendo isso e olhando para o lado, para perceber se as pessoas repararam na minha erudição. Quando me dei conta que ninguém sequer dava a bola para mim, percebi a arrogância).

O ambiente em que eu me encontrava era um restaurante excepcionalmente bom, mas também excepcionalmente cheio de novos-ricos. Suspeitei disso na primeira vez que lá fui, e agora confirmava meus temores na segunda vez que visitava o lugar. O grupo ao meu lado incluía não só o surfista de fim de semana, mas também uma mulher extremamente perfumada (que felizmente sentou na cadeira mais distante; seu caro perfume não iria estragar meu paladar) e uma terceira pessoa, mais discreta. Assim que o troglodita falastrão desligou o celular, virou para seus amigos de mesa e disse, no mesmo volume de sua conversa telefônica:

– Então.... amanhã eu vou levar a Dani para Santos para ver a avó, daí eu aproveito e dou uma esticada até o Guarú pra pegar onda.

O sentido todo dessa conversa não é, pela enésima vez, exibir minha intolerância (como sempre, coberta por uma espessa máscara de civilidade), mas observar que, de fato, existem infinitos fatores que fazem da refeição uma experiência prazerosa, e o entorno é fundamental. Como usufruir de um suculento côte de boeuf niçoise ouvindo gritos na mesa ao lado ? Como aproveitar um borgonha Dominique-Laurent sentindo o aroma de J’Adore que vem da perua mais próxima ? Uma grande refeição pede alguma seriedade e há outros fatores, além da comida, que são fundamentais no sentido de elevar a experiência. Por exemplo, recentemente concluí que apreciar uma refeição tem algo a ver com o suave estado de euforia provocado pelo vinho, uma vez que ele aguça os sentidos. Outro exemplo: uma grande refeição pede uma certa preocupação estética e, convenhamos, todos nós por aqui aprendemos isso com a culinária japonesa a partir dos anos 90.

Claro que eu gosto de gritar em certas mesas (ou debaixo de certas mesas, mas é melhor não entrar em detalhes aqui). Claro que os perfumes Dior são provocantes e sedutores. Claro que eu como coisas acompanhadas de coca-cola. Claro que eu como gororobas feiosas e gosmentas tipo vatapá, aliás eu adoro vatapá. Mas cada coisa em seu lugar, e comportamentos adequados nos locais adequados são uma expressão da tal civilidade que se confunde com arrogância. Uma refeição deve expressar essa civilidade, essa adequação ao local. Diria até que uma refeição pode ser uma experiência tão rica que, no seu apelo a todos os sentidos, se aproxima da Gesamtkunstwerk de Wagner, a obra de arte total. Sim, citações em alemão também têm algo de arrogante, fazer o quê ? Não dá mais pra voltar atrás e mudar o repertório da minha vida. Sigamos em frente.

Anthony Bourdain, meu cozinheiro pop preferido, nos diz coisas interessantes. Ele é um grande crítico da arrogância no trato com a comida, com a vida - claro, ele denuncia a arrogância enquanto belisca, por exemplo, um coronet de tartare de salmão, mas isso não vem ao caso. O fato é que Bourdain observa que, se perguntarmos a um condenado à morte qual seria sua preferência para uma última refeição, ou seja, qual o sabor que ele gostaria de levar como última lembrança terrena, a resposta jamais seria uma refeição gloriosa de um chef premiado em restaurante superior. Na hora H, todos dispensariam as novas sensações, refugiando-se no inesperado: o feijão com arroz que se comia na infância, o bolinho de chuva que a vó fazia, a pizza da esquina nos sábados à noite em Praia Grande quando não se tinha mais o que fazer. E aqui contemplamos o eterno retorno da bête noire do blog: a memória.

As grandes experiências gastronômcias brincam com nossa memória. Cada gosto que sentimos imediatamente provoca mil lembranças, e isso acontece mesmo quando não encontramos nele nenhum paralelo, nada para comparar. Nesse caso, estamos diante do “gosto novo”: não uma mistura de gostos antigos, mas algo essencialmente novo, e isso é uma experiência e tanto, pois cria-se uma nova camada na memória. Diante de uma experiência tão íntima como essa, chamamos as pessoas queridas, e compartilhamos com elas a nossa mesa, nossa memória, nossa intimidade. Há algo de profundamente social, de humano em uma refeição compartilhada. Tal reflexão nos faz entender melhor a experiência oposta, o significado dos refeitórios e dos “por quilo” da hora do almoço. Diante de simples colegas de trabalho, nada de intimidades; no lugar de uma refeição séria, apenas uma experiência alimentar quase que pré-histórica, pré-civilização: sair para buscar a comida, tendo como arma uma bandeja.

Volto ao episódio que iniciou o blog. Na mesa ao lado, um quarto convidado chegou, pouco mais tarde que o trio original. Logo que sentou, perguntou para todos na mesa, “E aí, o que vocês vão fazer no fim de semana ?”

O troglodita sorriu, preparando sua resposta.

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[PS: A foto do post não tem nada a ver, apenas cansei de abrir o blog e ver essa imagem deprimente logo abaixo, sobre trotes. Então, resolvi dar o primeiro passo no sentido de transformar o blog em Gesamtekunstwerk: apresentar uma imagem bela, na sua aparente simplicidade. A moça é Tang Wei, conhecida pelo filme Desejo e perigo. O fotógrafo, infelizmente, ignoro. Já o restaurante onde ocorreu o episódio citado é o Pomodori.]

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Tá rindo de quê ?


Nada como viajar. Onde mais poderia recolher essas cenas ?

Cena 1: Estação do metrô Montparnasse, 18h, muito movimento. Na catraca, meu bilhete não é aceito, sabe-se lá porque. Ao dar meia volta para tentar passar novamente, causo um transtorno infinito na multidão em movimento. À minha frente, uma jovem senhora diz: “Passe comigo, rápido”. Hesitei por uma fração de segundo. Seu impulso de bondade significaria que eu seria obrigado a passar pela catraca dando-lhe nada menos que uma bela e inevitável encoxada. “Allez-y!”, disse ela, e eu fui, meio envergonhado, balbuciando um “Merci beaucoup”.

Cena 2: A agência de turismo, por um motivo qualquer, não fez a reserva para a visita ao Museu d’Orsay. Tendo chegado antes do grupo, me apressei em fazê-la. Infelizmente, o número de telefone do serviço de reservas não respondia, passei uma manhã inteira no Hotel ligando sem sucesso. Saindo à tarde, acho o número do telefone do Museu no bolso do sobretudo e resolvo ligar de uma cabine telefônica, assim, no meio do nada. Claro, dessa vez fui atendido. Infelizmente, não lembrava de meu endereço em Paris (somente o nome do Hotel), não tinha nem acesso a email com impressora e nem fax para receber o documento de reserva e, sem lápis ou caneta, não consegui sequer memorizar o número da minha reserva. Meio pessimista, desliguei o telefone. Pois a funcionária pesquisou os hotéis de Paris, ligou para meu hotel, confirmou que eu estava lá hospedado, enviou o fax e disse que eu não precisaria me preocupar com o número da reserva. No dia da visita, sequer foi cobrada a entrada no Museu, pois todos acreditaram na minha palavra de que era professor e aqueles eram meus alunos.

Cena 3: A doce Idália, nossa guia em Lisboa, conversando com o grupo do ano passado. Os alunos ficaram perplexos ao saberem que ela não cursou uma Universidade, mesmo sendo uma pessoa tremendamente culta, bem falante e com amplo domínio da história dos locais visitados e da cultura portuguesa em geral. Para uma certa classe média brasileira não ter ensino superior é quase sinônimo de ignorância.

* * *

Mas o que significa tudo isso ? Acredito que tais cenas exponham nossas fraturas. Na cena do metrô, a jovem senhora foi gentil e minha primeira reação foi maliciosa. Seu ato, impulsivo e irrefletido (dada a própria rapidez da situação) expressa um universo de valores: se um cidadão tem dificuldades, devo ajudá-lo. (Imagine a mesma cena no Brasil ? A jovem senhora jamais iria oferecer uma gentileza dessas, sob o risco de ter que aguentar no mínimo uma conversa fiada do tipo "Oi, você vem sempre nessa catraca?") Trata-se, sobretudo, de valores republicanos, fundados na igualdade e respeito mútuo dos cidadãos. Se não houver essa confraternização mínima na sociedade civil, como exigir algo do Estado ? Se trato os demais cidadãos como objetos a serem usados em meu benefício, como exigir que o Estado não faça o mesmo ? (Sem inocência: não sei se a jovem senhora, modelo de cidadania, agiria da mesma forma se eu não fosse branco e aculturado).

Daí a segunda cena, da moça do Museu que agiu como se deve: se um grupo de estudantes (ainda mais estrangeiro) quer visitar o Museu, a principal obrigação do funcionário é prestar toda ajuda possível. Que diferença de nossa prática tropical e anti-republicana ! Entre nós, o que importa é criar hierarquias, definir limites e afirmar uma posição de superioridade a partir desses limites. (Reflexo, talvez, da sociedade escravocrata, essa pesada herança que ainda carregamos e que fazia com que fosse fundamental definir uma demarcação dizendo: não sou escravo ou não sou mais escravo ou, melhor ainda, nunca fui escravo). Quantas vezes não observamos o funcionário que vê na sua função uma forma de exercer o seu poder, de estabelecer uma linha demarcatória ? No Brasil, o padrão do funcionário público (ou do funcionário, em geral, sobretudo quando uniformizado; a esse respeito, lembre-se do post “Pequenos Poderes”, http://bit.ly/cW2yfM ) é criar o máximo de dificuldades, podendo assim multiplicar ao infinito as situações em que ele exerce sua autoridade, vista como algo a ser usufruído. Se me humilham na vida cotidiana, eu me vingo sempre que estou por trás do balcão ou cada vez que visto meu uniforme.

Aqui chego onde queria. O trote, alegremente praticado nesses dias abafados de baixo verão. Sempre tenho vontade de perguntar aos calouros, quando se submetem sorridentes às humilhações mais atrozes: “Tá rindo de quê” ? A frase do ano foi recolhida pela Folha de São Paulo, em entrevista com calouro da USP. Em meio a sorrisos, o rapaz disse: “É meio humilhante, mas a gente agüenta porque, em compensação, poderemos fazer o mesmo nos calouros no ano que vem”. Sen-sa-cio-nal. Submeter-se à humilhação está justificado, pois dá o direito de humilhar outras pessoas.

Que estranho raciocínio é esse ? O sentido do trote leva à sua perpetuação, uma de suas justificativas essenciais é fazê-lo continuar existindo. A participação no ritual do trote, por parte dos calouros, significa: Estou dentro, existe uma linha estabelecida que foi ultrapassada. Agora, assim como o funcionário que inferniza a vida das pessoas, vou exercer o trote para deixar bem claro, Eu sou do grupo, eu posso aquilo que os outros não podem. Em última análise: eu agüento o trote porque isso me faz superior às outras pessoas. O fedor do fascismo torna-se subitamente muito forte. Como no fascismo, é punido quem não participa da verdade estabelecida (e dos rituais que visam celebrá-la, como o trote). Fugir do trote significa ser vítima de não-socialização, aquele que recusa o trote torna-se um pária na faculdade.

Finalmente, a última cena, que confirma a forma como fetichizamos a Universidade, como a consideramos um desses limites que ajudam a definir hierarquias sociais. “Como assim a Idália não fez faculdade ? Mas ela é uma das nossas ! Ela é tão legal, tão esperta...!” No mesmo registro, da fetichização da Universidade, acrescento uma constatação surpreendente, também recolhida em viagem: em Paris, turistas brasileiros, e somente brasileiros, tiram foto diante da Sorbonne, lá na entrada da rue des Écoles. Uma cena que surpreende alguns passantes, e que testemunho já há anos.

Cumprindo alegremente a função de incomodar a vida das pessoas (tarefa imprescindível para quem escreve), concluo: lembre-se disso em 2011, calouro feliz, ao perpetrar o trote você não se distanciará muito de um porco fascista.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

"Como se não restasse nada no mundo..."


Quando eu era mais jovem, todo tipo de gente falava comigo – disse ela. – Contavam todo tipo de coisas. Histórias fascinantes, histórias belas, estranhas. Mas, passado certo ponto, ninguém mais conversa comigo. Nem meu marido, nem meu filho, nem meus amigos... ninguém. Como se não restasse nada no mundo do que se conversar. Às vezes, sinto como se meu corpo estivesse se tornando invisível, como se você pudesse enxergar através de mim.

Em um recente (e alegre) colóquio, percebemos como todos gostam de ouvir histórias. De fato, quando crianças, o nosso próprio desconhecimento do mundo faz de cada relato uma descoberta. A escola tem isso, as primeiras aulas de Ciências que temos no Ensino Fundamental são absolutamente cativantes (até que, em um certo momento, elas se transformam em entediantes exercícios de aplicação de fórmulas instrumentais). Seja como for, lembro até hoje do austero professor Walter, da 5ª série, com seu forte sotaque alemão, nos encantando com sua narrativa sobre a experiência dos hemisférrios de Magdeburg.

Ao longo do tempo, conforme nossos gostos vão se sofisticando, passamos a ter prazer em histórias cada vez mais intrincadas, “difícieis” até, mas que causam o mesmo espanto dos relatos infantis. Desaparecem os grunhidos de entendimento (“ahhhnnn!”) e surgem as sobrancelhas levemente erguidas; saem as risadas escrachadas e aparecem os discretos sorrisos irônicos. E que nos dão o mesmo prazer, agora em versão adulta.

Há algo dramático na constatação de que, a partir de um certo momento na vida, simplesmente deixamos de ouvir histórias. A expressão “desencantamento do mundo” já foi utilizada para descrever esse processo. Claro, o que nos força a isso é evidente: o envolvimento cada vez maior com as coisas práticas do cotidiano; o fato de que, quando encontramos nosso lugar no mundo adulto, quase sempre cessam as descobertas, e vivemos nada menos que o empobrecimento da experiência. Encontramos alívio nos filmes, nos livros, mas o fato incontornável continua sendo: não nos sentamos mais em grupo, em torno de uma fogueira imaginária, para ouvirmos relatos fantásticos. Não vemos mais no Outro um depositário de experiências que possam enriquecer nossa vida.

Nas mesas de bar e restaurantes (cada vez mais próximas umas das outras, parece que agora é moda), somos obrigados a ouvir conversas absolutamente entediantes, seja sobre a vida profissional ou amorosa, seja sobre as férias ou compras, sempre compras. E percebam como essas conversas são intercambiáveis: a frase que começa em uma mesa pode ser concluída com um fiapo de conversa que ouvimos na outra. Mais curioso ainda: quanto mais fino (ou pretencioso) é o estabelecimento, mais pobre o conteúdo das conversas, embora relatem episódios ocorridos em cenários mais chiques: não tenho dúvida de que as conversas entreouvidas no Kintaro são infinitamente mais interessantes dos que as do Erick Jacquin.

A solução é... Dessa vez não tem solução. Apenas constato. E lembro o fragmento que abre o post, de Murakami, meu atual autor pop preferido. Trata-se de mais uma daquelas pequenas sacadas que povoam seus livros e que vamos descobrindo de repente, no meio da narrativa. E que trazem de volta algum encantamento, nos fazendo erguer as sobrancelhas e sorrir discretamente.