domingo, 24 de abril de 2011

Notas sobre a multidão



Ce grand malheur, de ne pouvoir être Seul

Em 1840, o escritor norte-americano Edgar Alan Poe escreveu o pequeno conto “O homem da multidão” (The man of the crowd). Trata-se da breve narrativa de um personagem (o narrador) que, de dentro de um café ou bar, contempla a passagem das pessoas na rua até que avista um certo indivíduo na multidão, “um velho decrépito de sessenta e cinco a setenta anos de idade”, com a expressão marcada por uma “absoluta idiossincrasia”. Obcecado com a visão, o narrador passa a segui-lo pelas ruas de Londres, tarefa que se estende por horas a fio e termina somente ao amanhecer, com o velho prosseguindo na sua caminhada aparentemente interminável e o narrador concluindo: “Esse velho (...) é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito de seus atos”.

O interesse histórico despertado na narrativa está no fato de que o principal “personagem” colocado em cena pelo autor, e objeto acurado de descrição nas primeiras páginas do conto, é nada menos do que a multidão. Trata-se de uma novidade, trazida à cena pelos avanços da Revolução Industrial ao longo do século XIX e pela acelerada urbanização daí decorrente. O fenômeno chamou atenção dos contemporâneos, que passaram a ver na multidão ao mesmo tempo um objeto de admiração e medo, e a descrevê-la alternadamente como massa amorfa e soma de infinitos detalhes.

O advento da multidão e, sobretudo, fazer parte da multidão, acabou implicando no desenvolvimento de certas habilidades. O morador da grande cidade deve aprender novas operações do olhar, que possibilitem a sua sociabilidade e possam servir até como garantia de sobrevivência. “Viver numa grande cidade implica o reconhecimento de múltiplos sinais. Trata-se de uma operação do olhar, de uma identificação visual, de um saber adquirido, portanto. Se o olhar do transeunte que fixa fortuitamente uma mulher bonita e viúva ou um grupo de moças voltando do trabalho, pressupõe um conhecimento da cor do luto e das vestimentas operárias, também o olhar do assaltante ou do policial, buscando ambos a sua presa, implica um conhecimento específico da cidade” (M.S.Bresciani – Londres e Paris no século XIX).

O narrador de Poe, observador da multidão de dentro do café, demonstra possuir um olhar bastante arguto que utiliza para caracterizar minuciosamente os personagens da multidão, como mostram bem as primeiras páginas do conto. Devemos acreditar nele quando vê algo “diabólico” no velho e passa a segui-lo: nesse momento, o narrador deixa de ser um observador da multidão e passa a fazer parte dela.

O que significa estar na multidão, ou ser parte da multidão ? Multidão é anonimato, refúgio: estar na multidão e não sair dela por si só já implica em possibilidade de crime cometido. Ou, como observou Walter Benjamin, a multidão atrai quem não se sente seguro na sua própria sociedade. Além disso, a leitura arguta de Benjamin chama atenção para o seguinte trecho no conto de Poe, que fala do fluxo das pessoas na rua: “pareciam apenas pensar em abrir caminho através da multidão...se recebiam um encontrão de outros transeuntes não se mostravam irritados, ajeitavam a roupa e seguiam em frente... se tivessem que parar, paravam de murmurar... se eram empurrados, cumprimentavam as pessoas que as tinham empurrado e pareciam muito embaraçadas”. No trecho, Benjamin identifica no comportamento da multidão uma mimese do trabalho na fábrica: age-se por reflexo, impensadamente. Estar na multidão traz alguma alienação, implica na familiaridade com o próprio processo de produção, cada vez mais automatizado.

As ruas da Londres de Poe são iluminadas por lampiões a gás cuja luz, mesmo quando mais intensa, é apenas “trêmula” e provoca “fanáticos efeitos” (“wild effects of light”). A “neblina úmida e espessa” apenas contribui para dar à multidão um aspecto cada vez maior de fantasmagoria. Ainda seguindo Benjamin, o conceito de fantasmagoria é fundamental para a própria compreensão da sociedade capitalista que ganhava corpo ao longo do século XIX: é a imagem de algo que está ausente, de uma projeção do pensamento sobre, por exemplo, um objeto. Na sociedade capitalista, essa imagem é considerada como o real: trata-se de considerar a ilusão como imagem mental que percebe o mundo. Já o indivíduo convertido em fantasmagoria é aquele cujo trabalho tornou-se mera abstração, não estando mais vinculado a uma habilidade específica ou tarefa a ser realizada, mas simplesmente unidade de força medida através do tempo.


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(O texto acima foi escrito como parte de uma atividade da cadeira de inglês do Anglo, com o nosso querido professor Pantoja. O conto de Poe, em inglês, pode ser lido na íntegra em: http://bit.ly/f3MwCK )

sábado, 9 de abril de 2011

Alô, alô, torcida do Flamengo

1 Me pergunto por que diabos no Brasil as tragédias atraem multidões. Quase sempre vestindo bermudão, chinelo e camiseta, pessoas podem ser vistas se acotovelando diante das câmeras de TV ou apenas paradas ao longe, contemplando a cena, mãos para trás e com os quadris inclinados, numa tentativa de descansar as pernas depois de tantas horas em pé. Se o episódio for no Rio de Janeiro, a camiseta invariavelmente será do Flamengo.


Acredito que o que leva essa gente para o palco das tragédias é o estranho e jamais confessado desejo de ver o sofrimento alheio, o que no fundo expressa uma forma de regozijo diante da própria sobrevivência. Acho até que é esse mesmo sentimento que leva as pessoas a darem uma desaceleradinha no carro e espichar a cabeça para fora da janela quando se passa ao lado de um acidente. Nessa hora, pouco importa piorar o trânsito que vai se formando em uma via já parcialmente interditada, o que interessa é ver sangue. Ou então, não é nada disso, apenas o desejo de se distrair do tédio.

O fenômeno está longe de ser novo. Lima Barreto, em Triste fim de Policarpo Quaresma, dá uma viva descrição da Revolta da Armada de 1893 no Rio de Janeiro, episódio que ele presenciou:

Os soldados já estavam nas trincheiras, armas à mão; o canhão tinha ao lado a munição necessária. Uma lancha avançava lentamente, com a proa alta assestada para o posto. De repente, saiu de sua borda um golfão de fumaça espessa: Queimou! -- gritou uma voz. Todos se abaixaram, a bala passou alto, zunindo, cantando, inofensiva. A lancha continuava a avançar impávida. Além dos soldados, havia curiosos, garotos, a assistir o tiroteio, e fora um destes que gritara: queimou!

E assim sempre. Às vezes eles chegavam bem perto à tropa, às trincheiras, atrapalhando o serviço; em outras, um cidadão qualquer, chegava ao oficial e muito delicadamente pedia: O senhor dá licença que dê um tiro? O oficial acedia, os serventes carregavam a peça e o homem fazia a pontaria e um tiro partia.

Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade


2 Na tragédia do Realengo, a imagem mais impressionante talvez tenha sido a de um desses observadores anônimos (devidamente vestido de bermuda sem camiseta) beijando a mão do policial que deteve o Atirador. A mão direita, que efetuou o disparo. Nessa foto, a estúpida busca de heróis convive com o desejo de santificá-los, demonstrado por um ato de subserviência normalmente praticado em cerimônias religiosas (e mesmo nessas, o beija-mão sempre causa algum constrangimento). Parece que não era somente o Atirador que vivia em um estado de pobreza espiritual compensada por uma religiosidade mórbida: sua platéia também.

3 “Lavem meu corpo, me enrolem em branco, me enterrem ao lado de minha mãe”, diz o testamento do Atirador. E pronto, está tudo resolvido. Estranha essa relação com deuses que tudo perdoam. Até quando vamos continuar insistindo nessa bobagem de vida eterna e perdão para os “puros de alma” ? Penso que, no passado, quando o discurso da virtude era predominante e os vícios ocultados, qualquer pessoa que se achasse “anormal” (assassino, estuprador, pecador) remoía-se em uma culpa que, em casos extremos, talvez até contivesse seus piores impulsos. A isso dou o nome de Medo do Inferno.

Se outrora o “anormal” sentia-se doente diante da aparente virtude das demais pessoas, hoje, em plena liberdade dos costumes, ocorre uma inversão: é o “anormal” que passa a se achar virtuoso diante da sociedade corrompida. O mundo está errado, porém eu ainda entendo a palavra de deus. Daí o desejo de purificar as pessoas ou mesmo puni-las em nome de um deus que aceita e perdoa os poucos que ainda o seguem. A isso dou o nome de Certeza do Paraíso.