quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Boston abaixo de zero


Miami International Airport, 23 de janeiro, 7h53

Escala na Flórida, sempre uma oportunidade de observar o comportamento dos compatriotas fora de casa. Antigamente, era muito fácil identificar um brasileiro no exterior, sobretudo na Europa: bastava procurar alguém com um boné escrito NY ou um moleton de universidade americana ou as inevitáveis camisetas “Hard Rock Cafe – Miami”. Queríamos ser americanos. Hoje, por mais estranho que seja, os brasileiros se vestem com mais discrição, embora tenham conseguido mais do que nunca personificar o norte-americano: comportamo-nos como novos-ricos desvairados.

 
Doral Billiards, Miami, 23 de janeiro, 21h35
 
Quase um cenário de filme. Já no estacionamento percebo uma quantidade significativa de pick-ups e carros esporte. No interior enfumaçado (é permitido fumar), mesas de sinuca, cerveja em jarras, atendentes peitudas e telões exibindo vários esportes ao vivo. Por todos os lados, posters com mulheres voluptuosas anunciam exibição de UFC no fim de semana. Das paredes escorre testosterona.

 
ao longo da Freedom Trail, Boston, 24 de janeiro, 13h02
 
Boston também é chamada de Beantown, devido à fama de comedores de feijão que seus habitantes têm. Ou melhor, tinham: reviro a cidade em busca de um bom prato de feijão no estilo Boston e simplesmente não encontro. Em compensação, tem gente vendendo lobster bisque em qualquer esquina. Os bostonianos tornaram-se novos ricos desde há muito, e deixaram seus pratos de feijão no passado.

 
Estação do metrô Kendall/M.I.T., Cambridge, 24 de janeiro, 18h12
 
No metrô Kendall/M.I.T. há estranhas alavancas na parede da plataforma de embarque. Uma vez puxadas, elas imprimem movimento pendular a grupos de martelos pendurados no teto, entre as duas linhas de trem; os martelos, por sua vez, atingem longos cilindros sonoros de metal, produzindo som do badalar de sinos. Para quê ? Para nada: apenas para as pessoas se divertirem enquanto o trem não chega.

 
Kendall Square, Cambridge, 25 de janeiro, 8h48

Dez graus abaixo de zero, céu claro, previsão de neve só no fim de semana. Antes de sair do hotel, checar: luva, cachecol, gorro, protetor labial, gel para as mãos (há epidemia de gripe na cidade), mapa, carteira, passaporte, cartão do hotel, bilhetes do metro, celular, moedas, chave da fechadura da mala, óculos de leitura. Vou deixando um rastro de objetos perdidos pelo caminho.

 
Kendall Hotel, Cambridge, 25 de janeiro, 13h14
 
Do meu quarto do hotel tenho acesso à Wi-Fi ultrarrápida do M.I.T. Meu celular quase explode carregando páginas e páginas a fio da internet.

 
Park Street, Boston, 26 de janeiro, 11h26
 
Além de Harvard (20 mil alunos) e do M.I.T. (10 mil alunos), situados na vizinha cidade de Cambridge, a cidade de Boston – de seiscentos mil habitantes – ainda abriga a Norht Eastern University (20 mil alunos), a Boston University (30 mil alunos) e nada menos que 52 outras faculdades ou universidades menores. O resultado é que a média de idade da população é bastante baixa, e essa juventude transbordante é vista nas ruas o tempo todo, em grupos ou isolados, no metro ou de bicicleta. Em 70% dos casos carregam imensos copos de papel com café, em 80% dos casos estão digitando no celular.

 
Livraria Barnes & Noble, Prudential Center, Boston, 26 de janeiro, 12h10
 
Nessa imensa livraria, as estantes de Filosofia situam-se entre “Religion” e “New Age”.

 
M.I.T., Cambridge, 26 de janeiro, 19h49
 
Sábado à noite, maratona de ficção científica no cineclube no M.I.T. ! O programa anuncia nada menos que 4 filmes, além de pizza break e uma atração surpresa (a exibição do primeiro episódio para a TV de Star Trek, em cópia de 35mm). O programa termina às 6h da manhã do domingo, e nada menos que 140 Sheldons e Leonards compareceram. Impossível não pensar que, na mesma noite, em outra universidade bem longe daqui, o pessoal foi para a balada...

 
North End, Boston, 27 de janeiro, 15h27

 Havia um super-minhocão em Boston até a década de 1990. Além da feiúra habitual, o monstro de concreto enfrentava congestionamentos diários e foi responsável pela deterioração do entorno no nível do solo – o que, aliás, também é habitual nesse tipo de construção. Pois e não é que eles derrubaram o troço todo ? A cidade ganhou um longo parque, de quilômetros de extensão, facilitando a ligação do centro com North End e South End por pedestres que, dessa forma, puderam voltar às ruas.

 
Legal Sea Foods, Cambridge, 28 de janeiro, 17h43
 
“Six for six”, seis ostras por seis dólares é a promoção do happy-hour. Termina às 6h da tarde.

 
M.I.T., Cambridge, 29 de janeiro, 11h27
 
Pelas prateleiras do M.I.T., cruzo com um Principles of Quantic Mechanics, de autoria de um certo R.Shankar. Trata-se de uma introdução ao assunto, me explicam. Mas, peraí, R.Shankar ??? Impossível não lembrar de Ravi Shankar, tocador de cítara indiano e guru dos Beatles a partir de 1966. Fico imaginando que a dissolução da banda levou o músico indiano a perder popularidade. Desiludido, voltou para a Índia em busca de novas experiências místicas – o que o levou, obviamente, à mecânica quântica. Um pouco antes de me aprofundar no delírio, me explicam: R. é de Ramamurti, nada a ver com o mago dos Beatles.

 
Miami International Airport, 29 de janeiro, 17h19
 
No balcão da imigração. “Por favor, não me entregaram o formulário I-94 quando eu entrei. Eu não teria que devolvê-lo agora ?”. O guarda, de feições cubanas, pega meu passaporte vermelho, olha e me devolve dizendo: “Você não precisa de formulário I-94. Você é italiano”.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Arquétipos


Não há dúvida que ser competente dá trabalho, muito trabalho. Fique claro desde já que, ao usar o termo “competente”, me afasto um pouco do sentido corriqueiro da palavra – um misto de “empreendedorismo” (urgh !) com propensão a ganhar dinheiro a qualquer custo. No conceito de competêncina, prefiro enfatizar aquela dedicação à tarefa que resulta em um trabalho bem realizado.
 
É fácil perceber a competência na prática do trabalho manual, partindo do uso dos objetos produzidos. Penso nisso toda vez que entro no banheiro recém-reformado e só consigo manter a luz acesa, sem piscar, dando um murro no interruptor. Gostaria porém de pensar em competência na realização do trabalho intelectual, supostamente minha área central de atuação. Nessa área, o trabalho necessário à redação do texto consistente, à apresentação da tese original ou simplesmente à prática do pensamento rigoroso é tremendamente árduo.
 
Há, todavia, uma curiosa tendência de evitar (ou ser incapaz) de realizar o trabalho árduo e, em compensação, tentar demonstrar a competência assumindo traços de comportamento do intelectual comprovadamente competente. É o que eu chamo de cultura do arquétipo, e cito alguns exemplos imediatos.
 
Nas ciências Exatas, a figura do cientista desligado ou de comportamento extravagante tornou-se arquetípica – muitas anedotas e a famosa foto de Einstein estendendo a língua ajudaram a criar o arquétipo. Assim, muitos jovens físicos e matemáticos assumem comportamentos pouco convencionais, como tentativa de reforço a um trabalho acadêmico ao qual falta o brilhantismo.
 
Nas ciências Biológicas, ao que me parece, o arquétipo do brilhantismo passa pelo ateísmo. Transmite aquela imagem de cientista que entendeu efetivamente o evolucionismo e, com dificuldades em suas pesquisas acadêmicas, busca a aura de herói da ciência ao combater o obscurantismo religioso.
 
Porém, detenho-me nas ciências Humanas, área na qual o arquétipo da seriedade intelectual é nada menos que a melancolia. Para muitos, é necessário ser melancólico para ter credibilidade. A origem é evidente, Walter Benjamin, cujo obra é toda perpassada pelo  conceito de melancolia, vista pelo filósofo alemão como estado de espírito característico do sujeito moderno. Um dos pontos de partida é o pensamento de Freud, que aproximou a melancolia do luto tanto nos sintomas (paralisia, desânimo, tristeza) como nas origens (uma perda ou afastamento). Uma vez que a modernidade é fundada no transitório, no fugidio e no passageiro, a sensação de perda – fundamento do sentimento melancólico – passa a ser uma constante. No plano ético, essa perda relaciona-se com o afastamento do sujeito em relação ao Bem que, pelo menos na sua dimensão pública, transferiu-se para outras instâncias.
 
Numa estranha inversão, a genialidade da obra de Benjamin é obscurecida pela beleza dos textos, pela escrita fácil e elegante, que o faz um preferido de jovens estudantes das ciências Humanas. Acontece que além de conceituar a melancolia, Benjamin foi efetivamente um melancólico e seus bravos seguidores nas ciências Humanas, que nem sempre estão atentos às filigranas de seu pensamento, acabam incorporando apenas o arquétipo. Ser melancólico é ser benjaminiano, é estar por dentro. É ter credibilidade.
 
Penso na Universidade. Lembro-me de ter lido uma tese de doutorado da Letras, em que a autora caracterizava minuciosamente o trabalho de tradução, recheando sua análise com conceitos benjaminianos e terminando por concluir que todo tradutor é um melancólico – maior elogio impossível.
 
Penso nas esquerdas, que dominam a produção intelectual nas Humanas, pelo menos no Brasil (vai lá ler Gramsci e entenda porque). Nesse caso, o sentimento de perda, fundamento da melancolia, é real. A queda do modelo soviético levou junto uma alternativa à ordem capitalista, e a ideologia que lhe sustentava, queira ou não, ficou abalada. Nos últimos trinta anos, a palavra de ordem passou a ser: recolher os cacos, reconstruir a ideologia, olhar para o futuro, mas sempre sentindo o gosto amargo da perda.

 Penso no Poeta. Por que ele escreve ? Se dói, ele escreve para sedar a sua dor; se não dói, ele não estaria escrevendo, mas se divertindo por aí. Se perdeu, escreve para recuperar; se não houvesse perdido, estaria usufruindo e não escrevendo. Se está só, escreve para ter companhia; se já tem, vai aproveitá-la. Não haverá por trás de toda Lírica um sentimento negativo (e não seria Lírica a forma de ultrapassá-lo, produzindo, como efeito colateral, o Belo ?).
 
Penso no fascismo e seus sucedâneos. O otimismo desvairado fascista faz com que qualquer aparente bom-mocismo entusiástico seja visto com suspeita. Além disso, quando o anjo da História (e dá-lhe Benjamin) olha para trás, nos últimos cem anos ele tem que lidar com um rastro de destruição francamente devastador.
 
Penso em Ernesto Sábato, meu segundo autor argentino preferido. Lendo o romance “Sobre heróis e tumbas” (ainda estou na página 40, o termo melancolia/melancólico já apareceu cinco vezes) me deparo com o seguinte trecho:
 
...por isso os pessimistas são recrutados entre os ex-esperançados, pois para ter uma visão negra do mundo há que antes ter acreditado nele e em suas possibilidades. E é ainda mais curioso e paradoxal que os pessimistas, uma vez decepcionados, não estejam constante e sistematicamente desesperançados e que, de certo modo, pareçam dispostos a renovar sua esperança a cada instante, embora o dissimulem sob seu negro invólucro de amargos universais, devido a um certo pudor metafísico, como se o pessimismo, para manter-se forte e sempre vigoroso, precisasse de vez em quando de novo impulso produzido por uma nova e brutal decepção.
 
A melancolia produz melancolia. Tenho saudades de quando a melancolia era apenas um sentimento, e não um valor.