domingo, 28 de maio de 2017

Cool memories



Há uma cena no filme “O que mais desejo” (Kiseki, 2011) em que o personagem principal, um menino de 12 anos, entra no ônibus e pensa. Dizem lá os especialistas que por volta dessa idade nos tornamos capazes do pensamento abstrato e, no filme, o jovem Koichi, em meio a uma sucessão de acontecimentos que afetam a sua vida, simplesmente parou para pensar. A câmera do diretor Kore Eda registrou esse momento em uma cena simples, porém densa.

Chama atenção que nesse momento o menino está voltando da escola, e eu me pergunto se esse não é um dos momentos mais importantes na vida de alguém: ir e voltar da escola, principalmente nos seus primeiros anos. Ir de casa para a escola significa passar da esfera dos afetos domésticos para a da sociabilidade pública, e nunca é demais lembrar que a escola é o primeiro momento em que nos encontramos por conta própria, quando nem pai nem mãe podem nos resgatar de alguma situação. É o momento em que se começa a avaliar as coisas, a pensar nas consequências.

Me agrada pensar que o caminho da escola é longo, que deve ser feito e pé ou em transporte público, portanto que demandam um tempo que só pode ser preenchido pelo pensamento. Nesse sentido, ir de carro para a escola me parece um crime: significa ser despejado de uma esfera em outra subitamente, significa sentar em um banco de trás e fazer qualquer coisa para “passar o tempo”, significa suspender o pensamento e tornar indiferente a passagem do privado para o público. Me pergunto se ir a pé ou em transporte público para a para a escola não é a parte mais importante do dia escolar, seja sozinho, imerso em seus pensamentos, seja com alguém, com os pais, conversando, trocando ideias.

Com 12 anos de idade meus pais me informaram que eu já era grande suficiente para ir e voltar para a escola por conta própria, um percurso de pouco mais de um quilômetro a ser feito a pé em um bairro residencial e que eu faria nos próximos sete anos. Além de estar a sós com meus pensamentos, passei a conhecer detalhadamente o caminho e comecei a ter com a cidade e seus habitantes uma outra relação. Foi quando comecei a enfrentar o frio da manhã e o calor do meio dia, a densa cerração do inverno e as chuvas frias do outono. Foi quando vi a geada de 1979, que cobriu a cidade de branco, um fenômeno que jamais se repetiu. Foi quando a cidade passou por uma daquelas épocas de seca e, bem cedo pela manhã, cruzei na rua vazia com um senhor de idade indefinida, pele curtida de sol e com uma perna de pau, que muito me impressionou. Com forte sotaque nordestino ele cantava bem alto uma canção cheia de nostalgia, cujo refrão dizia “Tomara que chovaaaa.../ Dez dias sem paraaaaar..”.

Foi em uma dessas primeiras caminhadas, voltando para casa, que lembrei da aula de Biologia recém encerrada, quando o professor falou que as plantas são seres vivos. Isso me fez pensar , talvez pela primeira vez na vida, em que é a vida. Sabendo ser, sem dúvida, diferente de uma planta, realizei o momento cartesiano de perceber em mim uma consciência pensante, capaz de tomar conhecimento de si própria. O que me fez pensar nas possíveis ilusões a que essa percepção estaria sujeita. Na época, é claro, eu não tinha ferramenta conceitual alguma: pude pensar livremente, explorar as ideias sem amarra conceitual alguma, despreocupado de qualquer lógica que não fosse a do bom senso, e com a liberdade compensando (em muito) uma eventual falta de rigor. Aos doze anos, caminhando de volta para casa, fui filósofo pela primeira e única vez na vida.


domingo, 5 de fevereiro de 2017

Sotto la pioggia


Enuncio três equações para ajudar o pensamento:

+ 1 + 1 = 0

Trata-se de um procedimento bastante comum na forma como se pratica o debate hoje em dia, e que resulta em nada, absolutamente nada. É também expressão de um certo bom-mocismo bastante evidente nesses tempos de redes sociais e forte demanda por “curtidas” como forma de autoafirmação. Refiro-me ao veredito definitivo sobre um determinado assunto que, uma vez elaborado e ungido ao estatuto de consenso, passa a ser afirmado, reafirmado e reafirmado novamente. Inclui necessariamente juízos morais, e tem como efeito uma certa satisfação pessoal. “Sou uma pessoa bacana, comporto-me como a maioria civilizada em oposição aos outros”. Por um lado, está garantida a satisfação individual, por outro, o entendimento não avança sequer um milímetro – além de alimentar o maniqueísmo. Tudo é bacana, todos somos legais, todos estamos juntos... e formamos uma grande nulidade.

+ 1 – 1 = + 1

Trata-se aqui do primeiro passo na direção do entendimento, que me parece intimamente ligado à força da negação: diante do óbvio, a subversão; diante do pensamento de manada, sua negação. Reconhecendo-se o potencial imensamente criativo da negação, surgem alguns riscos: só existirá negação criadora de sentido se for elaborada contra uma unidade precisa. Ou seja, a negação sem objeto é nada:  – 1 = 0. Se no primeiro caso, mais acima, tínhamos a nulidade produzida pelo entusiasmo positivo, aqui se encontra a nulidade que resulta no silêncio, no fim da possibilidade de pensamento.

– 1 – 1 =  + n

Trata-se da negação da negação como forma de criação do entendimento. A Dialética Negativa. Muitas vezes penso que é a única forma de entendimento que nos foi dada como possível diante das nulidades que têm sido produzidas de diversas formas ultimamente. Reforço minha crença no seu potencial quando me deparo com a crise da verdade no novo século: se antes no debate havia a oposição teórica entre verdade x opinião, hoje em dia chegamos ao ponto de ver o embate descer no nível factual do confronto entre acontecimento x opinião. Cabe ao pensamento retomar sua forma negativa radical justamente como tentativa desesperada de se opor à política radical de hoje em dia que se alimenta da falsificação do acontecimento e da formação de consensos vazios.