segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Serviço pesaaaado é comigo mesmo.

Tudo começou com uma preocupação estética: dias atrás, ao trocar um pneu de carro pela milionésima vez na vida, enegreci minhas mãos – como só uma troca de pneus consegue – e em seguida borrei a manga da camisa, manchei a calça, emporcalhei o estofamento do carro, deixei marcas de dedos pelo rosto. É sempre assim. Decidi, finalmente, comprar luvas, daquelas luvas que já vi usarem em demolição, carpintaria, essas coisas. Luvas para serviço pesado, que me seriam úteis nas futuras trocas de pneus e, de quebra, ainda serviriam para finalmente dar algum sentido àquele espaço do automóvel estranhamente chamado de “porta-luvas”. Mas onde encontrar luvas para serviços pesados ? Em uma Loja de Material de Construção, e lá vou eu em pleno sábado à noitinha para uma certa Leroy-Merlin.

Poucos lugares me causam mais estranhamento do que uma Loja de Material de Construção, a começar pelo endereço. Por que as Lojas de Material de Construção sempre ficam em avenidas afastadas, na Marginal ou nas saídas da cidade ? Sua localização e o tipo de coisa vendida nessas loja são quase que um convite ao crime. “Por favor, me veja uma serra elétrica e uma mala grande, rapidinho”. Ou à fuga rápida que se segue ao crime cometido. Se Janet Leigh em Psicose tivesse roubado os dólares em uma Loja de Material de Construção na Marginal Tietê, sua fuga não seria percebida, e sua vida, certamente muito mais fácil (e duradoura). O aspecto megalômano da coisa também me assusta um pouco e, conforme fui entrando, imaginei como seria bem mais legal fazer compras na loja de Ricardo Darín em Um conto chinês.

Seja como for, me dirigi à loja – que insisto em pronunciar Le Roi Merlin, só para dar um ar mais afrancesado e chique – e assim que cheguei senti o mal estar habitual. Trata-se de uma estranha e não muito bem vinda sensação de não-pertencimento, junto com a impressão de que eu realmente deveria me interessar por aquelas coisas todas. De fato, o meu repúdio ao trabalho manual talvez seja fruto do reconhecimento de que sou incapaz de fazê-lo. Ok, acho terrível perder tempo, digamos, instalando um varal de roupa, mas como minha vida seria mais fácil se eu tivesse a iniciativa de fazer esse tipo de serviço ! E, o mais instigante: quando finalmente encaro algum trabalho manual doméstico sinto um inesperado prazer ao concluí-lo, mais ou menos idêntico ao que eu tinha nas raras vezes que conseguia resolver um difícil exercício de Matemática no Ensino Médio.

Enfim, deixo as neuroses do cotidiano para depois e descrevo minha visita à Leroy Merlin. Combati a sensação de não-pertencimento já desde a entrada, assobiando, pelo menos mentalmente, a música Bad Leroy Brown ("The baddest man in the whole downtown/ Badder than the old King Kong/ Meaner than a junkyard dog"), e sentindo-me como se fosse o próprio. Peguei uma cestinha e juntei-me aos trogloditas que habitualmente frequentam essas lojas, com camisas do Corinthians e tudo. De cara, procurei um vendedor e perguntei, enquanto coçava o saco: “Tem luva pra serviço pesaaaaaado ?” O rapaz me indicou a seção de ferramentas, enquanto explicava para um grupo as vantagens de uma determinada bomba hidráulica (ou seria um motor de popa ?)

Chegando na tal seção de ferramentas, tive quase uma epifania. Nas prateleiras, a quantidade de equipamentos e objetos absolutamente desconhecidos por mim era espantosa. Minha ignorância sobre suas utilidades – e, na maior parte dos casos, a falta da mais vaga idéia sobre seu emprego – fizeram com que eu os percebesse apenas como objetos materiais, formas desprovidas de significado. Imediatamente, meu cérebro começou a achar usos para aqueles trastes todos, e a visita à Loja de Material de Construção ganhou um aspecto lúdico inesperado. Misturadores de tinta que se pareciam com esquis para anões, serras elétricas portáteis que pareciam discmen pré-históricos, ventosas para pegar vidro que pareciam o telefone usado pelo comissário Gordon para chamar o Batman (veja foto acima) Mas... espera aí. Ventosas ? Várias imagens do Homem-Aranha vieram à mente, e comecei a pensar em quantas daquelas ventosas eu precisaria para escalar uma parede vertical.

Logo, ninguém mais me segurava. Vesti o cinto de ferramentas, e imaginei-me dando aula com vários gizes e apagadores pendurados na cintura. Pus uma máscara de soldar preta e gritei “Nooooooooo”, como Darth Vader em O Retorno de Jedi (http://bit.ly/bTSPh5 ), para espanto de uma família que passava pelo corredor justo naquela hora. Finalmente, topei com uma prateleira de verdadeiras bazucas, cujo uso descobri assustado, ao ligar uma delas por engano. Tratava-se de um soprador de folhas – um soprador de folhas ! Pode existir algo mais divertido que um soprador de folhas ? Imaginei-me passeando pelos corredores da Editora Scipione com meu soprador de folhas, conturbando o ambiente, provocando um verdadeiro tornado no setor de entrega de originais.

Fiz as minhas compras feliz e contente, saí de alma lavada, ansioso para usar ou instalar todos os trastes que acabei comprando. E aí está o ponto. Qualquer trabalho torna-se interessante quando nele se descobre um aspecto lúdico. Qualquer ocupação ou serviço é interessante quando se projeta nele o humano, seja na forma da relação pessoal (“fazer amiguinhos”), do lidar com objetos (“brincar de construção”) ou simplesmente, jogar com as coisas. Ganho a vida brincando de professor e escrevendo textos para publicação. Escrevo como se estivesse fazendo uma redação para a tia corrigir, e como nem todas as vezes ela me dava 10, tenho que continuar tentando. Sempre.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Terceiro Aniversário



Lá pelas tantas, em Apocalypse Now, ouve-se a voz do coronel Kurtz (Marlon Brando), em uma gravação interceptada pelo exército americano: “Eu vi um caracol se arrastando pelo fio de uma navalha. Esse é meu sonho... e meu pesadelo. Arrastar-me pelo fio de uma navalha e sobreviver”. A imagem é perturbadora, e foi considerada um dos indícios da insanidade do bravo coronel. (A cena ocorre logo no início do filme, quando ainda ecoam na cabeça da platéia os acordes da música da abertura e a voz de Jim Morrison cantando The End)

Imagem semelhante aparece em uma parábola de Kafka: no meio de um caminho apresentam-se dois adversários, um persegue o caminhante enquanto o outro barra o seu caminho. O que vem por trás na verdade o ajuda na luta contra o da frente, pois que o empurra; enquanto o da frente faz o mesmo, pois o segura. Mas a luta é apenas teórica, pois há um terceiro oponente, o próprio caminhante. Quem sabe, na verdade, quais são suas verdadeiras intenções ? Estaria ele, mesmo esmagado, favorecendo um dos adversários ? Em um momento imprevisto o personagem sonha – “e isso exigiria uma noite mais escura que jamais o foi nenhuma noite” – pular para fora da luta e tornar-se juiz dos adversários que se enfrentam. Na leitura de Hannah Arendt, o salto para fora da luta é uma operação do pensamento, a busca do entendimento que é a única forma de conciliação do homem com o mundo, de evitar que sejamos esmagados.

Lembro da descrição de Nietzsche do espírito livre, como uma corda estendida entre o Homem e o Além-do-homem (Übermensch), e trata-se de uma corda estendida sobre um abismo. E lembro também do famoso texto de Benjamin, ao qual sempre retorno, sobre o Anjo da História (e aproveito para antecipar o aniversário do blog, que começou em setembro de 2008 com o nome de Angelus Novus): trata-se de um anjo empurrado irremediavelmente para frente, mas que não consegue deixar de encarar as ruínas ou fragmentos do passado que são deixadas para trás conforme o vento do progresso vai soprando. Trata-se da interpretação de um quadro de Paul Klee, que mantenho ainda como decoração desta página, no alto, à esquerda.

As situações todas se parecem, pois colocam em cena um limiar e tentam expressá-lo através de imagens. O limiar só existe quando se empreende um movimento, que só pode ser o da busca do sentido. Essa busca é a própria justificativa da existência do blog que, nos últimos 3 anos, sempre procurou o entendimento e mesmo em seus textos mais leves nunca abdicou da busca do sentido.

Limiar. A caminhada rumo ao sentido. O risco de desabar e descobrir que simplesmente não há sentido.

No próximo dia 15, o blog completará o terceiro aniversário. Em crise, como se percebe pelo seu mais longo silêncio. Agradeço a todos os alegres leitores, que continuaram acessando esta página mesmo sem nenhuma atualização. E dedico esse terceiro aniversário a D., que tem me ajudado a seguir em frente nos últimos meses, não importando a lentidão do caracol, a força dos adversários, o tamanho do abismo ou os fragmentos do passado.