terça-feira, 20 de julho de 2010

Em busca da música perfeita 2



Yo me voy temprano para el batey
Que en La Habana, se acabo el yarey


A Revolução de 1959 matou um pouquinho a música cubana. As gravadoras multinacionais deixaram a ilha, os grandes cassinos e night-clubs foram inicialmente fechados e depois reestruturados, com seus donos mafiosos muitas vezes sendo presos ou simplesmente fugindo para Miami. O bloqueio norte-americano também não ajudou muito, fechando as gravadoras aos músicos que não se exilassem. Seja como for, de uma hora para outra, os grandes da música cubana perderam seus palcos e microfones: o novo regime sempre desconfiou de suas ligações seja com o submundo do crime organizado, seja com as multinacionais norte-americanas.

Alguns músicos fugiram da ilha, outros amargaram uma espécie de “exílio interno”: Ruben Gonzáles conta que ficou anos sem encostar em um piano. Outros simplesmente morreram, como Benny Moré e seu fígado estraçalhado. Enquanto isso, o novo regime nomeou novos artistas e mesmo o novo estilo oficial: a nueva trova, misto de bossa-nova com folk-song e música de protesto. Imagine João Gilberto cantando uma música de Bob Dylan com uma letra falando sobre Che Guevara. Aí está a nueva trova.

Me gusta la población, el bullicio e el gentio
También me gusta el bohio que yo tengo em el batey

Certamente, saíram coisas boas. Há músicas de Silvio Rodrigues, Pablo Milanés ou Carlos Puebla que acabaram se transformaram em clássicos cubanos. Mas o inebriante ritmo do son cubano, bem como seu apelo dançante se perderam. Nas ruas de Havana, fora dos palcos oficiais, veio o contra ataque a partir dos anos 70: a música de barrio, com grandes bandas marcadas pela forte seção de metais e muita, mas muita percussão de alta qualidade. Tocada em lugares improvisados, por todos os cantos e periferias de Havana, o son dançante dos bairros faz lembrar as big bands da era de ouro da música cubana pré-revolucionária, incluindo uma nova geração de instrumentistas de alto padrão, tocando longos e impressionantes improvisos que fizeram renascer as famosas descargas cubanas.

Enquanto isso, os sobreviventes da velha geração iam definhando. Em 1997, o músico americano Ry Cooder foi à Cuba, fez um filme e gravou uma compilação com os músicos que sobraram da época de ouro, intitulando o projeto de “Buena Vista Social Club”. Infelizmente, o tal do Ry Cooder meteu a mão na tradição cubana e elegeu um monte de cantores de bolero para formar sua coletânea, com um ou outro cantor de guajira (música “caipira” cubana) entoando suas músicas mais melancólicas. Para piorar, nosso bluesman branco acrescentou seus próprios solos de slide-guitar em várias gravações, criando uma sonoridade no mínimo bizarra e certamente bem pouco cubana.

Me gusta ver como el rio, por el valle se prolonga
Y ver del arbol la sombra, que adorna el sitio mio

O que poucos sabem é que, anos antes, em 1979, a gravadora estatal cubana Egren havia lançado o mesmo projeto – de resgatar os grandes nomes do passado –, e isso numa época em que muitos ainda estavam vivos. E aqui eles foram deixados à vontade, gravaram o que quiseram, improvisaram, inventaram, se divertiram. O resultado foi um dos discos mais vibrantes de todos os tempos, Los Heroes, e o enorme conjunto de mais de trinta músicos foi chamado de “Estrellas de Areito”.

É de chorar de tão bom.

Foi nessa compilação que encontrei a minha segunda música perfeita de todos os tempos: “Mi amanecer campesino”, com gloriosos 14 minutos e 55 segundos de duração (e o final em fading, pois os músicos poderiam ter continuado tocando e improvisando sobre o tema por mais alguns meses).

Mañana me voy temprano, me marcho al amañecer
Com el machete em la mano y el sombrero de yarey

A estrutura dessa música é a do tradicional son cubano: prelúdio (uma introdução, neste caso feita pelo coro); largo, quando o vocalista (ou sonero, aqui Pio Leyva) estabelece o tema da canção; e montuno, quando o sonero desenvolve frases introdutórias e o coro as responde. O montuno é o clímax de todo son cubano, pois é quando se fazem improvisações vocais e a demonstrações de virtuosismo instrumental. Em Mi amanecer campesino, sucedem-se solos de violino (Pedro Hernandéz), tres (Niño Rivera) e piano (Ruben Gonzalez), além do arrepiante trombone de Juan Pablo Torres.

Seria impossível descrever aqui, com palavras, o grau de maestria atingido por esses músicos. Chamo atenção, apenas, para uma certa passagem em que Ruben González começa a desenvolver seu solo no piano e, de repente, começa a tocar Alma de mujer, um antigo bolero. Do nada, sem nenhuma combinação prévia, entra a seção de cordas (os violinos) e continua a canção. Gonzalez reage e toma o bolero de volta, tudo isso enquanto a “cozinha” (baixo e percussão) mantém o ritmo. Até que o trombone de Juan Pablo Torres se insinua para acabar com a baderna e avisa que a música está acabando. Causa arrepios.

Yo me voy temprano para el batey
Que en La Habana, se acabo el yarey




#piadasnerds

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(ou: falta de assunto também dá post)
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Na Filosofia, brincava de escolher títulos bizarros para minha dissertação de mestrado. Criei um jogo que consistia em redigir títulos praticamente incompreensíveis (e algo bizarros), mas que ainda assim significassem alguma coisa. Agora, planejando o doutorado, trago de volta os melhores títulos. Escolha o seu.

1) A realidade enquanto auxiliar apriorístico de uma ética não-naturalista.

2) A hipóstase e o isolamento do puro livre-arbítrio enquanto pedra de toque do bolo ético-cultural dos epígonos kantianos.

3) A inversão de pólos do sujeito para o dessujeito: realce de uma agonística que faz da subjetivação uma imanência em exercício.

4) O pessimismo de matizes éticos em relação ao presente: inflexão geral de Hegel a Fichte ou simples kierkegaardização da dialética histórica hegeliana ?

5) O problema central da forma romanesca: acerto de contas artístico com as formas fechadas e totais que nascem de uma totalidade do ser integrada em si (com cada mundo das formas em si imanentemente perfeito).

6) A consciência da unidade total interna alcançada através do pensamento e da apreensão: a não manifestação da alma na natureza em que a unidade subjetiva não aparece como unidade em si .

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Viagem infinita




Costumo chamar de “trama da existência” toda aquela teia que construímos no cotidiano e da qual fazem parte desde o nosso de universo de relações pessoais até o espaço por onde circulamos habitualmente. Enredar-se na teia da existência significa estar cercado de um universo de referências seguras, dentro do qual podemos efetivamente habitar.

Chamo atenção para a semelhança entre o verbo habitar e as palavras habitual, hábitos. É na nossa trama da existência que praticamos os hábitos que resultam na criação de nossa habitação, o local onde nos sentimos seguros. O filósofo Martin Heidegger vai além, lembrando da semelhança que existe no alemão entre o tempo verbal bin (de ich bin, eu sou) e o verbo bauen (construir). Parte daí para apontar que a maneira como somos é a maneira como construímos o espaço em que habitamos. As múltiplas referências à etimologia das palavras alemãs e gregas – tão comum em Heidegger, e de que lanço mão tão frequentemente no blog – devem ser vistas como uma forma de aproximação da linguagem primitiva (ou Ursprache) indo-européia, ou seja, do sentido original das coisas no momento mesmo em que essas coisas começaram a ser nomeadas. Da sua essência, diria o eremita da Floresta Negra.

Dessa forma, através da trama da existência construímos o nosso ser. Mas isso não basta. Quantas vezes não desejamos simplesmente sumir, desaparecer desse entorno ? Se por um lado a teia que nos envolve é garantia de segurança, por outro deixa muito pouco a ser descoberto, por mais que deixemos certos espaços a serem explorados como se fossem novos. “Hoje vou sair com uma pessoa diferente” ou “Amanhã vou para a churrasco em um bairro novo” ainda fazem parte dessa teia, constituindo uma brecha antecipada, com a finalidade de evitar o tédio puro e simples. (Mas quantas pessoas não se negam mesmo essas pequenas aberturas, permanecendo seguramente instaladas em seu tédio cotidiano ?).

Daí a necessidade da viagem, palavra da qual tiram-se dois significados possíveis. Em primeiro lugar existe a viagem física, o deslocamento para além dos espaços habituais. Além disso, existe a viagem enquanto operação do pensamento, que é experiência bastante comum: quantas vezes não percebemos que uma pessoa “está viajando”, ou seja, completamente descolada da realidade que a cerca ?

Chego ao meu ponto de reflexão. Só vejo a viagem física como ruptura da teia da existência quando ela é feita dentro de uma certa radicalidade, que inclui transformá-la também em experiência do pensamento. “Descer para o litoral no fim de semana” ou “Ir para Campos com os amigos” podem ser aventuras válidas, mas dificilmente constituem uma experiência que leve para além do conhecido ou que rompa com a teia da existência.

Como transformar a vigem física na experiência transcendente do pensamento ? Talvez partindo da própria especificidade de atravessar um espaço de dimensões tão grandes que implicam em uma redefinição da relação com o tempo. Durante a longa viagem, dentro do espaço sem graça do avião ou do ônibus, abre-se a possibilidade para um momento de introspecção. Além disso, na chegada, o contato com hábitos culturais diferentes (língua, alimentação, clima) exige uma redefinição do habitual em cada um, com Heidegger nos lembrando da importância de habitar na constituição do ser. Perdemos o nosso chão, devemos nos redescobrir, e daí vem o medo, como bem apontou Camus:

O que dá valor à viagem é o medo. É o fato de que, num certo momento quando estamos tão longe de nosso país, somos tomados por um vago receio e pelo desejo instintivo de voltar à proteção de velhos hábitos. Nesse momento, atravessamos uma cascata de luz e ali está a eternidade. Viajar é uma ciência grande e grave que nos traz de volta a nós mesmos.

Finalmente, a viagem se transforma em experiência transcendente quando, antes da partida, antecipamos mentalmente sua realização e, após a chegada, reconstruímos cada etapa com ajuda da memória. Nesses momentos, viajar em grupo ganha significado: cada um antecipa e, sobretudo, reconstrói a viagem através de seu próprio olhar. A troca das experiêncais, o contato com a multiplicidade dos olhares e narrativas de quem esteve junto viajando, permite que cada viagem seja repetida mil vezes, com a transformação das experiências vividas em algo novo cada vez que elas se repetem em nossa mente ou em alegres colóquios com os companheiros de viagem.

Aos que partem de férias, boas viagens.