terça-feira, 8 de abril de 2014

Bem mais que cem anos



O mundo terrestre era visto como palco da luta entre as forças do Bem e as do Mal, hordas de anjos e demônios. Disso decorria um dos traços mentais da época: a belicosidade.

...escreveu sobre a Idade Média o professor Hilário Franco Júnior, “esse grande medievalista brasileiro” (como o chamou Jacques Le Goff, esse grande medievalista francês). Utilizo essa citação para retomar o tema do último post, sobre uma certa visão anacrônica de luta de classes, ao mesmo tempo maniqueísta, belicosa e fora do seu tempo.

Uma das características mais evidentes do movimento socialista mundial através da História é a sua falta de unidade. Nas palavras do professor Bucci, “a esquerda não consegue se unir nem para eleger síndico de prédio”. A divisão das esquerdas talvez seja fruto dessa visão maniqueísta que, ao identificar o proletariado como uma massa homogênea, busca desesperadamente ser o seu intérprete: dessa forma, todos os grupos pretendem expressar a verdade única do proletariado colocando-se na vanguarda da luta pela sua emancipação e, na prática, fragmentando a esquerda em mil pedaços. Não seria a multiplicidade das “verdades” expressas pelos vários grupos um sintoma da própria heterogeneidade de uma classe que, na verdade, seria múltipla ? Volto ao argumento do post anterior: talvez uma caracterização de classe social tendo como único referencial a matriz econômica seja expressão daquele reducionismo economicista tão característico de um marxismo ligeiro.

Além da divisão das esquerdas, também me parece evidente, na história, aqueles diversos momentos em que há convergência de interesses entre classes sociais. Ao invés de quebrar a cabeça buscando encontrar a fórmula que expresse a verdade do proletariado, não seria o caso de identificar a barbárie e reunir forças para combatê-la ? Se os socialistas e os, vá lá, liberais, tem como fundamento teórico e projeto último a emancipação dos homens, seja enquanto indivíduos ou enquanto coletividade, não seria o caso de assestar as baterias contra aqueles que, em número cada vez maior, apontam para o obscurantismo ? Por exemplo, vejo com perplexidade o crescimento da religiosidade intolerante e fanática. Esse movimento coloca em xeque a herança iluminista dentro da qual floresceu tanto o liberalismo quanto o marxismo, ambos fundados na razão emancipada. Enquanto uns falam de ricos contra pobres e casagrande  contra senzala, os Felicianos se locupletam.

Ao mesmo tempo, no caso brasileiro, um ideal republicano fundado na inclusão e aceitação – generoso o suficiente para dar conta da república liberal ou da república socialista – se vê eternamente ameaçado pelos grupelhos políticos oligárquicos, a máquina coronelística e corrupta que destrói qualquer ambição republicana. Sim, continuo me alinhando com aqueles que criticam a corrupção, uma vez que promove a falência do ideal republicano. (Por volta das Manifestações de Junho de 2013, certos grupos, estranhamente, afastaram da pauta a questão da corrupção, sob o curioso argumento segundo o qual não se pode manifestar contra a corrupção, uma vez que ninguém é a favor). Seja como for, só poderemos começar a pensar em uma sociedade emancipada no dia em que nos virmos livres dos Sarneys e Calheiros.

Encerro citando Marx, referindo-se a Malthus:

Sua maior esperança (...) é que a classe média aumente em quantidade e o proletariado trabalhador forme uma proporção constantemente diminuída do total da população (mesmo se ela crescer em termos absolutos) Esta é, de fato, a tendência da sociedade burguesa. (Teoria da Mais-valia, XVII, B)


Infelizmente, Marx não desenvolveu esse trecho final, sobre "a tendência da sociedade burguesa”. Mas pouco importa. Cada vez mais a discussão sobre socialismo me entedia. Cada vez que ouço coisas como “Qual o verdadeiro socialismo ?” ou “O modelo soviético foi verdadeiramente socialista” ?, sinto-me como algum membro da família Buendía. Provavelmente como Rebeca, arrastando por aí um saco de ossos.