quarta-feira, 30 de março de 2011

O Velho Escritor



Foi no meio da agitação de fim de tarde de uma grande livraria que eu vi o Velho Escritor. Ele estava afundado em uma daquelas poltronas que fazem as pessoas parecerem menores do que efetivamente são, diante de prateleiras de DVDs e jovens vendedores e compradores, todos eles muito apressados. Anônimo, discreto, cinza, com visível dificuldade de locomoção – percebida pela bengala apoiada a seu lado – e gestos muito lentos, o Velho Escritor contemplava as pessoas coloridas à sua volta.

A lembrança de muitas fotos que vi fez com que eu o identificasse, e imediatamente me chamou atenção o contraste entre a pessoa frágil, que parecia quase esquecida em um canto da Livraria, e a mente ágil, que eu conhecia através de seus escritos. Na verdade eu li apenas um livro de sua autoria, que considero uma pequena obra-prima, mas também o conheço pelo seu trabalho realizado ao traduzir grande parte dos livros de Kafka. Sua dedicação à obra de Kafka certamente é um indício de seus interesses e do seu pensamento e, na pequena obra prima que escreveu, a descrição de uma certa cidade do interior paulista muitas vezes alcança tons surreais dignos do autor tcheco.

[Interlúdio Biblioteca-de-Babel: tenho orgulho de minha biblioteca particular e ciúmes dos livros que a compõem. Acredito possuir uns 4 ou 5 mil volumes, quase todos expostos em prateleiras projetadas por mim e adequadas não só aos seus tamanhos diversos, mas também à exibição meio arrogante de minha (vã) cultura. Divirto-me organizando as prateleiras, “promovendo” livros queridos aos lugares mais nobres e “rebaixando” livros dos quais já cansei a lugares mais remotos. Já faz alguns anos que a pequena obra-prima do Velho Escritor encontra-se em lugar nobre, na altura dos olhos, quase no centro da prateleira dos livros de ficção.]

A idéia foi imediata, sequer pensei quando me dirigi ao andar inferior da Livraria e, buscando na letra C, lá encontrei um exemplar da sua pequena obra-prima. Imediatamente tomei o exemplar em mãos e fui ter com o Velho Escritor, ainda afundado na sua poltrona. Aproximei-me pedindo desculpas (quais pensamentos nobres eu estaria interrompendo ? Ok, talvez ele só estivesse pensando na sopa que tomaria no jantar) e disse que ficaria muito feliz se tivesse uma dedicatória em meu exemplar. “Que curioso”, disse o Velho Escritor, “eu estava justamente pensando em que fim levou este livro”.

Trocamos algumas palavras rapidamente, tive oportunidade de lembrar que conhecia a cidade do interior em que se desenrola a trama do livro. Acrescentei que, além de me provocar lembranças, o livro sempre me surpreendeu pela firmeza da narrativa e delicadeza da história. Logo nos despedimos – “Boa sorte”, disse ele – e seguimos cada um para um canto.

Seja como for, hoje posso ler a singela inscrição logo no início do segundo exemplar que agora possuo do Resumo de Ana:

"Ao Gian, com o prazer e a surpresa, o melhor abraço do

Modesto Carone

30 / março 2011"


quarta-feira, 16 de março de 2011

Sobre textos difíceis

Como lidar com textos considerados “difíceis” ? O que fazer diante de uma leitura hermética, que parece não conduzir a lugar nenhum ou que se perde em meandros labirínticos ? A questão é tanto mais premente quanto constato que um número expressivo de meus jovens leitores é, sobretudo, formado por universitários recém entrados na academia e, não raro, ferozes críticos da erudição.

Adoro a ferocidade de jovens universitários. Orgulhosos de seus feitos acadêmicos – que são basicamente limitados, nessa altura, a entrar em uma boa faculdade – acabam usando isso como fundamento “espiritual” e inconsciente para assumir posturas iconoclastas. Meus cabelos brancos e meu suposto pertencimento ao stablishment (embora eu não saiba exatamente qual, além das fileiras humildes do proletariado) acabam por me transformar em alvo de certas investidas intelectuais. Já vi esse filme: cabe a mim desviar-me das pedras arremessadas e tentar levar adiante um debate que, se por um lado nunca dura muito tempo, por outro torna-se interessante justamente devido à fúria iconoclasta juvenil.

Pois eis que, recentemente, em rápido colóquio pela internet (não menos alegre por causa disso), saí em defesa dos textos “difíceis”. Comecei usando a famosa citação de Theodor Adorno segundo a qual a complexidade da realidade faz com que os textos que a descrevem ou tentem entendê-la sejam também necessariamente complexos. Claro que é provocação, pois sabemos que linguagem e mundo são coisas bastante diferentes. (Mas até que ponto ? Longa história). Após uma saudável e inteligente troca de argumentos com meus interlocutores – cuja ferocidade logo deu lugar à serenidade – surgiu um consenso segundo o qual o emprego de uma linguagem “difícil” pode ser perdoado, desde que não seja feito inutilmente (ou seja, quando há alternativas “fáceis”) e nem seja simples exibição de erudição (o que resulta em mera arrogância).

Os consensos me irritam, e a questão continuou me perseguindo mesmo depois do fim do colóquio. Mesmo porque poucos meses atrás, diante da obrigação de ler determinado livro de um “certo” Gilles Delleuze e da minha hesitação em iniciar a leitura do texto, comecei a reclamar longamente sobre a prolixidade e, sobretudo, sobre a aparente falta de sentido de sua escrita. A grande ironia é que eu estava diante de um livro de Delleuze justamente intitulado Lógica do sentido. Fui obrigado a enfrentar e resolver certas questões referentes à minha opinião sobre textos difíceis antes de começar a ler o a tal Lógica do sentido.

A forma como resolvi essas questões me fizeram encarar com mais coragem os “textos difíceis” e me levaram ao ponto de me tornar defensor deles, como por exemplo no recente colóquio citado. O emprego freqüente da palavra “ciência” pelos meus jovens interlocutores me chamou atenção para a forma como lidamos com os textos. Acredito que os que cobram a simplicidade da escrita buscam, acima de tudo, objetividade nos textos lidos. Se um autor pensa de uma determinada maneira, que ele diga claramente o que pensa e pronto. Parece racional, não ? Afinal, tantos autores na “história da ciência” foram simples e claros em suas proposições e argumentos...
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Oras, me pergunto se não haveria uma outra ordem de textos (correspondente a um outro tipo de pensamento), que deva fazer da "dificuldade" sua própria matéria, partindo do pressuposto de que o pensamento não se esgota no texto. Tento ser mais claro: se eu tenho uma opinião e tento transmiti-la, é meu dever ser claro. Porém, se eu parto do princípio que minha opinião não é definitiva – por exemplo, devido à complexidade do tema abordado – tenho a possibilidade de multiplicar os planos possíveis de leitura do meu texto (ou seja, sua complexidade/dificuldade) para que o leitor possa ir além do que fui na investigação do problema proposto. Nesse sentido, um texto passa a se abrir para várias possibilidades de leitura, para muito além daquilo que o autor “quis dizer”.

A analogia que faço é com a pintura. Todos podem ver e apreciar uma pintura figurativa. Há uma infinidade de discursos ou interpretações possíveis a partir da contemplação, por exemplo, de uma Mona Lisa. Porém todos eles devem necessariamente partir do fato incontestável de que se trata de uma mulher parada, vestida de preto e contemplando os observadores com um sorriso discreto. Queiramos ou não, essa é a figura que se apresenta diante dos nosso olhos, e identificamos sua forma porque temos o referencial incontornável da realidade a partir do qual fazemos uma comparação.

Porém, como agir diante de uma tela abstrata ? O trabalho, mental ou interpretativo, solicitado é certamente maior do que no caso de uma tela figurativa. Muitas vezes, o artista sequer imagina o alcance daquilo que vai ser pensado ou sentido a partir da contemplação de sua obra. Uma tela abstrata, assim como textos “difíceis”, representa sobretudo uma abertura para o pensamento, um convite para um trabalho do pensamento que pode ser bastante árduo. da mesma forma, em um texto “difícil” trata-se da possibilidade de “ir além do conceito”, só para citar o velho Adorno ainda uma vez.

Penso também na poesia. O sentido de uma poesia não se esgota no significado das palavras empregadas. Ler uma descrição sobre o rio que passa na minha aldeia pode ser entediante, mas também pode nos levar a verdadeiras sínteses metafísicas. Ou então, para continuar com as metáforas líricas, pedras que surgem no meio do caminho devem ser vistas menos como simples objetos e mais como uma possibilidade de criação de sentido. Quando um texto nos leva a isso, ele certamente cumpriu sua função, tenhamos ou não entendido exatamente o que o autor quis dizer.