quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Cultura de boteco



Em uma terça-feira chuvosa, chego no Veloso dez minutos antes de abrir, e já vejo pessoas se amontoando na calçada, enquanto os garçons se apressam em preparar as mesas e abrir os toldos diante da fachada. Refiro-me ao bar Veloso de São Paulo, que aproveita do fato de estar situado na rua Conceição Veloso, na Vila Mariana, para fazer uma discreta homenagem ao homônimo carioca.

Depois que as portas finalmente se levantam, em pouco tempo o bar está lotado e começa a se formar o tradicional aglomerado em sua porta. Um aglomerado feliz, pois os garçons servem os clientes normalmente, no meio da rua, igualzinho ao tradicional Bar do Léo da rua Aurora. Dentro do Veloso, grupos conversam, bebem, pedem petiscos, se conhecem. Lembro do sambista Monarco, da Velha Guarda da Portela, contando um causo no documentário sobre Paulinho da Viola: “Saímos de lá e paramos em um boteco. Pedimos uma cerveja e fomos ficando por ali, esperando a vida melhorar...”. Lembro também do impagável Chico Bacon de Caco Galhardo, que leva um tubo de super bonder no boteco e aplica no assento da cadeira antes de sentar.

São pessoas que praticam a cultura de boteco, que sempre me intrigou. Não me refiro a sair sábado à noite para encontrar os amigos em um bar e sociabilizar, mas de uma prática muito mais sutil, que chega a ser essencial para alguns, quase um estilo de vida: passar no boteco em um dia de semana, depois do trabalho ou a qualquer hora, ir ao boteco sem compromisso ou mesmo sozinho, sabendo que lá sempre tem alguém pra conversar. Ou, como dizia Vinicius de Moraes, apenas para “falar sem dizer grande coisa”. Cultura de boteco implica em freqüentar os mesmos botecos (que existem faz tempo e não são modas passageiras), conhecer os garçons e ser chamado pelo nome (e não pelo impessoal “doutor”), fazer pedidos sem ver o cardápio, e, finalmente – suprema glória – ter um lugar fixo, seja em mesa ou balcão.

De onde vem essa disposição de passar horas conversando, bebendo, fazendo nada ? Por que algumas sociedades tem cultura de boteco e outras não ? Pub, izakayá, brasserie ou cafe, biergarten ou brauhaus, pivo bar, meyhane... na verdade, é bem capaz que todas as culturas valorizem sua modalidade de boteco. A pergunta passa a ser: porque algumas culturas não tem boteco ?

Lembro imediatamente da cultura norte-americana de classe média, dos suburbs com quadras e quadras de casinhas brancas e gramados verdinhos: esses bairros residenciais não tem botecos. Cercados de highways e sem transporte coletivo viável (lembre-se, trata-se da cultura do automóvel), partindo dos suburbs é praticamente inviável freqüentar um boteco ou pub decente downtown.

(interlúdio pop: em um dos infinitos episódios de Os Simpsons, Homer sobe de vida e muda-se para um suburb elegante. Com o marido no trabalho, as crianças na escola e empregados mexicanos para cuidar da casa, Margie... bebe. O tédio da vida no suburb acaba por transformá-la em uma alcoólatra solitária. No mesmo registro, Cheers foi uma série de sucesso, que se passava em um pub na velha Boston. Após o fim da série, um de seus personagens muda-se para a moderna Seattle e deixa de freqüentar botecos. Em Frasier – uma das minhas séries favoritas de todos os tempos – boteco é visto como algo decadente, pouco sofisticado e ultrapassado. Sem freqüentar pubs, o personagem Frasier lamenta-se da solidão e tem nostalgia dos tempos de Boston, dos tempos de pub)

Volto ao Veloso. Meses atrás, enquanto tomava um chope na calçada esperando uma mesa vagar (e de posse de uma comanda que identificava meu lugar como “poste”), vi uma cena deslumbrante. Desequilibrando-se em meio à multidão, um garçom e uma bandeja com no mínimo uma dúzia de chopes – em copos tulipa, dos antigos – tropeçaram diante de mim. Subitamente, vi na minha direção um jorro amarelo, de chope gelado, despencando como uma verdadeira cachoeira de desenho animado do Pica-pau. Não apenas a imagem foi linda, uma cascata dourada de chope espumante, mas também o som daquele líquido vertendo na minha direção e, infelizmente, sem me atingir (acho que naquele dia quente eu ansiava por um banho gelado). Seguiu-se o splash! no asfalto e o som estranhamente excitante de uma dúzia de copos quebrando.

Mas o mais curioso foi o silêncio consternado que se fez em seguida, em todo bar e na calçada lotada. Foi como se todos fizessem um minuto de silêncio em lembrança ao chope desperdiçado. Em seguida, voltaram aos seus assuntos e continuaram no bar, esperando a vida melhorar.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Fachadas antigas


Há um tipo de casa que cada vez menos se vê em São Paulo, mas que já foi a cara da cidade. Construídas em terrenos compridos – pouca frente e muito fundo – foram residências de famílias de classe média (numa época em que São Paulo era uma cidade de classe média), e seus últimos exemplares podem ser vistos em velhos bairros italianos como Liberdade, Bexiga e no começo da Zona Leste, a partir da Móoca. Essas casas eram feitas por habilidosos mestres pedreiros de origem européia, que aprenderam seu ofício trabalhando com gesso, torcendo ferro e entalhando pedra nos canteiros de obras europeus do final do século 19.

Encontrei essas casas pelo interior do estado, em Campinas, Sorocaba e Jundiaí, e me pergunto se elas existem em número expressivo por outros estados. Ao longo do século 20 essas casas foram se deteriorando: na minha infância, cheguei a ver muitas delas transformadas em pensões, verdadeiros cortiços onde se amontoavam trabalhadores pobres e migrantes recém chegados do nordeste. Mais tarde, essas casas foram sendo simplesmente derrubadas.

Suas fachadas se repetem: duas janelas gradeadas baixas que iluminam o porão, duas janelas mais acima que se abrem para a sala e um portão lateral, quase sempre de ferro trabalhado, e que infelizmente não aparece na foto acima. O aspecto retangular e simétrico das fachadas, em que pese o portão lateral, sugere uma inspiração neo-clássica. Porém, os excessos ornamentais de diversos estilos acabam “poluindo” a obra, notadamente no alto da fachada, onde o pedreiro dava o seu toque pessoal enchendo o frontão quadrado de volutas e meandros de inspiração art-nouveau, bem como de cornijas e ornamentos em geral. No centro do frontão, a data em que foi concluída a obra: 1900, 1910, 1915, acompanhando mais ou menos os últimos momentos do surto de urbanização trazido pela cafeicultura.

A planta dessas casas é sempre a mesma, com poucas variações. O portão lateral e a pequena escada logo à sua frente dão acesso a um comprido terraço que acompanha a extensão da casa em um de seus lados, com o chão coberto de ladrilhos de cimento hidráulico, no nível dos aposentos. Logo no começo do terraço, uma porta se abre para a sala, iluminada pelas duas janelas abertas para a rua. Da sala sai um comprido e escuro corredor que se abre para dois ou três quartos, cujas janelas se abrem para o também comprido terraço lateral. No fundo desse corredor, a área de serviço, com banheiro e cozinha lado a lado, mais a escada para o porão. Um pequeno quintal ao fundo completa o conjunto.

Nunca entrei em uma casa dessas, me limitando a observar as fachadas, estudar as plantas e imaginar o tipo de vida que se levou nesses aposentos. Na escola, tive que ler “Éramos seis”, e imaginava que Dona Lola e sua família vivessem em uma casa como essa. Mais tarde, em meus momentos “The Sims”, cansei de construir bairros inteiros de casas como essas.

Nos anos 1920, tais casas começaram a escassear. A industrialização construiu bairros operários de casas geminadas, bem mais modestas. Quanto à classe média, a década iria trazer um estranho surto de nacionalismo arquitetônico, que assumiu a forma de um neo-colonial bastante peculiar. A foto abaixo mostra um posto de gasolina da Shell (ou Anglo-mexican Oil Company), em estilo neo-colonial dos anos 20. A Shell construiu dezenas de postos idênticos e espalhou-os pelo país, há pelo menos dois deles bastante bem conservados no alcance de uma caminhada da minha casa.

Já nos anos 1930, esse neo-colonial caducou, e o “modernismo” chegou à arquitetura paulistana, importado sob a forma de Art-deco.