quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Ainda a educação



Anos atrás, em visita à casa de meus pais – onde morei até o início da juventude – encontrei meu sobrinho, então com uns quatro anos de idade. Descíamos pelo elevador quando encontramos uma velha senhora, antiga moradora do prédio, que logo me saudou, “Quanto tempo” e “Conheci você pequenino e agora já está um homem feito” e, após uma olhada ao meu sobrinho, “Esse aqui é seu filho ?”. Querendo fazer graça com meu sobrinho e, ao mesmo tempo, tentando colocar o moleque diante de uma situação nova, menti, sorrindo: “É, esse aqui é meu filhinho”. Em seguida a senhora olhou para o moleque e perguntou: “Como é seu nome ?”. E ele, cujo nome é Lucas, respondeu na hora: “Mateus”.
Esse é o ponto. Não importa o quanto tentemos ensinar o que é certo o que é errado, as pessoas aprendem pelo exemplo. Após ser ensinado mil vezes que não se deve mentir, o moleque se viu diante de uma situação na qual a mentira estava autorizada, e participar da mentira inofensiva significaria construir um elo, uma cumplicidade com o tio. Intuitivamente, o moleque concluiu que estreitar laços afetivos era mais importante que seguir algum princípio. Ou ainda: a ordem ("não minta!") pode ser desobedecida em certas circunstâncias. Sem querer, o garoto estava aprendendo a ter discernimento.
A história acima serve para ilustrar uma grande preocupação: queremos ensinar uma coisa e acabamos transmitindo outra. O tom singelo, emancipador e quase libertário do relato  contrasta com os riscos, por exemplo, do que se ensina na escola, e de como isso pode ser entendido por alunos. Cito três exemplos:
1) Testes de múltipla escolha. Independente do conteúdo correto da resposta, longos anos resolvendo testes de múltipla escolha ensinam basicamente o maniqueísmo: diante dos problemas do mundo existe o que é certo e o que é errado e ponto final. Desaparecem as nuances e eu me pergunto se o maniqueísmo enlouquecido em que vivemos hoje em dia não tem a ver com duas gerações sucessivas de pessoas cuja experiência escolar nos decisivos anos da adolescência enfatizou os testes de múltipla escolha, bem  como a preparação para tais testes como fim último da atividade escolar.
2) Sistema de notas. Não aufere conhecimento, mas ensina que o desempenho humano pode ser expresso em valores numéricos, e esse é a finalidade da atividade, qualquer atividade. Basta uma intervenção racional (por exemplo, mais ou melhor estudo) para melhorar o desempenho, aumentar o índice numérico. A partir daí, abre-se caminho para o discurso da eficiência em detrimento da reflexão, dos meios em detrimento dos fins.
3) Apresentação dos conteúdos como uma série de objetos. Ensina que o mundo que nos cerca é formado por uma sucessão de objetos, à respeito das quais tomamos conhecimento: somos o sujeito que conhece, e acabamos perdendo a capacidade de considerar que, dentre os muitos objetos que nos cercam, também possam existir outros sujeitos. A possibilidade de identificação com esses objetos é escassa, pois nos foram ensinados de forma distante. Exemplo prático foi citado no post abaixo, sobre o ensino de ética em aulas de Filosofia: “ética” é mais um objeto distante, e a maior expressão desse distanciamento ocorre quando o aluno cola na prova de Ética.
4) Justificativa do conhecimento através do seu emprego prático. Trata-se do utilitarismo que esvazia o puro âmbito do saber. Aqui, o ensinamento principal é desinibir a ação, uma vez que esta deve ter como única reflexão prévia uma rápida consideração sobre os efeitos práticos de seus resultados.


No fundo criamos monstros.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Da Razão Prática à Razão Eficiente



Ponto 1

A rede ferroviária alemã sempre foi uma maravilha. Modelo de eficiência, sempre teve como  característica fundamental o cumprimento dos horários e o bom funcionamento geral, e é assim desde sua integração, em 1866, quando foi essencial para o sucesso alemão na Guerra das 7 Semanas. Falando em conflitos, durante a Segunda Guerra Mundial, a rede foi posta à prova de forma absolutamente radical: em meio a ataques aéreos cada vez mais devastadores – que incluíam como alvo entroncamentos ferroviários e pontes – foi  mantido um alto padrão de eficiência. Engenheiros ferroviários estabeleciam previamente soluções de tráfego, os funcionários redobravam sua dedicação e faziam horas extras, os passageiros participavam dos esforços repensando suas rotas, os mecânicos adaptavam composições e os operários reconstruíam linhas danificadas em tempo recorde.

O resultado dessa mobilização foi um triunfo da eficiência: em 1943, mesmo em meio a condições altamente adversas, a média semanal de atrasos era semelhante à da época anterior a guerra. Claro, em meio ao tráfego, incluíam-se os trens de deportados, que levavam sua carga humana para os campos de extermínio, mas pouco importa, pois no que se refere ao funcionamento da máquina, tudo correu sem nenhum transtorno. E, convenhamos: aquele engenheiro ferroviário que puxou a alavanca, desviando a composição para a direção certa, nunca sequer viu um judeu deportado, e considerá-lo como cúmplice do extermínio parece ser um exagero. Ele apenas fez o que devia: foi e-fi-ci-en-te.

O ponto todo é esse. A eficiência só têm sentido se subordinada à reflexão, fundada em um pensamento ético que questiona seus fins. Sem a reflexão, a eficiência – tornada um fim em si mesmo – se presta aos maiores desvios e nos cega diante das piores atrocidades.

Ponto 2

O que se ensina na escola ? Qualquer pessoa com experiência escolar ou que simplesmente acompanhou o crescimento de uma criança, sabe que o conteúdo do que é ensinado vale bem menos do que os exemplos dados, ou a sociabilidade vivida na escola. Os conteúdos escolares aparecem diante de alunos como uma série de objetos, que vão sendo trocados na exata medida em que os professores se sucedem, um após o outro. Aprender esses conteúdos (para ir bem na prova etc.) é uma habilidade que os alunos desenvolvem rapidamente, mas poucos se identificam com o que é ensinado. Em outras palavras, ocorre uma cisão entre o objeto estudado e o sujeito estudante. Suspeito que a própria forma da escola estimula esse distanciamento que, seja qual for sua origem, é evidente. Os conteúdos ensinados não tocam os alunos e dificilmente promovem alguma identificação, e as tentativas de aproximar os conteúdos com o cotidiano dos alunos muitas vezes soam patéticas (por exemplo, o professor de Química que, ao final da aula, anuncia triunfalmente: “E é assim que funciona o detergente !, em meio a bocejos generalizados).

Um caso clássico é o da Filosofia, onde se estuda ética. Assunto tão vital abordado na sala de aula pode ser muito interessante, e não tenho dúvidas que muitos professores enriquecem as aulas e tentam tocar os sujeitos que formam sua “plateia” citando exemplos e propondo impasses éticos para discussão (“Se um médico sabe que matar uma pessoa salva a vida de duas outras, o que ele deve fazer?” etc.). Todavia, dificilmente se “ensina” ética a partir daí. No fundo, a única escolha ética real com a qual o aluno se depara em toda sua vida escolar é “Devo ou não colar na prova ?”, e aqui a ética formal não vai fazer nenhuma diferença.

O ponto todo é que o conteúdo dessa ou daquela proposição que é ensinada (“devemos ser sujeitos éticos” ou “devemos refletir antes de agir”) não vale nada em função da forma como se organiza a escola e de como se justifica o conhecimento.

Ponto 3

Nietzsche, em Aurora (§550):

Conhecimento e beleza. – Se as pessoas, como sempre fizeram, guardam sua reverência e seu sentimento de felicidade para obras de imaginação e dissimulação, não devem surpreender que se achem frias e desanimadas ante o oposto da imaginação e dissimulação. O deleite já vem com o mínimo passo ou progresso seguro e definitivo na compreensão, que da ciência atual já emana abundantemente e para tantos – nesse deleite não acreditam, no momento, todos aqueles que se acostumaram a deleitar-se apenas abandonando a realidade, saltando nas profundezas da aparência.  Eles pensam que a realidade é feia: mas não acham que o conhecimento até da realidade mais feia seja belo, nem que quem sabe muito esteja bem longe, enfim, de achar feio o imenso conjunto da realidade, cuja descoberta sempre lhe deu felicidade. Existe, então, algo belo “em si” ? A felicidade do homem que conhece aumenta a beleza do mundo e torna mais ensolarado tudo o que há; o conhecimento põe sua beleza não só em torno das coisas, mas, com o tempo, nas coisas; - que a humanidade vindoura dê testemunho dessa afirmação ! Enquanto isso, lembremos de um antigo saber: dois homens bastante diferentes, Platão e Aristóteles, concordaram que a felicidade suprema, não só para eles ou para outros homens em geral, mas em si mesma, até para deuses de altas venturas, consiste no conhecer, na atividade de um bem treinado entendimento que procura e inventa (não na intuição, como os teólogos e semiteólogos alemães; não na visão, como os místicos e tampouco no fazer, como todos os práticos). De modo semelhante julgaram Descartes e Espinosa: como devem ter fruído o conhecimento todos eles ! E que perigo para sua honestidade, o de assim tornarem-se panegiristas das coisas !