terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Pensamento em feixes




Chamo de pensamento em feixes uma certa forma de entendimento ou de apreensão da realidade fundada no  agrupamento de conceitos básicos em conjuntos de definições facilmente manejáveis: os feixes assim formados podem ser rotulados sem dificuldades e, para uma facilidade maior ainda no seu manejo, tendem a ser agrupados em pares do opostos, com a consequente  tendência ao maniqueísmo e à simplificação.


 Trata-se de uma forma instrumental de lidar com a complexidade das coisas, oferecendo a possibilidade de responder a demandas do cotidiano e posicionar-se diante de diversas situações. É também uma forma de sociabilidade, na medida em que oferece facilmente a possibilidade de emitir opinião, sobretudo em discussões pouco profundas, rápidas ou em meio a um ambiente politizado, por exemplo, no corpo discente universitário.


 A origem do pensamento em feixes é dupla: em primeiro lugar, a herança da Revolução Francesa, que tirou das costas do homem o peso do destino traçado desde o berço. Em um mundo aberto às possibilidades, ter uma opinião e entender as cosias do mundo para tornar-se dono do próprio destino passa a ser um imperativo. Em segundo lugar, a oferta cada vez maior de informações oferecida pelos meios de comunicação de massa, processo que caminha lado a lado com a própria aceleração do ritmo da vida. O tempo de reflexão já desapareceu desde há muito, substituído pela prática incessante da atividade, seja no trabalho, seja em seu aparente oposto, o lazer, que é  basicamente a imagem invertida do trabalho: o seu espelho pois também implica no fazer algo. A atividade é transformada em verdadeiro culto, sendo realizada sempre no tempo presente, um tempo que nunca acaba e que tem a estranha propensão de anular o futuro e apagar o passado. O totalitarismo do presente não apenas empobrece a experiência como esgota o pensamento, que não vxiste fora da temporalidade.


 Muito do que chamamos de educação consiste em exercitar o pensamento em feixes, quando os professores oferecem a farmácia completa, com os rótulos já afixados em grupos de ideias prontas. Muitos textos rasos da internet - às vezes seguindo fórmulas de 140 caracteres - produzem o pensamento em feixes. A linguagem empobrecida, manifesta, por exemplo, no uso desmedido de adjetivos, produz pensamento em feixes. Certas modalidades do radicalismo político produzem o pensamento em feixes, uma vez que necessitam do maniqueísmo.


 Existe, porém, uma porta de saída desse mundo cheio de rótulos que já não dizem mais nada. Trata-se do resgate do conceito, do “árduo trabalho do conceito”. Ao invés da definição estreita, a construção do conceito que só pode ser feita através do diálogo, no sentido platônico mesmo do termo: do embate amigável em que ideias “se esfregam” umas às outras, se esfarelando, começando novamente, criando novas ideias e tentando desenhar um caminho rumo ao entendimento. Há que se abrir espaço ao diálogo, lembrando que sem a leitura de textos e a prática da reflexão poucos diálogos se sustentam.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Sobre deuses e cães




Alguns dos que acreditam em deus partem de princípio de que sua crença é universal, e chegam até a se colocar em uma posição de superioridade moral em relação aos que não acreditam. Muitas vezes agem como se fosse detentores de uma certa verdade, e os que não acreditam em deus merecem deles ou um olhar de pena, na melhor das hipóteses, ou de hostilidade, como é cada vez mais comum.

Para muitos não basta acreditar em deus, sendo necessário manifestar visivelmente essa crença. Na Inquisição, os que não praticavam essas manifestações visíveis eram suspeitos, o que por si só já valia muitas vezes uma sentença judicial.

Alguns dos que acreditam em deus não conseguem separar a esfera religiosa das demais, e colocam sua religiosidade numa posição superior em relação às outras: projetam a religiosidade no seu próprio entendimento das coisas. São chamados de fundamentalistas, e temo que se tornem maioria um dia.

Os fundamentalistas atribuem significados novos a certas palavras, significados carregados de valoração e distantes de seu conceito original. Assim, “ateísmo” se transforma em uma opção inconcebível (chegando mesmo a causar estranhamento quando afirmado claramente), quando na verdade o ateu muitas vezes chegou a essa posição após uma reflexão filosófica elaborada, que muitas vezes falta aos que seguem as fórmulas fáceis da religião.

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Alguns dos que possuem cães partem do princípio de que seu gosto é universal, e chegam até a se colocar em uma posição de superioridade emocional em relação aos outros, (chamados “insensíveis”). Muitas vezes agem como se fosse detentores de uma certa verdade, e os que não gostam de cães merecem  deles ou um olhar de pena, na melhor das hipóteses, ou de hostilidade, como é cada vez mais comum.

Para muitos, não basta gostar de cães, sendo necessário manifestar visivelmente esse gosto. Em certos círculos, os que não praticam essas manifestações visíveis são suspeitos, o que por si só já vale muitas vezes uma sentença moral.

Alguns dos que possuem cães não conseguem separar a posse de animais do universo do convívio social, e colocam as necessidades de seu animal numa posição superior à da vontade das pessoas: usam-nas para orientar as práticas de seu próprio cotidiano. São chamados de fundamentalistas, e já são maioria desde há muito.

Os fundamentalistas atribuem significados novos a certas palavras, significados carregados de valoração e distantes de seu conceito original. Assim, “prender o cachorro” se transforma em uma exigência inconcebível (chegando mesmo a causar estranhamento quando proposta seriamente por alguém), bem como uma punição ao pobrezinho, quando na verdade o próprio animal, incapaz de discernimento, jamais irá entender assim.


Não tenho dúvida que deuses e cães têm a estranha capacidade de promover a suspensão da racionalidade.