A foto é constrangedora sob
todos os aspectos. Um automóvel. A compra de um automóvel. Balões coloridos
celebrando o ato da compra do automóvel. Um comprador distraído surpreendido
diante de uma câmera e sem tempo de pensar em uma rota de fuga.
Não gosto de automóveis. Imagino
que as gerações futuras irão rir de nós: inventamos uma civilização tecnológica
na qual um indivíduo, para se deslocar, leva consigo 700 quilos de ferro, aço,
plástico e vidro, e ainda por cima emite poluentes no processo. A
irracionalidade da coisa toda é escandalosa. Automóveis são, ao mesmo tempo, desastres
ambientais e urbanísticos. Necessitam de largas vias asfaltadas (isto é, de
solo impermeabilizado) para circular. Estimulam a agressividade e o
individualismo, no âmbito do trânsito. Se levar em conta as condições de produção
de automóveis na indústria, seja fordista ou toyotista, imagino que o desastre
seja também social.
Choro lágrimas de sangue
sempre que constato que, na cidade onde vivo, sou obrigado a possuir um
automóvel, devido à absoluta precariedade do transporte público (entenda-se: insuficiência
dramática de linhas de metrô). Por pior que seja, sem automóvel meu deslocamento pela cidade se tornaria ao mesmo
tempo mais restrito, arriscado e dispendioso
em tempo. Sendo assim, tenho que suportar a vergonha de possuir um automóvel.
O surgimento de uma nova geração
de automóveis, compactos, me dá um pingo de otimismo para enfrentar o
apocalipse motorizado. Gosto de pensar que a posse de um mini carro possa ser
considerada como um humilde manifesto
contra a cultura dos carros e carrões, das cilindradas e potências, dos
SUVs e da lei do mais forte. Sendo assim, eventualmente compro carros, compactos.
É quando percebo um dos aspectos
mais constrangedores do complexo automobilístico: a venda para o consumidor
final. Trata-se do mundo pervertido e sorridente das concessionárias e seus vendedores
entusiásticos. Vendem carros, contribuem para a destruição, mas sempre sorrindo
e oferecendo um cafezinho a cada etapa. Aqui, não existem relações verdadeiras, mas
apenas um mundo falso de sorriso, abraços e felicitações feitas sob balões coloridos.
No mundo nebuloso das concessionárias,
apesar dos sorrisos eternos (e congelados) não existe nenhuma alegria verdadeira.
O humor não é possível. Na concessionária, ao constatar que meu veículo novo, Fiat Cinquecento, é “cinza”,
procuro na tabela de cores seu nome oficial. Os técnicos de marketing da Fiat
são ótimos em nomear as cores, e batizaram meu cinza de “grigio sfrenato”.
Sorrio e pergunto ironicamente para o vendedor, “Mas o freio desse carro é bom
mesmo ?”. Não sou compreendido, porém ele continua sorrindo.
Depois das infinitas e kafkianas
formalidades de praxe – que incluem assinar um documento, devidamente reconhecido em cartório, afirmando
que não troquei o motor do carro usado que dei como parte do pagamento por
outro – chega finalmente a hora de pegar o carro novo. O menino que me
apresenta o painel de instrumentos e suas infinitas funções (das quais usarei
uns 10%, se tanto), é entusiástico como todas as pessoas na concessionária. Lá
pelas tantas ele me apresenta o botão “ESC Sport”, que devo acionar quando quiser
diminuir o risco de capotagem. Perguntei o que aconteceria se eu o deixasse
desligado, e o rapaz, sorridente e incapaz a de prestar a mínima atenção no que
eu dizia, continuou concentrado, recitando seu mantra agora sobre as múltiplas
funções do computador de bordo. Seguiu-se a foto constrangedora que adorna o
post.
Finalmente, já ia saindo
quando o vendedor me alcançou e disse, inclinando-se sobre a janela: “Parabéns
pelo carro. Você merece !”. Aquilo foi demais para mim. Disse: “Não, eu não mereço
! Talvez eu seja uma pessoa má ! Talvez eu tenha cometido crimes, o que você
sabe de mim ?”.
Sem saber responder, ele
continuou sorrindo.