segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Futebóis

 
Prólogo
 
 Admito: falar mal de futebol é uma delícia, falar mal de torcida é melhor ainda – e fácil, ainda por cima. Intolerância, violência, comportamento de horda, além da certeza de que o torcedor “normal” (aquele que não espanca pessoas de outras torcidas) é de alguma forma cúmplice da barbárie geral. Futebol profissional, ainda por cima, é nada mais que uma bobagem, e a administração do futebol beira a criminalidade - isso pra não falar do aspecto “Pão e Circo” da coisa toda. Futebol profissional, no fundo é apenas ódio, estupidez e emoções baratas.
 
Resta o problema de como conciliar essa visão pessimista com o fato incontestável de que o jogo em si é legal, e ir ao estádio é a quintessência do prazer futebolístico, mais até do que a própria prática do jogo, com suas botinadas e “vitórias a qualquer custo”. Fora das quatro linhas, podemos assistir, com a possibilidade de transformar o jogo em narrativa, dar-lhe nova dimensão através da narrativa. Cena primordial: Nelson Rodrigues, míope feito uma toupeira, acompanhando sabe-se lá o que das arquibancadas do Maracanã, para escrever seu comentário sobre o jogo no jornal do dia seguinte.
 
Enfim, periodicamente – e em segredo – dirijo-me a estádios, para acompanhar os jogos mais diversos. Sem preferências clubísticas (nos últimos meses vi jogos de Santos, Portuguesa, São Paulo, Corínthians, para citar só os da cidade) e aproveitando para conhecer lugares por aí (do Municipal de Sorocaba ao Parc des Princes, passando pelas mil vezes que fui ao meu preferido, o Pacaembu).
  
Cena 1 – entrada do estádio
 
Dia desses, alegre e fagueiro, sigo para o Morumbi, depois de anos sem sequer chegar perto do bairro. Compro caros ingressos nas cadeiras cobertas, chego cedo para evitar trânsito e levo um exemplar da revista Cult (“dossiê Adorno”) para ficar lendo antes do jogo.
 
Os torcedores são revistados, como de hábito e, para minha surpresa, o tradicional guarda troglodita que me apalpa proíbe que eu entre com a revista. Pergunto por que, e ele me diz que alguns torcedores põem fogo em jornais, criando pequenos incêndios. Digo que minha revista não é um jornal e que havia acabado de comprá-la.
 
 Ele sequer respondeu. Com um sorriso assustadoramente inexpressivo, o guarda olhou nos meus olhos e arremessou a revista para o lixo, enquanto esperava – ainda sem dizer nada e ainda sorrindo – que eu desse lugar ao próximo torcedor a ser revistado. Foi um dos olhares mais assustadores que recebi na vida. Imaginei que, nos porões, torturadores davam esses sorrisos, enquanto prosseguiam impassivelmente no exercício de suas atividades. Senti um calafrio na espinha.
 
Claro, sobrevivi ao episódio e logo estava fazendo piadas sobre o fato de que a minha revista pelo policial tinha sido logicamente exemplar: ele tomou nada menos que a minha revista.
 
Cena 2 – já dentro do estádio
 
 
E vamos lá, após a revista e sem a revista, assistir a um jogo do São Paulo. Atrás de mim, um moleque, nos seus 7 ou 8 anos, berrando feito um louco. Desde o anúncio dos jogadores pelo alto-falante, e durante toda a partida, mesmo nos momentos menos emocionantes, o petiz se esganava. Tinha uma preferência especial por Luís Fabiano, a quem ele encorajava, aconselhava, xingava, ou simplesmente gritava o nome,  prolongando e modulando o último "O"  até atingir níveis insuportáveis.
 
 
As pessoas nas cadeiras olhavam para trás espantadas, ele incomodava a todos em um raio de uns vinte metros e, caramba, estava exatamente atrás de mim. Depois de um dos gritos, particularmente ardido, olhei para trás e o pai, desolado, como que se desculpou com o olhar. Me perguntei porque diabos esse pai banana não conseguia controlar o filho. Pois ele não chamou atenção do fedelho nem uma vez sequer.
 
 
Lá pelas tantas, o bacuri virou para o pai e desabafou, baixinho, só quem estava muito perto (=eu) ouviu: “Puxa , pai estou tão feliz de estar aqui com você hoje ! Sabe, eu nem dormi direito essa noite de tão feliz que estava em vir no jogo...”.
 
 
Puxa vida. Vai se foder. Me derreti todo. Como é que uma coisa que gera tanto ódio e tanta estupidez como o futebol é capaz de mexer com emoções e aproximar pai e filho desse jeito ? Fiquei imaginando não só a ansiedade do pequenino, mas a memória que ele construiu desse dia que será, certamente, inesquecível em sua vida. Mas será que essa emoção autêntica vai sobreviver à lavagem cerebral futebolística ? Será que o garoto irá necessariamente se transformar em um torcedor fanático com tendências homicidas e, convenhamos, fascistas ? Haverá um meio termo possível ?
 
 
O comentário do menino deixou um raio de esperança. E depois de ouvi-lo, não tive mais coragem de olhar para trás com cara de bravo sequer uma vez.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Dois heróis da década de 1950


 
Oscar Niemeyer
 
Viver 104 anos já é uma forma de heroísmo. O repertório de lembranças acumuladas e o simples fato de sobreviver com lucidez diante dessa massa avassaladora já convertem o centenário em alguém que ultrapassa os feitos humanos, que se projeta para além do homem. Há porém alguma coisa triste no artista longevo: o tempo pode condená-lo à eterna repetição de si mesmo, e sua obra, a uma caricatura do que passou.

A arquitetura de Niemeyer é inseparável de seu tempo. Nas décadas de 1940 e 1950, ninguém dava muita bola ao ambientalismo, ou muito menos à – odeio essa palavra – sustentabilidade. Para os arquitetos dessa geração, amplas superfícies impermeabilizadas eram perfeitamente aceitáveis, assim como grandes edifícios envidraçados nos trópicos, consumindo energia elétrica violentamente em suas máquinas de ar enlatado.

Tampouco preocupava-se com a ligação do edifício com o entorno. Alguns pensavam o edifício como um monumento, uma marca a ser deixada na paisagem, e pobre da cidade que tivesse que conviver com uma multidão de monumentos empilhados, com a marca pessoal de cada arquiteto se perdendo no meio de um conjunto amorfo. Para essa geração, a saída era construir cidades inteiras, e Niemeyer foi um dos poucos que teve essa possibilidade.

No plano puramente estético, Niemeyer conviveu com o modernismo e a possibilidade da construção de edifícios brincando com formas geométricas. É um dos pais daquilo que eu chamo de “arquitetura de maquete” (aquilo que se ensina nas escolas de arquitetura hoje em dia): edifícios com formas geométricas básicas, que até ficam bonitinhos na maquete, mas que, uma vez construídos, parecem fora de qualquer dimensão humana.

A própria revolução das formas curvas, com as quais Niemeyer supostamente rompeu a rigidez da geometria modernista, pode ter tido o seu momento nos anos 1950. Todavia, uma vez repetida ad nauseam nos próximos 60 anos, acabou desvendando aquilo que ela efetivamente é: um uso exagerado do concreto, com tudo que ele tem de sujeira e rápida obsolescência. (No mundo de Niemeyer, provavelmente o Estado seria responsável pela manutenção impossível das superfícies curvas de concreto, não importando o custo. Sua arquitetura sempre foi tão utópica e falida quanto o estado socialista em que acreditou).

David Brubeck

Enquanto músicos negros faziam jazz em Nova York, um branquelo judeu da Costa Oeste tentava fazer o mesmo. E não é que conseguiu ? Acabou criando sua própria linguagem, e deixou para a Humanidade Take Five, em que eu sempre penso quando imagino uma Música Perfeita.

Depois do sucesso estrondoso na década de 1950, saiu em busca da renovação, não encontrando, infelizmente, nada que se comparasse ao disco Time out, de 1959. Ao contrário do outro herói, seu contemporâneo, David Brubeck não se contentou com a eterna repetição de si mesmo, e muito menos foi canonizado em vida.

Ainda assim, a música de David Brubeck, por mais imaterial que seja, preenche mais espaços no espírito do que todos os prédios de Niemeyer e suas toneladas de concreto.