quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Considerações desapaixonadas sobre as eleições


1 – O que mais chama a atenção nas eleições, ultimamente, é que elas não mais envolvem questões de vida ou morte. No fim do regime militar e durante os anos da chamada consolidação democrática (anos 1990) simplesmente não se cogitava em votar nos esbirros da ditadura (ARENA/ PDS), em seus filhotes (Maluf, Sarney), nos sobreviventes de outra era (Jânio) ou na barbárie pura e simples (Collor). Quem votasse ou apenas demonstrasse simpatia por essas figuras simplesmente não era digno de pertencer a um círculo de amizades ou então gerava piedade (“Coitado, vai votar no Maluf...”). Nesse sentido, os 16 anos de FHC e Lula civilizaram o jogo político, ou pelo menos afastaram das eleições presidenciais as figuras mais sinistras. Diante dos Berlusconis e Bushes da vida, FHC e Lula são papa fina.

2 – Curiosamente, a polarização PT x PSDB às vezes ainda gera estranhos ódios: há tucanos que não conversam com petistas (afinal, “Lula é Mussolini”), e há petistas que assumem ar de denúncia quando se referem ao tucanato como “a direeeeeeita!”. Curioso, pois sabemos que tanto Dilma quanto Serra, uma vez eleitos, vão adotar as mesmas diretrizes básicas de governo: manutenção da estabilidade econômica, algum tipo de gerenciamento da miséria (esquemas do tipo Bolsa Família) e aliança com a parte da banda podre da política que lhe cabe. Isso para não falar da sórdida tendência que os membros de seus partidos têm de cuidar do Estado como se fosse um condomínio privado.

3 – Com Lula e o PT, consolidou-se a idéia de que o Estado é um papai provedor, e isso causa danos à política: o voto entra no esquema do “é dando que se recebe”, e a política passa longe de princípios ou projetos de longo prazo, reduzindo-se a uma sucessão de promessas rasteiras e troca de favores visando fins imediatos. Mas quem disse que com o PSDB é diferente ?

4 – Diante desse contexto – e sabendo que, seja qual for o resultado, a barbárie não irá vencer – começo a vislumbrar uma saída: diante da permanência da polarização PT x PSDB, votar sempre em quem for oposição, como forma de punir os escândalos da vez. Otimista, imagino que isso talvez resulte em moderação na prática de transformação do Estado em condomínio privado.

5 – Porém, é um erro partir das muitas semelhanças e concluir que não há diferença alguma entre PT e PSDB, Dilma e Serra. Em princípio, espera-se de um governo PT uma ênfase na distribuição, como exemplificado no governo Lula pela saudável tendência de aumento do salário mínimo. Porém, e a produção ? Os ventos internacionais favoráveis e a hábil ação de Lula na crise de 2008/2009 ajudaram a criar o clima de otimismo vigente. Mas, há algum plano que vá além de aproveitar a maré ? O país corre o risco de desindustrialização (mas corre mesmo ? qual o tamanho desse risco ?) e, sendo assim, não seria o caso de aproveitar o momento e adotar uma política industrial consistente, visando promover um profundo avanço no setor produtivo (para além da exportação de produtos primários ou semi-manufaturados) ?

6 – Em Serra, há uma promessa de valorizar a produção, embora nem sempre fique muito claro como. E a tão proclamada competência gerencial dos tucanos é altamente suspeita: veja a situação de caos prolongado em que a capital do Estado de São Paulo se mantém, após anos de gerenciamento tucano. Seja como for, a promessa de ênfase na produção traz a possibilidade de um resultado social que vai além do mero assistencialismo: aproveitar a expansão econômica e ampliar maciçamente o número de assalariados com carteira assinada. Mas isso basta ?

7 – Enfim, o que são as eleições ? Seu aspecto ritual me encanta: um feriado, um dia diferente, amplo movimento de pessoas, ruas cheias, encontros que se repetem a cada quatro anos. Por trás do rito, a lembrança: a coisa toda (o Estado, a política) deve existir em nome das pessoas, do “povo”. Para além da prática ritual das eleições, há que consolidar instituições que, de fato, ponham o Estado para funcionar em benefício dessas pessoas. Resta saber se a tarefa é possível.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Segundo aniversário


De onde vem a vontade de aprender ? Acredito que, em seus primeiros anos, a criança até se empolga com a escola, que satisfaz o seu desejo de tornar-se mais “espertinha”, portanto digna do afeto dos pais que a parabenizam pelas notas e pelo desempenho escolar em geral. No entanto, logo sobrevém o tédio: a criança amadurece, suas demandas afetivas deslocam-se para além do espaço familiar e, por essa época, a escola passa a divulgar um saber meramente instrumental. Uma multidão de atividades carregadas de lógica matemática, a descrição racional de uma infinidade de objetos do mundo e da melhor forma de utilizá-los visando o bem-estar do homem, uma coleção de objetos isolados que devem ser descritos e suas relações racionalmente explicadas, de preferência sem dar margem a nenhuma dúvida (afinal, como fazer provas depois ?).

Diante de cada pergunta, uma resposta; diante de cada dúvida, uma certeza; diante de cada conseqüência, uma causa. Observando a forma como se organiza o Ensino Médio e a exposição dos alunos a esse discurso ininterrupto de uma razão que tudo explica, eu me indago: onde ficam as incertezas e as surpresas ? Onde ficam as perguntas sem respostas ? Onde ficam as conseqüências sem causas ? Oras, tais indagações são importantes, pois é graças a elas que continuamos perguntando e, no limiar desse questionamento, encontra-se nós mesmos, como já sabia Sócrates. O problema é que não há muito espaço na escola para a indagação sobre o sujeito, e justamente numa época da vida – a adolescência – em que esse questionamento é fundamental.

A essa altura, difícil é a função do professor, que deve fazer renascer o desejo de aprender. Seus instrumentos incluem a sedução, através da enunciação de um discurso adequado aos seus ouvintes, e a identificação, pois os alunos devem reconhecer no professor o depositário de um saber que deve ser obtido. Desejo-sedução-identificação: o jogo do saber, como bem sabia Platão, traz junto uma série de riscos e, para o professor, o maior deles é a vaidade. Trata-se do saber-se amado, e é necessário um certo esforço para agir em conformidade com essa situação mantendo-se à altura do desejo de saber dos alunos, nada mais do que isso. Quanto aos alunos, o risco é a idolatria, primeiro passo para deixar de pensar por conta própria.

No seu segundo aniversário, lembro que o blog surgiu da vontade de alimentar esse desejo de saber, que nasce na sala de aula e que às vezes é limitado pelas restrições práticas que nos cercam. Sei que quanto mais alimento nos outros o fogo do saber, mais brilha o meu próprio fogo, e disso se extrai – assim espero – uma experiência compartilhada que ajuda a manter a vida de cada um de nós em constante escrutínio.

Feliz aniversário e obrigado a todos os alegres seguidores.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Pas de faune ce soir



Não sei exatamente que horas eram, mas eu estava no terraço quando começou a chover no fim de semana. A chuva começou fraca e mesmo o vento não chegava a perturbar, a temperatura apenas começava a cair naquela hora. Notei que as árvores estavam esquisitas: depois da longa seca, as folhas – algumas amareladas – estavam apenas frouxamente presas em seus cabos e agitavam-se de forma singular, pois o vento não tinha força suficiente nem para dobrar os galhos, nem para arrancá-las. Nas árvores imóveis, apenas folhas balançavam, como que rodopiando em torno de seus eixos, fazendo rápidos movimentos giratórios. Dessa forma, as folhas, as árvores pareciam bastante alegres, é como se celebrassem a chegada da chuva depois de tanto tempo.

A imagem que me veio à cabeça, imediatamente, foi a de um ballet, com centenas de folhas-bailarinas se agitando em uma fremente coreografia. O insight veio em seguida: imaginei que talvez o homem tenha inventado a dança por mimese, copiando as árvores, as folhas das árvores em um vento de chuva. Não é difícil imaginar uma situação em que grupos humanos, coletores-caçadores, talvez já agricultores ou seja lá o que fossem, saindo de seus abrigos, felizes com a chuva e identificando no movimento das folhas a mesma alegria que sentiam. E imediatamente copiando esses movimentos com seus corpos.

[Interlúdio: “Consulte sempre um Antropólogo”, é um adesivo que jamais vi afixado em nenhum vidro de carro. Mas, que eles fazem falta às vezes fazem, e poderiam estar agora nos entretendo, a falar sobre coisas arquetípicas como danças-da-chuva e tudo mais. Um brinde a Jimmy Cliff-ord Geertz e seu estudo seminal sobre as brigas de galo na Jamaica.]

Seja como for, tive uma estranha epifania ao perceber que experimentava um sentimento idêntico ao de meus ancestrais neolíticos. Por um instante, tive o impulso de dançar com as árvores, no terraço mesmo, conforme a chuva começava a apertar. A vontade era de sair na chuva, fechar os olhos e deixar o corpo acompanhar o vento e o movimento das folhas, sentindo ao mesmo tempo o frio da água escorrendo pelo corpo. Seria um espetáculo bizarro diante das janelas dos vizinhos, mas estes, que se danem, a essa altura já viram de tudo.

Claro que não fiz nada disso, apenas voltei para o sofá e comecei a refletir sobre a dança, e tudo que ela tem de impensado e espontâneo. Distanciando-se de outras artes, a dança pode ser a mais irracional expressão estética humana, e nem por isso a menos bela ou autêntica. Na dança, não há necessariamente uma “moral” ou “mensagem” a ser passada, trata-se sobretudo de entrega, com tudo que isso traz de risco, de coragem, de vontade. A dança é exaltação dionisíaca, para usar o termo do velho Nietzsche, figura constante nestes alegres colóquios. Sabemos que duas das mais perigosas características de Nietzsche são escrever em aforismos e usar metáforas. Com os aforismos, tornou-se pop: todo mundo sempre tem uma ou duas de suas frasezinhas bem decoradas (e mal compreendidas) guardadas no bolso do colete para usar em uma culta mesa de bar. Com as metáforas, tornou-se mais pop ainda, com as pessoas adorando histórias sobre velhos eremitas que descem da montanha e saem gritando que deus morreu e outras coisas divertidas.

Pois o andarilho de Sils-Maria frequentemente usava a metáfora da dança e, para ficar em seus mais rápidos e conhecidos aforismos, cito: “É necessário que o caos vos habite para que possa dar a luz a uma estrela bailarina” e “Só acreditaria em um deus que soubesse dançar”. Nos dois casos a dança surge como a metáfora da realização humana mais sublime, ou melhor, daquele tipo de realização que nos leva para além do humano.
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Para os interessados, a São Paulo Companhia de Dança apresentará nesse fim de semana um programa altamente promissor, incluindo o “Prélude à l’aprés-midi d’un faune”, de Debussy (que – lembremos – quando coreografado por Nijinsky em 1912 provocou um impacto semelhante ao que teria no ano seguinte a “Sagração da Primavera”, que tanto tenho citado por aí).