domingo, 22 de agosto de 2010

Da desculpa como auto-de-fé




Em 1481, a Inquisição espanhola - sempre tão precoce - realizou o primeiro auto-de-fé, cerimônia pública de expiação dos pecados. A prática se generalizou pela cristandade, sendo particularmente comum nas monarquias ibéricas. Consta que o último auto-de-fé foi realizado na Espanha, já em 1821. Goya, artista espanhol, pintou o quadro acima poucos anos antes, mostrando uma dessas cerimônias: os acusados assumem publicamente sua culpa e envergam os sambenitos, trajes especiais e particularmente ridículos e humilhantes, de uso obrigatório pelos condenados.

Reduzindo o ritual do auto-de-fé ao seu padrão básico, temos: cerimônia pública, humilhação ritual e perdão como resultado. Impossível deixar de pensar em como existe, hoje em dia, o estranho hábito de praticar um pedido de desculpas como se fosse um auto-de-fé. Um erro é cometido, alguém sofre os efeitos e, depois do mal feito, tudo se resolve com um humilde pedido de desculpas, muitas vezes visto como expressão de grandeza de caráter, mas que é na realidade um mero artifício para se por uma pedra no que agora virou passado. Acho que é nesse contexto que as pessoas “perdoam”, ou seja, aceitam as desculpas: perdoar/per-donare (= por presente), é quando damos um presente para aquele que errou, que fez um mal, independente de qualquer arrependimento.

Porém, isso não basta.

Lembro de meu sobrinho, criança, aprendendo o significado das palavras lá com seus dois ou três anos de idade. Após descobrir o significado da palavra “desculpa” (ou melhor, após descobrir os efeitos provocados pela simples enunciação da palavra "desculpa") o pequeno, durante alguns dias, passou a ter o hábito de fazer coisas sabidamente erradas, para em seguida testar o amor dos pais pedindo desculpas. Lembro de um almoço de família e do moleque, ao meu lado, pegando o copo de plástico cheio de coca-cola, inclinando-se para o lado e derramando propositalmente o conteúdo no chão, enquanto olhava para os adultos na mesa. Antes de qualquer manifestação de reprovação o monstrinho já foi lançando um “di-cu’pa”, ao mesmo tempo encantador e malandro.

A meu ver, uma desculpa envolve dois aspectos que quase nunca são cogitados por quem a pede, na pressa de ver sua situação resolvida e de ser perdoado. Primeiro, o reconhecimento do erro; segundo, e intimamente relacionado a isso, a garantia de que o erro nunca mais irá se repetir. Mas não é isso que vejo acontecer: as pessoas saem disparando suas desculpas por aí a torto e a direito, como se fossem fogos de artifício, e tudo se resolve. E daqui a uns poucos dias novas desculpas serão necessárias.

Não, este não é um post confessional. Fujo deles, como todos sabem. Se você cruzou comigo - sei lá, na última semana - não pense que aqui vai alguma indireta. Apenas andei pensando no assunto, é só. E me desculpem os que não gostaram.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

"...uma forma luminosa"


Curioso como algumas expressões se tornam um jargão, que progressivamente vai se afastando de seu sentido original. No mundo escolar uma das mais comuns, de uns tempos pra cá, é discutir conceito. As pessoas adoram discutir conceitos, vivem sofisticando suas práticas discursivas dizendo que discutiram conceitos quando, na verdade, na maior parte dos casos, apenas apresentaram definições.

Há diferenças entre conceito e definição. Como de hábito, lanço mão da etimologia para começar a entender as diferenças. A palavra definição vem do latim de-finitio, em que finitio dá idéia de fim, final, encerramento. Pois é esse justamente o sentido das definições: elas encerram um significado dentro de limites bem precisos. Trata-se, sem dúvida, de uma função importante. Pois as palavras devem ter significados precisos, sem isso é impossível um pensamento rigoroso e, em última análise, a própria filosofia. Todavia, definições não constroem conhecimento, e uma consulta ao dicionário, por mais instrutiva que seja, não faz o saber avançar sequer um milímetro.

conceptus tem o mesmo radical de conceber, concepção. Aqui, o sentido é de criar, portanto ir além do limite estreito das definições, que agora serão tomadas apenas como ponto de partida. Trata-se do procedimento filosófico por excelência, e Delleuze, no seu livro O que é Filosofia?, é taxativo: “Filosofar é criar conceitos”. Adorno falava de “ir além do conceito, através do conceito”, enquanto Francisco Bosco – meu filósofo pop preferido, em citação que vivo repetindo por aí – dá uma ideia melhor do árduo trabalho do conceito quando escreve: “O conceito é portanto uma pequena batalha que se trava em meio ao caos, a fim de fazer dele ressair, por meio de um meticuloso bordado semântico, uma forma luminosa”.

Por exemplo, uma definição da palavra trabalho pode ser encontrada no dicionário: trata-se de “aplicação da força e faculdades humanas para atingir um determinado fim”. Porém, uma discussão do conceito de trabalho inclui levar em consideração que essa atividade pode ser vivida de diferentes formas, resultando não apenas em práticas de trabalho distintas, mas também abrindo caminho para a identificação de diferentes éticas do trabalho.

O primeiro sentido da palavra trabalho remonta à etimologia latina do verbo trabalhar, tripaliare, com o significado original de “extrair as tripas”. Trata-se de uma referência ao sofrimento imposto aos escravos. Nesse sentido, o trabalho é visto como um sacrifício a que se deve dedicar em troca de uma remuneração em dinheiro e quando vejo os olhares sombrios de muitas pessoas em seus postos de trabalho, imagino que elas de fato “deixaram suas almas” na porta de entrada da fábrica ou empresa, para poderem pegá-la de volta na saída. A expressão deixar a alma na porta do trabalho é da pensadora francesa Simone Weil que, na década de 1930, abandonou o conforto de sua família para experimentar a vida de operária. Da experiência resultou um relato pungente, “Da condição operária”, que deveria ser leitura escolar obrigatória.

Porém, há outro significado para a palavra trabalho, que pode ser entendido enquanto praxis, uma prática constitutiva do ser. Essa visão está presente em Marx que, inclusive, identificava na habilidade e organização para o trabalho uma especificidade do humano (que ele pretendia resgatar criando um novo sistema social e econômico etc). O trabalho como praxis implica em fazer da atividade uma parte inseparável da sua vida, e chegam a ser comuns os casos daqueles que caem em profunda melancolia quando afastados do trabalho por algum motivo. Sem entrar em detalhes, lembro da interpretação psicanalítica da melancolia, um sentimento associado ao luto, uma vez que ambos resultam em conviver com a perda. Aqui, estamos lidando com nada menos que a perda de uma parte de si mesmo.

No primeiro caso - tripaliare - existe uma separação entre o mundo da vida e o mundo do trabalho, e o próprio conceito de lazer só pode ser pensado a partir dessa separação. Pois lazer é a negação do trabalho, é o tempo que deve ser aproveitado, pois se encontra longe do sofrimento. É o tempo que deve ser preenchido, uma vez que, se o trabalho não constitui o ser, o tempo torna-se vazio e sem sentido. Já no segundo caso - praxis - o mundo do trabalho é parte integrante do mundo da vida, não cabendo a separação tempo livre x tempo de trabalho. Oras, as duas formas de vivenciar a experiência do trabalho (ou os dois significados que são ao mesmo tempo parte integrante do conceito e indissolúveis da experiência do trabalho), implicam em duas éticas do trabalho distintas.

Para os que vivem o trabalho como sofrimento, o que conta é a sobrevivência, uma vez que a atividade é vista como pouco mais que um ganha pão. Neste caso, o trabalho incorpora os jogos de poder, fundamentais na luta pela sobrevivência dentro do ambiente de trabalho, e o resultado é uma atuação marcada pelo medo e paralisia. Já para os que vivem o trabalho como parte constitutiva de si mesmo, a realização encontra-se no trabalho bem-feito, visto como finalidade e parte integrante do conhecimento próprio enquanto sujeito. Aqui abre-se o espaço para a cooperação ( lembrando do caráter social e coletivo do trabalho), que incorpora o diálogo entre as partes e a constituição de laços que incluem a tão difícil amizade entre adultos.