sexta-feira, 27 de julho de 2012

Corvos e gaivotas


11 de julho, hora indeterminada, à bordo do vôo TF0013 para Istambul (sobre o deserto)

Acordo no Boeing 777 da Turkish Airlines rumo a Istambul em meio aos ruídos de um voo lotado. Percebo que o turismo de massas tem algo de destrutivo, e essa percepção é inevitável em um voo lotado rumo à Europa no verão. Percebo também que os próprios viajantes – tratados quase sempre como gado tocado, seja nos aeroportos, aviões ou nas afamadas “excursões” – fazem de tudo para escapar dessa sensação: tornou-se quase um fetiche do viajante que aspira um mínimo de dignidade descobrir “aquele lugarzinho especial”, onde os turistas nunca vão, “aquele restaurantezinho afastado”, frequentado somente pelos habitantes locais. Assim, o viajante pretende se destacar da turba e dizer que sua experiência de viagem foi singular, que vou aquilo que ninguém viu, e que foi tratado melhor que a turba. Lamento dizer, isso é falso. A própria presença do turista no “lugarzinho especial” faz com que aquele deixe de ser um lugar autêntico. Ao contrário do que sua mamãe dizia, você não é uma pessoinha especial, mas apenas mais um turista como os outros.

11 de julho, 18h04, Aeroporto Internacional Atatürk (Istambul)

A fila dos passaportes é imensa, e as cercas de vidro que delimitam o caminho da longa fila apresentam várias brechas. Algumas mulheres de véu aproveitam as brechas e furam a fila descaradamente. Como assim ? Sua religiosidade as faz usar véus, mas respeitar os semelhantes em uma situação banal do cotidiano não faz parte do universo de valores ? Lembro de Dostoievsky, de Ivan Karamazov: “Se deus não existe, então tudo é permitido”. Pois bem, para aquelas pessoas da fila nem a crença em deus traz algum compromisso ético.

12 de julho, 10h58, Museu da Inocência, nas proximidades da avenida Çukurcuma (Istambul)

 Em 2008, o escritor turco Orhan Pamuk publicou o livro O Museu da Inocência, que li avidamente no início do ano passado. Trata-se basicamente de uma história de amor, com um jeitão proustiano e tendo a cidade de Istambul como protagonista, como é comum nos livros do autor. Após a publicação do livro, Pamuk dedicou-se à organização de um Museu relacionado ao livro, em que estão expostos – de forma encantadoramente esquizofrênica – os objetos e até cenários do livro. O Museu (foto acima) acaba funcionando como um museu da cidade, e o ingresso se faz mediante a apresentação do livro e do bilhete impresso na página 550 (no caso da edição brasileira), que é devidamente carimbado.
Me pergunto que outro autor chegaria ao requinte de erguer um Museu em homenagem à própria obra, com a humildade de Pamuk e sem parecer megalômano. Penso em quais autores tem uma obra rica suficiente para erguer um Museu. (Penso em Gabriel Chalita, cuja copiosa obra caberia em um gaveta).

13 de julho, 17h06, dentro de Aya Sofia (Istambul)

O turista pergunta, “Pode fotografar ?”. Penso em tudo por que a igreja de Santa Sofia já passou, desde que foi construída em 537: seis terremotos, um incêndio, três saques, dois desabamentos de cúpula, um desabamento de parede, três reconstruções, duas reconversões e um Cisma. Ok, filho, pode fotografar.

 14 de julho, praça Mehmet Akif Ersoy (Istambul)

Nada como uma educação turca. O menino, nos seus oito ou nove anos – caminha com dificuldades em uma arquibancada temporária construída no meio da praça, tentando seguir seu pai e irmãos. Com dificuldades, ele tropeça e vai ao chão, evidentemente se machucando e soltando um pequeno grito. O pai, ao ver o que aconteceu, retorna ao menino e dá-lhe um sonoro safanão na orelha, punindo-o por ter caído.

15 de julho, 9h46, bairro de Süleymanie, próximo à Universidade (Istambul)

Assisti o golpe inúmeras vezes: um engraxate em andrajos, meio velho, porém corpulento, caminha cabisbaixo pela rua, carregando sua caixa de engraxar, Ao cruzar com o turista em uma rua pouco movimentada, ele faz um discreto movimento com a mão que segura a caixa de engraxate e faz cair uma escova. O turista, desavisado e apiedado do pobre engraxate, prontamente recolhe a escova e a devolve. Em seguida, o engraxate agradece copiosamente, com todas as manifestações de humildade e submissão otomanas, inclusive beijar as mãos e se ajoelhar diante do benfeitor. Em seguida, o humilde engraxate se oferece para limpar os sapatos do pobre turista que, constrangido, acaba permitindo. Ao término do serviço, o engraxate se levante e diz: “Twenty lira”. O tom de voz humilde do engraxate se torna ameaçador, o gesto de bondade se transforma em assalto. E assim a Quarta Cruzada é vingada.

16 de julho, 13h15, Piazza Annunziatta (Genova)

Chego em Genova como Peter Sellers chegando em Nova York no filme O Rato que ruge. A cidade está vazia, não se percebe uma alma nas ruas. Saio a caminhar apreensivo e, por volta das 15h, a cidade volta a vida: como em todas as cidades do Mediterrâneo no verão, a vida é suspensa no horário de maior calor do dia.

17 de julho, um café em Lungarno (Firenze)

Duas partes de Aperol + duas partes de prosecco + uma parte de água tônica = SPRITZ !


19 de julho, 17h35, caminhando pelo Centro Storico (Firenze)
 
 
 Genova é feminina. Talvez por ficar no fundo de um golfo, e por acolher com segurança os navios que vêm para seu porto. Nas águas do mar da Liguria, em Genova, brota a vida, sob a forma dos frutos do mar servidos nos restaurantes de Lungomare. As curvas sinuosas da cidade e de suas ruas, descendo e subindo morros, formando túneis sob os morros. Mesmo o inevitável monumento aos mortos da Grande Guerra, que toda cidade europeia possui: em Genova assume a forma de um arco, por dentro do qual ocorrem a cerimônia e passam os desfiles.

Florença é masculina, com sua impressionante profusão de órgãos genitais masculinos espalhados pelas infinitas estátuas renascentistas da cidade. O “maior” deles pertence ao Davi de Michelangelo, exibido na Galeria dell’Academia, em reproduções em tamanho real na Piazza Michelangelo e frente ao Pallazzo Vecchio, mas também em camisetas, broches, imãs de geladeira, cuecas desenhadas e mil bugigangas fálicas vendidas pelos comerciantes de rua por toda a cidade. Aqui, o monumento à Grande Guerra é uma coluna. A própria basílica e sua cúpula foi construída ao lado de um batistério, o que acaba resultando em duas de cúpulas e, entre elas, ergue-se a coluna possante do Campanille.

 20 de julho, 22h12, Via San Gallo (Firenze)

Ops ! Quem é aquele caminhando no meio da rua ? Professor Augusto !!!

21 de julho, 11h18, Piazza Maggiori (Bologna)

Bolonha é a terra dos embutidos. Nos açougues, você pode escolher entre salame, salsiccia, prosciutto, copa, speck, lardo, bresaola, mocetta, pancetta, finocchiona. salamella, montone, filetto insaccato, sfilacci, sopressata, capocollo, figatelli, cervellata, sanguinaccio, ciauscollo, cotechino, guanciale, zampone, violino, lonza e, claro, mortadela, afetuosamente denominada pelos habitantes da cidade como “bologna”.

 22 de julho, Via San Lorenzo (Genova)

CASA DEL PIACERE SORA GEMMA

Alla buona: ₤ 110
Doppietta: ₤ 200
Mezza ora: ₤ 450
Ora intera: ₤ 630
Acqua e asciugamano di tela compreso.

AGEVOLAZIONE PER IL GIOVANOTTO DI PRIMO PELO

23 de julho, 18h50, avenida Divan Yolu, (Istambul)

 Sem saber, volto para Istambul no Ramadã, pouco antes da hora do final do jejum. A cidade está em festa ! Famílias fazem piqueniques em cada gramado de cada praça, os restaurantes oferecem menus especiais de Ramadã, e longas filas se formam nas suas portas esperando o pôr-do-sol. Os já enorme espectro dos vendedores de comida nas ruas, se multiplicas: doces, frutas, sorvetes, salgados, pães. O vendedor de simit agora exibe kadin-ğobeği, “rosquinhas pesadas cobertas de xarope que, quando bem feitas são leves para comer, como o ar e o paraíso”, nas palavras do escritor Irfan Orga. Música ao vivo, feirinha, espetáculos de marionetes, minaretes iluminados. Não há dúvida, é preciso sempre voltar a Istambul.