segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Futebóis

 
Prólogo
 
 Admito: falar mal de futebol é uma delícia, falar mal de torcida é melhor ainda – e fácil, ainda por cima. Intolerância, violência, comportamento de horda, além da certeza de que o torcedor “normal” (aquele que não espanca pessoas de outras torcidas) é de alguma forma cúmplice da barbárie geral. Futebol profissional, ainda por cima, é nada mais que uma bobagem, e a administração do futebol beira a criminalidade - isso pra não falar do aspecto “Pão e Circo” da coisa toda. Futebol profissional, no fundo é apenas ódio, estupidez e emoções baratas.
 
Resta o problema de como conciliar essa visão pessimista com o fato incontestável de que o jogo em si é legal, e ir ao estádio é a quintessência do prazer futebolístico, mais até do que a própria prática do jogo, com suas botinadas e “vitórias a qualquer custo”. Fora das quatro linhas, podemos assistir, com a possibilidade de transformar o jogo em narrativa, dar-lhe nova dimensão através da narrativa. Cena primordial: Nelson Rodrigues, míope feito uma toupeira, acompanhando sabe-se lá o que das arquibancadas do Maracanã, para escrever seu comentário sobre o jogo no jornal do dia seguinte.
 
Enfim, periodicamente – e em segredo – dirijo-me a estádios, para acompanhar os jogos mais diversos. Sem preferências clubísticas (nos últimos meses vi jogos de Santos, Portuguesa, São Paulo, Corínthians, para citar só os da cidade) e aproveitando para conhecer lugares por aí (do Municipal de Sorocaba ao Parc des Princes, passando pelas mil vezes que fui ao meu preferido, o Pacaembu).
  
Cena 1 – entrada do estádio
 
Dia desses, alegre e fagueiro, sigo para o Morumbi, depois de anos sem sequer chegar perto do bairro. Compro caros ingressos nas cadeiras cobertas, chego cedo para evitar trânsito e levo um exemplar da revista Cult (“dossiê Adorno”) para ficar lendo antes do jogo.
 
Os torcedores são revistados, como de hábito e, para minha surpresa, o tradicional guarda troglodita que me apalpa proíbe que eu entre com a revista. Pergunto por que, e ele me diz que alguns torcedores põem fogo em jornais, criando pequenos incêndios. Digo que minha revista não é um jornal e que havia acabado de comprá-la.
 
 Ele sequer respondeu. Com um sorriso assustadoramente inexpressivo, o guarda olhou nos meus olhos e arremessou a revista para o lixo, enquanto esperava – ainda sem dizer nada e ainda sorrindo – que eu desse lugar ao próximo torcedor a ser revistado. Foi um dos olhares mais assustadores que recebi na vida. Imaginei que, nos porões, torturadores davam esses sorrisos, enquanto prosseguiam impassivelmente no exercício de suas atividades. Senti um calafrio na espinha.
 
Claro, sobrevivi ao episódio e logo estava fazendo piadas sobre o fato de que a minha revista pelo policial tinha sido logicamente exemplar: ele tomou nada menos que a minha revista.
 
Cena 2 – já dentro do estádio
 
 
E vamos lá, após a revista e sem a revista, assistir a um jogo do São Paulo. Atrás de mim, um moleque, nos seus 7 ou 8 anos, berrando feito um louco. Desde o anúncio dos jogadores pelo alto-falante, e durante toda a partida, mesmo nos momentos menos emocionantes, o petiz se esganava. Tinha uma preferência especial por Luís Fabiano, a quem ele encorajava, aconselhava, xingava, ou simplesmente gritava o nome,  prolongando e modulando o último "O"  até atingir níveis insuportáveis.
 
 
As pessoas nas cadeiras olhavam para trás espantadas, ele incomodava a todos em um raio de uns vinte metros e, caramba, estava exatamente atrás de mim. Depois de um dos gritos, particularmente ardido, olhei para trás e o pai, desolado, como que se desculpou com o olhar. Me perguntei porque diabos esse pai banana não conseguia controlar o filho. Pois ele não chamou atenção do fedelho nem uma vez sequer.
 
 
Lá pelas tantas, o bacuri virou para o pai e desabafou, baixinho, só quem estava muito perto (=eu) ouviu: “Puxa , pai estou tão feliz de estar aqui com você hoje ! Sabe, eu nem dormi direito essa noite de tão feliz que estava em vir no jogo...”.
 
 
Puxa vida. Vai se foder. Me derreti todo. Como é que uma coisa que gera tanto ódio e tanta estupidez como o futebol é capaz de mexer com emoções e aproximar pai e filho desse jeito ? Fiquei imaginando não só a ansiedade do pequenino, mas a memória que ele construiu desse dia que será, certamente, inesquecível em sua vida. Mas será que essa emoção autêntica vai sobreviver à lavagem cerebral futebolística ? Será que o garoto irá necessariamente se transformar em um torcedor fanático com tendências homicidas e, convenhamos, fascistas ? Haverá um meio termo possível ?
 
 
O comentário do menino deixou um raio de esperança. E depois de ouvi-lo, não tive mais coragem de olhar para trás com cara de bravo sequer uma vez.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Dois heróis da década de 1950


 
Oscar Niemeyer
 
Viver 104 anos já é uma forma de heroísmo. O repertório de lembranças acumuladas e o simples fato de sobreviver com lucidez diante dessa massa avassaladora já convertem o centenário em alguém que ultrapassa os feitos humanos, que se projeta para além do homem. Há porém alguma coisa triste no artista longevo: o tempo pode condená-lo à eterna repetição de si mesmo, e sua obra, a uma caricatura do que passou.

A arquitetura de Niemeyer é inseparável de seu tempo. Nas décadas de 1940 e 1950, ninguém dava muita bola ao ambientalismo, ou muito menos à – odeio essa palavra – sustentabilidade. Para os arquitetos dessa geração, amplas superfícies impermeabilizadas eram perfeitamente aceitáveis, assim como grandes edifícios envidraçados nos trópicos, consumindo energia elétrica violentamente em suas máquinas de ar enlatado.

Tampouco preocupava-se com a ligação do edifício com o entorno. Alguns pensavam o edifício como um monumento, uma marca a ser deixada na paisagem, e pobre da cidade que tivesse que conviver com uma multidão de monumentos empilhados, com a marca pessoal de cada arquiteto se perdendo no meio de um conjunto amorfo. Para essa geração, a saída era construir cidades inteiras, e Niemeyer foi um dos poucos que teve essa possibilidade.

No plano puramente estético, Niemeyer conviveu com o modernismo e a possibilidade da construção de edifícios brincando com formas geométricas. É um dos pais daquilo que eu chamo de “arquitetura de maquete” (aquilo que se ensina nas escolas de arquitetura hoje em dia): edifícios com formas geométricas básicas, que até ficam bonitinhos na maquete, mas que, uma vez construídos, parecem fora de qualquer dimensão humana.

A própria revolução das formas curvas, com as quais Niemeyer supostamente rompeu a rigidez da geometria modernista, pode ter tido o seu momento nos anos 1950. Todavia, uma vez repetida ad nauseam nos próximos 60 anos, acabou desvendando aquilo que ela efetivamente é: um uso exagerado do concreto, com tudo que ele tem de sujeira e rápida obsolescência. (No mundo de Niemeyer, provavelmente o Estado seria responsável pela manutenção impossível das superfícies curvas de concreto, não importando o custo. Sua arquitetura sempre foi tão utópica e falida quanto o estado socialista em que acreditou).

David Brubeck

Enquanto músicos negros faziam jazz em Nova York, um branquelo judeu da Costa Oeste tentava fazer o mesmo. E não é que conseguiu ? Acabou criando sua própria linguagem, e deixou para a Humanidade Take Five, em que eu sempre penso quando imagino uma Música Perfeita.

Depois do sucesso estrondoso na década de 1950, saiu em busca da renovação, não encontrando, infelizmente, nada que se comparasse ao disco Time out, de 1959. Ao contrário do outro herói, seu contemporâneo, David Brubeck não se contentou com a eterna repetição de si mesmo, e muito menos foi canonizado em vida.

Ainda assim, a música de David Brubeck, por mais imaterial que seja, preenche mais espaços no espírito do que todos os prédios de Niemeyer e suas toneladas de concreto.

 

 

sábado, 17 de novembro de 2012

El bullying

 
Sempre me causou perplexidade o bullying, não pelo ato em si e muito menos pelo uso do termo em inglês (a essa altura já estamos todos used to), mas sim pela sua quase criminalização e pelo fato de existir um termo específico para esse conjunto de maldades e maus tratos que sempre fizeram parte do convívio social. Sobretudo entre jovens e adolescentes, que são cruéis, tremendamente cruéis, entre si, sempre foram, sem que em outras épocas tantas pessoas julgassem estar “sofrendo” bullying. Pode-se imaginar época mais cruel que o período, digamos, dos onze aos quinze anos de idade ? Penso em todas as ignomínias que presenciei e alegremente pratiquei nessa época da vida, e todos faziam isso e todos “sofriam” igualmente com isso.

 E, no entanto, fazia-se muito menos terapia.

Os apelidos eram cruéis. Lá pela 6ª série, havia um menino obeso, excepcionalmente obeso e que ainda por cima tinha o arcaico nome de Orlando. Claro, todos os chamávamos de Gorlando ou Gordolando, para sua fúria (e nossa diversão). Havia também o menino negro (o único que frequentava a escola privada de classe média, cheia de alunos branquelos). Era alegremente chamado de Berinjela, sem que ninguém se importasse muito seriamente com isso. O ponto culminante da prática de apelidos sórdidos veio com o Manuel, menino que entrou na 8ª série no meio do ano, além de tudo morador de uma cidade do ABC, e tudo isso já seria motivo suficiente para torná-lo Cristo honorário da turma. Pois este menino era alto, muito magro, com o rosto cavado e fundos olhos azuis, o que lhe valeu o singelo apelido de Holocausto.

E, no entanto, tomava-se muito menos antidepressivos.

Os xingamentos eram cruéis. Qualquer erro ou engano cometido era saudado com gritos de “retardado” ou “mongolóide”. O cuidado ao vestir era importante, não no sentido de exibir alguma riqueza, mas de evitar combinações que trouxessem o – ok, odioso  – epíteto de “baiano”. Ao mesmo tempo, comportamentos que indicassem a não compreensão da psotura adequada para esta ou aquela situação, na hora denunciavam o “maloqueiro”. Assim como os apelidos, os xingamentos eram discriminatórios, sublinhavam as diferenças, e mostravam como o todo buscava ser homogêneo. Éramos pequenos fascistas, todos nós.

E, no entanto, as pessoas não saíam por aí invadindo escolas e baleando os colegas.

No meio do circo dos horrores, aprendíamos a nos defender e, com o tempo, abandonávamos as práticas mais sórdidas, introjetando normas morais e aprendendo à força princípios de sociabilidade. Hoje, com a obrigação de combatermos o bullying, devemos proteger crianças frágeis e sensíveis que, provavelmente, jamais aprenderão a caminhar por conta própria, permanecendo crianças para sempre. Retardados para sempre.
 

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Mostra & Metas

 


Entrei com tudo na programação da Mostra Internacional de Cinema deste ano, depois de longo afastamento. O fato de logo o primeiro filme que assisti ter sido muito bom me animou a estabelecer uma meta ambiciosa: assistir 14 filmes em 14 dias de Mostra. Jamais cheguei nem perto dessa marca em outras edições.

 O tal filme que me seduziu foi Cinejornal, um documentário russo, mais precisamente, um recorte de trechos de cinejornais soviéticos da década de 1950, com direito a discursos de Khruschev e tudo mais. As imagens, em preto e branco, são belas e o texto original dos cinejornais foi suprimido, restando apenas a fala das pessoas em entrevistas, depoimentos, peças teatrais e por aí vai. A legenda, em inglês, estava incompleta, e alguns trechos de até quatro minutos foram exibidos sem nenhuma legenda, apenas com o som original em russo. Mas pouco importa, isso faz parte do charme da Mostra.

 Além da pura beleza plástica das imagens, o filme mostra aspectos do cotidiano da União Soviética da época, quando ainda havia um espantoso crescimento econômico, pouco antes do início da longa estagnação que se iniciaria com Brezhnev a partir do final dos anos 1960. Além disso, a reconstrução do pós-guerra e a ênfase de Kruschev na melhoria das condições de vida da população ajudam a alimentar um clima de autêntico otimismo, amplificado pela propaganda oficial.
 
Os Planos Quinquenais ainda eram vistos como uma ferramenta adequada para “atingir e ultrapassar” os Estados Unidos, na famosa frase de Khruschev, infelizmente não mostrada no filme. O Comunismo ainda estava no horizonte e, lá pelas tantas, um analista afirma que em mais uns 20 anos, a transição estará completa e o sistema implantado.

Nesse contexto, chama atenção a verdadeira obsessão  das imagens produzidas pelo jornalismo soviético em mostrar como os Planos estão sendo cumpridos com folga. Assim, vemos um operário recebendo um prêmio, pois graças a uma ideia sua a produção da usina siderúrgica ultrapassou as metas estabelecidas pelo Plano. Mais adiante, um repórter de rádio entrevista o maquinista de um grande comboio ferroviário que afirma, orgulhosamente, ter acrescentado dois vagões a mais do que o previsto, uma vez que sua habilidade de condutor  e o conhecimento da linha o permitiam conduzir com segurança um trem deste tamanho. Finalmente, as colheitas de trigo na Fazenda Coletiva número X, da Ucrânia, superaram todas as expectativas, graças ao empenho dos cientistas soviéticos e dos camponeses em seu trabalho conjunto na melhoria da semeadura. Em outras palavras: as metas são sempre atingidas e ultrapassadas.

Impossível não pensar no mundo corporativo e na forma como o discurso e a prática das metas generalizou-se no capitalismo triunfante. Venda de unidades, satisfação dos clientes, captação de matrículas, há sempre uma meta numérica a ser atingida, e, num dado intervalo de tempo, um gráfico deve ser produzido, com suas curvas ideais se projetando rumo ao infinito. É como se o fervor revolucionário dos Comissários do Povo agora se transferisse para uma moderna casta de engravatados, que lidam com multidões de números, estabelecendo metas, definindo estratégias e apresentando orgulhosamente a superação dessas metas nas reuniões de acionistas, que é como o Politburo todo poderoso agora é chamado.

Tanto nos Comissários do Povo quanto na casta dos engravatados, o triunfalismo entusiástico é o mesmo, bem como a alegre empolgação com a superação das metas. Também se assemelham os volteios dialéticos e a lógica tortuosa que justificam as curvas que surpreendentemente não seguem as previsões ambiciosas pré-estabelecidas. Finalmente, o furor com que as cabeças são cortadas e os bode-expiatórios são apontados: alguém falhou, mas nunca o sistema. E se na União Soviética tudo era feito em nome do Comunismo, hoje o entusiasmo todo se esgota no presente e na possibilidade imediata de realização de lucros  no sistema financeiro.

    *   *   *

Volto à Mostra. Meu objetivo pessoal neste ano é assistir 14 filmes em 14 dias. Prometo que me esforçarei ao máximo para não atingir a meta.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Guy Debord, ou as virtudes do radicalismo bolha


 
 


Guy Debord é um “pensador radical francês”, e esse rótulo significa muitas coisas, para o bem e para o mal. Lendo seus textos encontra-se, por um lado, um pensamento que busca caminho sem concessões – como é próprio do pensamento radical – e, sendo assim, capaz de desvendar camada após camada de sentido sob a superfície da realidade.  Por outro lado, trata-se de um autor que possui uma vaidade imensa, e acaba criando categorias analíticas que desqualificam não apenas qualquer crítica ao seu pensamento como também solapam o seu próprio raciocínio. Entramos no reino das aporias, como aquela que se encontra no Comentário sobre a sociedade do espetáculo: “Qualquer crítica ao espetáculo converte-se automaticamente em espetáculo”. Exceto, claro, a sua própria crítica. E que atire a primeira pedra quem não lembrou de Foucault e da crítica às práticas discursivas no trecho acima.

Costumo chamar essa modalidade de pensamento de “radicalismo bolha”, e uso a gíria antiga – “bolha” – para tentar deixar bem claro: não dá mais. Nas trincheiras de 1968, essa vaidade toda tinha alguma razão de ser, mas deixou de ter sentido desde a confissão feita pelo próprio Foucault, já doente, em uma de suas últimas entrevistas nos anos 1980. Falando sobre a solidão, deixou escapar: “No fundo escrevemos porque queremos ser amados”.

Todavia, fazendo os devidos descontos, não abro mão da proximidade com o pensamento radical: longe de converter textos em Bíblias e autores em ídolos, tento preservar a lucidez de seus escritos e a força de seus argumentos. Como é o caso de Debord e do Comentário. Caracterizando a sociedade do espetáculo, Debord fala, dentre outros aspectos, da vida vivida em um estado de presente perpétuo. Submetida às normas “espetaculares”, a personalidade é suprimida, e a possibilidade de conhecer experiências autênticas, abortada. Daí a impossibilidade de descobrir preferências autênticas, com a fidelidade tornando-se sempre cambiante, fundada em uma série de adesões temporárias e “constantemente decepcionantes a produtos ilusórios”. No presente eterno, a história é abolida e o acontecimento se subordina a narrativas inverificáveis, estatísticas incontroláveis, explicações inverossímeis e raciocínios insustentáveis.

Penso em Debord em meio às reuniões formais do mundo corporativo. Há uma racionalidade aparente por trás das decisões tomadas em benefício dos “acionistas”, mas a aparência se dissolve em meio a narrativas inverificáveis. Os acontecimentos aparecem como prontos, e as decisões tomadas a partir daí apoiam-se em estatísticas incontroláveis. No mundo do mercado, existe o presente eterno, uma vez que o futuro é reduzido ao momento em que os lucros serão realizados: é essa diretriz vaga que informa os acontecimentos do presente. Ao mesmo tempo, o passado não existe, uma vez que qualquer análise do comportamento dos mercados de ações nos últimos anos só permitiria uma conclusão: vamos cair fora daqui. A bolha vai explodir, o mercado vai quebrar, há pessoas cujos lucros não serão realizados jamais. Mas pouco importa, pois ainda tenho a chance de ganhar o meu antes do sistema explodir, o que fatalmente vai acontecer novamente. E depois de novo. E de novo.

As explicações são inverossímeis (“há unanimidade entre os profissionais de que isso deve ser feito”) e os raciocínios insustentáveis. Recentemente, em reunião corporativa, ouvi a decisão que certo tipo de atividade (profissional específica) deve ser feita através de vídeo, e não mais com textos escritos: “Estamos no século da imagem, portanto, vamos abolir os comentários escritos”. O “portanto” aqui é uma conjunção que une duas proposições dando ideia de causa e efeito. Porém, não há fundamento para unir essas duas proposições, o raciocínio é insustentável. “Estamos no século da imagem” ? Pois então vamos substituir os livros por filmes, os professores por aparelhos de TV. Ou então voltemos atrás cem anos. Estamos entrando no século do rádio, pois então vamos substituir os livros por áudio, os professores por receptores.

Acredito no poder da imagem, e sei até que ela tem a capacidade de criar sentido: muitas vezes a imagem me permite compreender coisas que outros meios não permitem.  Mas sei também que isso não depende das tecnologias vibrantes do século XXI. Nas cavernas, a imagem pintada na parede já criava sentido. Porém, a escrita é um suporte tremendamente vigoroso para o entendimento, e nas atividades em que estou envolvido (aulas, estudo, vestibulares, grupos de discussão) o texto escrito é fundamental. O próprio Platão desde há muito percebeu que os diálogos não bastavam para produzir o conhecimento e, contrariando suas primeiras convicções, passou a redigi-los.
                                                          
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Dentre as frases que se ouve no mundo corporativo está a famosa “Isso não tem fundamento científico”. A próxima etapa é a convocação de um especialista para realizar uma pesquisa ou elaborar um cálculo, enfim, produzir algum dado numérico. No mundo do presente perpétuo, ao qual se esvazia a experiência e, portanto, quando o indivíduo não consegue decidir nada sozinho, precisa-se do especialista. “Quem tem necessidade do especialista” segundo Debord, “por motivos diversos, são o falsificador e o ignorante”.

Respiro e sigo em frente, sabendo que o pensamento radical, por mais bolha que pareça, me ajuda a manter a sanidade.

 
 
PS.: Uma assinatura de TV a cabo de presente para o primeiro que identificar a imagem da foto.


sexta-feira, 27 de julho de 2012

Corvos e gaivotas


11 de julho, hora indeterminada, à bordo do vôo TF0013 para Istambul (sobre o deserto)

Acordo no Boeing 777 da Turkish Airlines rumo a Istambul em meio aos ruídos de um voo lotado. Percebo que o turismo de massas tem algo de destrutivo, e essa percepção é inevitável em um voo lotado rumo à Europa no verão. Percebo também que os próprios viajantes – tratados quase sempre como gado tocado, seja nos aeroportos, aviões ou nas afamadas “excursões” – fazem de tudo para escapar dessa sensação: tornou-se quase um fetiche do viajante que aspira um mínimo de dignidade descobrir “aquele lugarzinho especial”, onde os turistas nunca vão, “aquele restaurantezinho afastado”, frequentado somente pelos habitantes locais. Assim, o viajante pretende se destacar da turba e dizer que sua experiência de viagem foi singular, que vou aquilo que ninguém viu, e que foi tratado melhor que a turba. Lamento dizer, isso é falso. A própria presença do turista no “lugarzinho especial” faz com que aquele deixe de ser um lugar autêntico. Ao contrário do que sua mamãe dizia, você não é uma pessoinha especial, mas apenas mais um turista como os outros.

11 de julho, 18h04, Aeroporto Internacional Atatürk (Istambul)

A fila dos passaportes é imensa, e as cercas de vidro que delimitam o caminho da longa fila apresentam várias brechas. Algumas mulheres de véu aproveitam as brechas e furam a fila descaradamente. Como assim ? Sua religiosidade as faz usar véus, mas respeitar os semelhantes em uma situação banal do cotidiano não faz parte do universo de valores ? Lembro de Dostoievsky, de Ivan Karamazov: “Se deus não existe, então tudo é permitido”. Pois bem, para aquelas pessoas da fila nem a crença em deus traz algum compromisso ético.

12 de julho, 10h58, Museu da Inocência, nas proximidades da avenida Çukurcuma (Istambul)

 Em 2008, o escritor turco Orhan Pamuk publicou o livro O Museu da Inocência, que li avidamente no início do ano passado. Trata-se basicamente de uma história de amor, com um jeitão proustiano e tendo a cidade de Istambul como protagonista, como é comum nos livros do autor. Após a publicação do livro, Pamuk dedicou-se à organização de um Museu relacionado ao livro, em que estão expostos – de forma encantadoramente esquizofrênica – os objetos e até cenários do livro. O Museu (foto acima) acaba funcionando como um museu da cidade, e o ingresso se faz mediante a apresentação do livro e do bilhete impresso na página 550 (no caso da edição brasileira), que é devidamente carimbado.
Me pergunto que outro autor chegaria ao requinte de erguer um Museu em homenagem à própria obra, com a humildade de Pamuk e sem parecer megalômano. Penso em quais autores tem uma obra rica suficiente para erguer um Museu. (Penso em Gabriel Chalita, cuja copiosa obra caberia em um gaveta).

13 de julho, 17h06, dentro de Aya Sofia (Istambul)

O turista pergunta, “Pode fotografar ?”. Penso em tudo por que a igreja de Santa Sofia já passou, desde que foi construída em 537: seis terremotos, um incêndio, três saques, dois desabamentos de cúpula, um desabamento de parede, três reconstruções, duas reconversões e um Cisma. Ok, filho, pode fotografar.

 14 de julho, praça Mehmet Akif Ersoy (Istambul)

Nada como uma educação turca. O menino, nos seus oito ou nove anos – caminha com dificuldades em uma arquibancada temporária construída no meio da praça, tentando seguir seu pai e irmãos. Com dificuldades, ele tropeça e vai ao chão, evidentemente se machucando e soltando um pequeno grito. O pai, ao ver o que aconteceu, retorna ao menino e dá-lhe um sonoro safanão na orelha, punindo-o por ter caído.

15 de julho, 9h46, bairro de Süleymanie, próximo à Universidade (Istambul)

Assisti o golpe inúmeras vezes: um engraxate em andrajos, meio velho, porém corpulento, caminha cabisbaixo pela rua, carregando sua caixa de engraxar, Ao cruzar com o turista em uma rua pouco movimentada, ele faz um discreto movimento com a mão que segura a caixa de engraxate e faz cair uma escova. O turista, desavisado e apiedado do pobre engraxate, prontamente recolhe a escova e a devolve. Em seguida, o engraxate agradece copiosamente, com todas as manifestações de humildade e submissão otomanas, inclusive beijar as mãos e se ajoelhar diante do benfeitor. Em seguida, o humilde engraxate se oferece para limpar os sapatos do pobre turista que, constrangido, acaba permitindo. Ao término do serviço, o engraxate se levante e diz: “Twenty lira”. O tom de voz humilde do engraxate se torna ameaçador, o gesto de bondade se transforma em assalto. E assim a Quarta Cruzada é vingada.

16 de julho, 13h15, Piazza Annunziatta (Genova)

Chego em Genova como Peter Sellers chegando em Nova York no filme O Rato que ruge. A cidade está vazia, não se percebe uma alma nas ruas. Saio a caminhar apreensivo e, por volta das 15h, a cidade volta a vida: como em todas as cidades do Mediterrâneo no verão, a vida é suspensa no horário de maior calor do dia.

17 de julho, um café em Lungarno (Firenze)

Duas partes de Aperol + duas partes de prosecco + uma parte de água tônica = SPRITZ !


19 de julho, 17h35, caminhando pelo Centro Storico (Firenze)
 
 
 Genova é feminina. Talvez por ficar no fundo de um golfo, e por acolher com segurança os navios que vêm para seu porto. Nas águas do mar da Liguria, em Genova, brota a vida, sob a forma dos frutos do mar servidos nos restaurantes de Lungomare. As curvas sinuosas da cidade e de suas ruas, descendo e subindo morros, formando túneis sob os morros. Mesmo o inevitável monumento aos mortos da Grande Guerra, que toda cidade europeia possui: em Genova assume a forma de um arco, por dentro do qual ocorrem a cerimônia e passam os desfiles.

Florença é masculina, com sua impressionante profusão de órgãos genitais masculinos espalhados pelas infinitas estátuas renascentistas da cidade. O “maior” deles pertence ao Davi de Michelangelo, exibido na Galeria dell’Academia, em reproduções em tamanho real na Piazza Michelangelo e frente ao Pallazzo Vecchio, mas também em camisetas, broches, imãs de geladeira, cuecas desenhadas e mil bugigangas fálicas vendidas pelos comerciantes de rua por toda a cidade. Aqui, o monumento à Grande Guerra é uma coluna. A própria basílica e sua cúpula foi construída ao lado de um batistério, o que acaba resultando em duas de cúpulas e, entre elas, ergue-se a coluna possante do Campanille.

 20 de julho, 22h12, Via San Gallo (Firenze)

Ops ! Quem é aquele caminhando no meio da rua ? Professor Augusto !!!

21 de julho, 11h18, Piazza Maggiori (Bologna)

Bolonha é a terra dos embutidos. Nos açougues, você pode escolher entre salame, salsiccia, prosciutto, copa, speck, lardo, bresaola, mocetta, pancetta, finocchiona. salamella, montone, filetto insaccato, sfilacci, sopressata, capocollo, figatelli, cervellata, sanguinaccio, ciauscollo, cotechino, guanciale, zampone, violino, lonza e, claro, mortadela, afetuosamente denominada pelos habitantes da cidade como “bologna”.

 22 de julho, Via San Lorenzo (Genova)

CASA DEL PIACERE SORA GEMMA

Alla buona: ₤ 110
Doppietta: ₤ 200
Mezza ora: ₤ 450
Ora intera: ₤ 630
Acqua e asciugamano di tela compreso.

AGEVOLAZIONE PER IL GIOVANOTTO DI PRIMO PELO

23 de julho, 18h50, avenida Divan Yolu, (Istambul)

 Sem saber, volto para Istambul no Ramadã, pouco antes da hora do final do jejum. A cidade está em festa ! Famílias fazem piqueniques em cada gramado de cada praça, os restaurantes oferecem menus especiais de Ramadã, e longas filas se formam nas suas portas esperando o pôr-do-sol. Os já enorme espectro dos vendedores de comida nas ruas, se multiplicas: doces, frutas, sorvetes, salgados, pães. O vendedor de simit agora exibe kadin-ğobeği, “rosquinhas pesadas cobertas de xarope que, quando bem feitas são leves para comer, como o ar e o paraíso”, nas palavras do escritor Irfan Orga. Música ao vivo, feirinha, espetáculos de marionetes, minaretes iluminados. Não há dúvida, é preciso sempre voltar a Istambul.

domingo, 13 de maio de 2012

Dance, dance, dance




Eu acreditaria somente em um deus que soubesse dançar
            Nietzsche, Zaratustra

Não sei dançar. Nunca soube. No começo, eu disfarçava, como todos disfarçavam nos bailinhos da pré-adolescência. Praticava-se lá algo vagamente parecido com o dançar, em que garotos e garotas se atracavam ao som de baladinhas românticas no salão de festas do prédio. Nesse estranho jogo, os casais se abraçavam, com uma certa distância, e os meninos tentavam puxar as meninas cada vez mais para perto, enquanto as garotas faziam força para manter os corpos longe. Ignoro a sensação das meninas, mas para meninos de 13 anos, esse jogo de empurra era de uma sensualidade brutal. Ficávamos francamente excitados, e as piadas tornavam-se inevitáveis. O garoto se aproximava da garota que, surpreendentemente cedia e permitia que seus corpos se tocassem, enquanto Marvin Gaye cantava Heard it through the grapevine em um disco de vinil. A garota, sentindo um volume na calça do menino, perguntava, maliciosa: “Nossa, o que é isso que você tem no bolso ?”. O garoto, se achando mais esperto, respondia: “É Halls” – e acrescentava, cheio de malícia: “Você quer ?”. Ao que a garota dizia, reafirmando seu controle da situação: “Não quero, dá pra perceber que o pacote já tá no fim”.


         Com o tempo, ficaram para trás os bailinhos bobos em que não se dança de verdade e surgiram aquelas infinitas situações sociais nas quais as pessoas são quase obrigadas a encarar uma pista de dança. Foi quando eu comecei a perceber minha total incapacidade para dançar. Não adianta. Já tentei de tudo. E o momento mais difícil para  pessoas que não tem a mínima capacidade para a dança, é quando alguma boa alma, geralmente uma garota, resolve ensinar a dançar. São momentos constrangedores. Empolgados, aceitamos a oferta e vamos para a pista, só para passar por situações terríveis. A mais comum é quando a dedicada “professora” nos diz, “Não se preocupe, é fácil, é só dar dois passos pra lá e dois para cá”. Em seguida a pessoa exemplifica o movimento e você percebe que aquilo que ela faz é muito mais do que simplesmente dar dois passos pra lá e dois pra cá. Seus braços se movem, o corpo balança, a cintura requebra...como fazer tudo isso, meu deus, e ao mesmo tempo ? E você, perdido no meio da pista, dá dois passos pra lá, dois para cá, exatamente como foi ensinado e é incapaz de fazer qualquer outro movimento, provocando sorrisos piedosos e desvios de olhar constrangidos .

Percebendo minhas dificuldade, alguma alma filantrópica diz, “Mexa os quadris !”, e eu penso comigo: “Que quadris ?” Também existe aquela famosa instrução: “Feche os olhos e deixe seu corpo se soltar”. Como assim ? Tá achando que eu sou Robert de Niro em As idades do amor ? Impossível. Em uma situação dessas, se eu deixar meu corpo se soltar a única coisa que ele vai fazer é sair correndo para longe desse local de tortura e humilhação pública que é a pista de dança.

A essa altura da vida, já desisti de dançar. Sobretudo, desisti de dançar junto, “conduzindo” um par, como dizem no jargão. Não quero transformar minha falta de habilidade em humilhação pública imposta a outra pessoa. Quando muito, limito-me a tentar dançar sozinho, e isso quase sempre significa manter os pés colados no chão e mover levemente o corpo para cima e para baixo, vagamente ao som da música e com os braços sem saber muito bem o que fazer. Na verdade, danço igualzinho ao garoto do vídeo acima.

E não me importo nem um pouco. Lembro da frase de Nietzsche, sobre um deus capaz de dançar. A incapacidade de dançar faz com que eu me reconcilie com minha Humanidade e suas limitações, faz com que eu perceba que devo ser humilde e manter os pés no chão – aliás, igualzinho a quando eu tento dançar . Sou um ser humano, e não saber dançar me ajuda a lembrar da minha finitude e precariedade, da minha ignorância e impotência.  Ainda tenho muito o que aprender.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Angelis Novus




Pense na pior forma possível de ler uma revista de história em quadrinhos. Acho que nem o mais requintado espírito sádico chegaria a essa solução: dispor as páginas da revista em gavetas, de forma que, conforme a leitura fosse avançando, o leitor, sempre em pé, fosse obrigado a ir se curvando, cada vez mais, até chegar próximo do chão (descartando-se a possibilidade de sentar, por simples falta de espaço e risco de levar chutes). Acrescente a isso uma iluminação precária, por exemplo, sob a forma de lâmpadas colocadas no interior de cada gaveta, acionadas automaticamente quando de sua abertura. Claro está que, após centenas de aberturas de gaveta e um acende e apaga infernal, as tais lâmpadas, praticamente  única fonte de luz em um ambiente francamente penumbroso, comecem a piscar. Como toque final, adicione a passagem de dezenas de pessoas às suas costas, o que implica em um safanão ou cutucão a cada meia página lida.
 E pronto, aqui está: é assim que se lê história em quadrinhos no sétimo círculo do inferno.

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Visitei a exposição sobre Angeli no Centro Cultural Itaú no último fim de semana. Angeli é um desses artistas que todos amam adorar. Seu humor feroz e sarcástico (tão bem usado nos cartuns políticos), sua crítica aos costumes  (os modernos e pretensiosos), seus personagens interessantes ou escrotos (ou melhor, skrotos), sua incrível capacidade de auto referência (podemos confiar no humor de quem sabe rir de si mesmo), tudo isso faz do Velho Cartunista uma figura digna de interesse. Ou apenas uma figura digna, muito digna.  
Estava tudo lá. Os personagens criados ao longo dos últimos quarenta anos, as tirinhas, uma parede com as capas da revista Chiclete com Banana (que me levaram de volta aos anos 80),  os quadrinhos porn, Los Tres Amigos, pranchas originais, ampliações, capas de disco e bandas fictícias, enfim, um delícia.  Mas...
Mas que raio de organização foi aquela ? Que m. é essa de história em quadrinhos em gavetas ? Algumas ideias, na aparência geniais ou criativas, simplesmente não funcionaram em um espaço tão limitado – que, calculei, mal devia ter uns cem metros quadrados. Pois nessa estreita área amontoava-se uma pequena multidão, que ainda por cima tinha que dividir o espaço com mesas (onde ficavam coletâneas encadernadas de suas tirinhas), bancos (para descansar... do que ? De caminhar em uma exposição de 100 m2 ?), as famosas prateleiras com gavetas e até uma geladeira.
As pessoas se acotovelavam, e o próprio conteúdo da exposição (quadrinhos que devem ser lidos) fazia com que as pessoas ficassem por longo tempo diante de cada mural, de cada instalação. Talvez não se esperasse tamanho afluxo de público, mas esse argumento não cola mais em São Paulo: qualquer evento divulgado na imprensa atrai multidões.
 Seja como for, fui embora sem ter visto sequer  1% do material exposto. Aproveitei que estava na Paulista e fui caminhando até o MASP, para ver a exposição do De Chirico. Claro, não entrei: era também o último fim de semana da exposição de Roma, e as filas para entrar no Museu, quilométricas. O ponto alto do sábado à tarde na Paulista acabou sendo – além da companhia, é claro – uma participação meio involuntária na passeata dos armênios em lembrança do genocídio de 1915. É isso aí. O ponto alto foi a lembrança de um genocídio.


Volto à exposição do Angeli. Pelas paredes, alguma ampliações de gravuras dos anos 1980, como a de logo acima. Acredito que a década de 1980 foi seminal para a transformação da cidade no que ela é hoje em dia, e Angeli deixou um testemunho forte sobre as mudanças do período. Após décadas de crescimento e otimismo, o país entrou em um lento declínio que iria durar os próximos vinte anos. Em São Paulo, a euforia da “cidade que mais cresce no mundo” foi deixada para trás, e até tornada motivo de vergonha: de que adiantou tudo isso ? O que restou desse crescimento todo, além de um horrendo aglomerado de prédios ? E, o que é pior: a ditadura havia acabado, e a solução mágica de todos os problemas – que obviamente viria com a democratização – não se realizou.
Da janela de seu apartamento - nostalgicamente emoldurada por venezianas de tipo antigo, que lembram velhas casas que quase já não mais existem na cidade - a personagem Rê Bordosa contempla a cidade. Nada mais dá certo, o projeto coletivo do “viver junto” que uma cidade  promete não se realizou em São Paulo (e parecia cada vez mais distante), portanto vamos resolver cada um seus problemas pessoais. Nem que seja bebendo até cair.
Porém, o que mais me chama atenção na imagem não é a personagem, mas a cidade em si. Vibrante, quase pulsante. A escuridão da noite, pontuada por letreiros luminosos, sugere a existência de vida. Porém essa vida não se expressa em pessoas (não há nenhuma na imagem da cidade, somente a Rê Bordosa em primeiro plano): os milhões de indivíduos isolados que vivem nesse aglomerado paulistano não formam uma coletividade (que se entende no plano social), mas um corpo vivo chamado cidade (que se entende, quem sabe, no plano da criação literária ou artística, não sendo menos vivo por isso).
Nos anos 1980 eu assistia seguidas vezes o sumido filme de Scorsese, After Hours, (incrivelmente traduzido no Brasil como “Depois de Horas”), que dá forma a esse sentimento de vida da cidade. Nessa década, o CineSesc manteve em cartaz por anos a fio o filme de Wenders Der Himmel über Berlin, “O céu sobre Berlim”, que mostrava anjos pairando sobre uma cidade cinza, tentando salvar os habitantes da cidade do nihilismo puro.
A cidade de São Paulo passou a se contorcer sobre si mesma (se continuava a crescer, isso já não mais importava) e, ao mesmo tempo, se voltar para seus espaços internos, privados; uma vez que o espaço público era cada vez mais decrépito e, com o tempo, também arriscado. O interesse gastronômico começou a nascer. O Festival Internacional de Cinema e as baladas intermináveis. Logo, a cultura de boteco deixaria de ser periférica ou ancestral, passando a ser chique. Também foi por essa década que fui em minha primeira baladinha de apê, com o som baixo, pra não incomodar vizinhos, e todos de meia, para não fazer barulho no andar de baixo.
Restaurante, cinema, boate, boteco, apartamento... entre quatro paredes, a vida pulsava, e pela janela via-se o mar de prédios escondendo milhões de existências privadas. Esta é a cidade, até hoje.

domingo, 11 de março de 2012

Como assim, "direito de colar" ?



“O aluno tem o direito de colar, mas o professor também tem o direito de tomar a prova do aluno caso isso seja percebido”. Como assim, "direito de colar” ? Ouvi a frase acima muitas vezes em diversas salas de professores por aí, e sempre me surpreendi com a naturalidade com que essa ideia é exposta e aceita. A meu ver, trata-se de raciocínio grosseiro e sem fundamento, cuja análise ajuda a lançar uma luz sobre a delicada relação entre ética e educação.
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Refuto o argumento do “direito de colar” de duas formas. Em primeiro lugar, no estrito âmbito do direito. Percebe-se que o direto (do aluno) de colar e o direito (do professor) de tomar a prova, enquadram-se no que costuma ser chamado de direitos conflitantes. Se o aluno tiver sucesso em colar, o professor não poderá exercer seu direito de tomar a prova; da mesma forma, no momento em que o professor tomar a prova do aluno, seu direito de colar é automaticamente abolido. Uma situação de direito conflitante é resolvida lançando-se mão de uma autoridade jurídica de instância superior, um Supremo Tribunal, que possa decidir a questão e, dessa forma, criar jurisprudência.
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Oras, o “Supremo Tribunal” em uma escola é a sua Direção ou Coordenação Pedagógica, e me parece que desde há muito já foi criada uma jurisprudência sobre o assunto: cada vez que o “direito de colar” entra em confronto com o direito de tomar a prova, a Direção da escola sempre se pronuncia em defesa do professor, ou seja, afirmando a superioridade do direito de tomar a prova sobre o suposto “direito de colar”. Nesse sentido, não se pode imaginar uma situação em que o “direito de colar” seja reconhecido, com o direto do professor sempre prevalecendo. A partir daqui, pode-se começar a questionar se o “direito de colar” é efetivamente um direito. A sua própria forma sigilosa, enquanto única forma como o ato de colar pode ser exercido, ajuda o questionamento. A cola é essencialmente uma prática sigilosa que, uma vez identificada, deve ser interrompida; dificilmente tal prática pode ser caracterizada como um direito.
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Mas há uma segunda forma de refutar o assim chamado “direito de colar”. Estamos cansado de saber que o país vive uma situação de verdadeiro déficit ético. Nas práticas do cotidiano e, lamentavelmente, nas práticas de uma certa política formal patrimonialista e– por que não ? – coronelística, predomina a ética do primeiro eu, cujo fundamento se encontra no princípio infelizmente consagrado de levar vantagem. Seu maior atributo é a esperteza, definida como a habilidade de contornar a lei buscando um benefício próprio, que resulta quase na obtenção de bens materiais ou dinheiro, ou simplesmente em uma vantagem que torna possível contornar um obstáculo ou resolver um problema. Ora, a cola apresenta-se como a quintessência da ética do primeiro eu, reunindo em si tanto seu fundamento quanto seu atributo. Caracterizar a cola como direito significa, de certa forma, consagrar a prática e, sobretudo, atrelar a ela um valor positivo, a ideia de direito, o que me parece errado.
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O direito do professor de tomar a prova do aluno só é possível de ser exercido se a cola é proibida, e chamar de direito uma atividade que, uma vez exercida, será reprimida, me parece um contra-senso evidente. Afirmar o “direito de cola”significa, em última instância, praticar o jogo da esperteza: quem é mais esperto, o aluno que cola ou o professor que vigia ? Conseguirá o aluno obter vantagens pessoais enganando os outros, contornando a norma ? Ou será o professor astuto o suficiente para surpreender os alunos (e lembro aqui do sorriso de satisfação de alguns colegas professores ao surpreender uma cola). Afirmar o “direito de cola” é reforçar o déficit ético em que vivemos.
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[Interlúdio perturbador: Mas e nos casos em que a norma estabelecida é incorreta ou arbitrária ? Não seria aqui o desrespeito a norma um ato de resistência, portanto eticamente aceitável – a até admirável ? No caso específico da questão que examino, a cola, cabe a pergunta: a forma de avaliação (provas individuais e sem consulta) é adequada ? Não seria a cola um ato de resistência à prática autoritária das avaliações escolares como são realizadas atualmente ? Deixo a questão em aberto, para ser abordada em outra oportunidade. Hoje simplifico minha reflexão assumindo que as avaliações são adequadas; e assumir esse pressuposto ajuda a delimitar melhor a questão da cola.]
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Diante do déficit ético em que vivemos, me parece que o caminho a ser adotado pela escola seja o de um tratamento absolutamente intransigente em relação a questões éticas. Muitos consideram essa intransigência como a simples adoção de uma série de práticas repressivas voltadas contra aqueles que transgrediram normas contidas em um “manual ético” ou “guia disciplinar” ou qualquer outra monstruosidade do gênero. Não é disso que falo. Por intransigência refiro-me ao tratamento ético de todas as questões envolvendo o cotidiano da escola, e não mais chamar a cola de direito me parece um exemplo de medida a ser tomada. Não peço aqui uma simples correção linguística – que nos levaria para as perigosas fronteiras do “politicamente correto” – mas principalmente um tratamento ético da questão da cola.
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Termino lembrando o sorriso de satisfação de alguns professores quando são mais “espertos”que algum aluno e o surpreendem colando. A cola, uma vez identificada e interrompida, não deve jamais ser celebrada. A simples ocorrência da prática da cola significa: a escola ainda tem muito trabalho pela frente, a educação contra a barbárie, a educação visando combater o déficit ético não está funcionando.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Cadê a sanidade ?


Esporte é chato. Muito chato. Mens sana in corpore sano só pode ter sido uma ironia dos romanos, aqueles brincalhões. Além disso, a expressão “uma mente sã em um corpo são” carrega uma contradição em termos, como observou A.J.Liebling, meu gordo favorito. Uma mente sã é aquela que demonstra sua capacidade de discernimento ao escolher deliberadamente ingerir coisas que eventualmente provocam efeitos negativos no corpo, mas que são boas, que ampliam seu repertório de experiências – portanto de conhecimento – sobre o mundo, vá lá, fenomênico. Por outro lado, a manutenção de um corpo são é uma meta que, se levada às últimas consequências, implica em viver trancafiado em um bunker de concreto anti-terremoto, anti-tsunami, anti-nuclear, alimentando-se exclusivamente de, sei lá, leite materno. O que não me parece um modo de vida que expresse sanidade mental. E, cá entre nós, a história do século XX seria bem diferente se o pessoal da cervejaria em Munique desconfiasse um pouco do rapaz de bigodinho que só bebia água mineral.
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Os esportistas e professores de esporte sabem disso, e tentam seduzir os leigos inventando novas modalidades de esporte, cada vez mais bizarras. O objetivo é atrair a feliz massa de sedentários e, quem sabe, salvar suas vidas. Comecei a reparar nisso da primeira vez que ouvi falar em “Pilates”, atividade física cujas características ignoro, mas cujo nome bíblico me encanta. Está aí uma atividade em que o aluno não se responsabiliza pelos resultados. Ou ainda, no glorioso Tênis Clube, cuja atividade de maior sucesso no verão foi nada menos que Acqua-TaiChi-KungFu.
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Espera aí. Tai Chi e Kung Fu ? E dentro da piscina, ainda por cima ? Por mais que eu seja um completo ignorante em artes (?) marciais, me parece que é bem difícil uma conciliação entre Tai Chi e Kung Fu. Até onde sei, o Tai Chi está para o Kung Fu assim como o chá de camomila está para o expresso doppio. Ou como Elton John está para o Sepultura, como Geraldo Alckmin para qualquer outra pessoa, ou ainda como uma sopa de legumes para o sanduíche Psicodélico do Guanabara (copa, queijo roquefort, aliche e picles, lá no Bar Guanabara, no centro. Eu acrescento pimenta).
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Há sempre aqueles que usam os argumentos científicos, em uma época de culto in extremis à felicidade. A atividade física faz o corpo produzir uma substância química (hummm... endorfina ?), que provoca no organismo uma sensação de prazer e bem-estar. Como assim, prazer e bem estar ? E quanto ao cansaço, esgotamento e suores ? Olha, não consigo imaginar coisa menos prazerosa do que a atividade física, e devo confessar que poucas coisas me provocam menos felicidade do que o sofrimento físico auto-impingido. (Nessas horas, me ocorre um episódio atribuído a Vinícius de Moraes, saindo de um bar no Rio de Janeiro. Já com o sol nascendo, percebeu que os primeiros entusiastas do esporte começavam a correr no calçadão diante da praia. De dentro do táxi, não se conteve e começou a gritar pela janela: “Canalhas ! Pulhas !”).
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Se por um lado é divertido explorar radicalmente a crítica ao esporte, por outro não tenho lá muita vontade de morrer tão cedo: pratico natação, duas ou três vezes por semana, 30 ou 40 minutos de cada vez. Gosto da sensação da água no corpo, gosto de sentir meus movimentos em outra dimensão. Mas cada vez que saio da piscina, lembro das palavras de Martín, no filme Medianeras (um daqueles filmes argentinos tão infinitamente melhores que os nossos): gosto de nadar. Mas odeio tudo aquilo que precede ou se segue ao ato de nadar: fazer a mochila, ir ao clube, frequentar o vestiário, trocar de roupa, usar touca e óculos de natação, fazer exame médico, enxugar, tomar banho fora de casa, ficar com cheiro de cloro, descobrir estranhas berebas na perna. Isso para não falar da fome brutal que a natação provoca, do sono pavoroso, além daquela irascível vontade de urinar que começa assim que se entra na água.
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Não há dúvida, esporte é chato, muito chato.
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(PS.: na foto, a Juventude Hitlerista pratica arremesso de granadas, esporte muito popular na Alemanha da época)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O Retorno do Ser - 2ª parte


Além disso, agora “sou italiano”. Ou seja, concluí o longo processo burocrático que me concedeu cidadania italiana, com a consequente emissão de passaporte, etc. O que diabos significa, a essa altura da vida, “ser italiano” ? Nada, provavelmente.

Tento traçar a origem do processo. Pensei pela primeira vez em ser italiano em algum momento da adolescência, época em que é normal para qualquer pessoa tentar “ser” alguma cosia, o que quer que seja.

[Interlúdio comportamental: lembram o saudoso Orkut ? Lembram como multidões de adolescentes adotaram o Orkut, que tinha a incrível capacidade de definir o Ser das pessoas bastando para isso participar dessa ou daquela comunidade ? Quanto maior a crise de identidade, maior o número de comunidades adicionadas pelo indivíduo. Com o tempo, essas comunidades compartilhadas ajudavam a definir identidades coletivas, e talvez daí a avidez com que grupos fascistóides – como as torcidas organizadas – adotaram o Orkut. Mais tarde, conforme a classe C foi aderindo ao Orkut, nossas hierarquias sociais brasileiras falaram mais alto e as “classes altas” começaram a mudar para o Facebook. Que, por sua vez, diz: sou moderno, sou internacional.]

Além disso, imaginava que um passaporte italiano um dia poderia ser – quem sabe ? – um motivo de segurança: nos anos 1990, a possibilidade do Brasil se transformar em um caos completo era bem real, e a doce península, embalada na prosperidade europeia, poderia ser uma eventual tábua de salvação. Finalmente, uma cidadania europeia poderia dar status, poderia resultar em vantagens práticas (e tolas) como evitar filas em aeroportos, não necessitar de visto para determinados países, enfim, milhares de pequenas coisas que me permitiriam contar vantagem em mesa de bar.

Hoje, finalmente, depois de mais de uma década na fila, tenho o passaporte vermelho e posso me perguntar mais seriamente qual o significado disso tudo. O que significa ser cidadão de um determinado país? Em linhas gerais, pertencemos a um país quando, vá lá, concordamos em ficar: por mais problemas que o Brasil tenha, é aqui que se constituiu meu Ser, através, por exemplo, da memória e da linguagem, esses dois pilares absolutamente essenciais da identidade. Isso para não falar dos afetos.

Todavia, há uma concepção de identidade nacional que parte de um princípio distinto. Ao conceder cidadania para filhos e netos e bisnetos de italianos mesmo que morando em outro país, a lei italiana parte do princípio de que existe uma italianidade que se transmite de pessoa a pessoa – e somente por linhagem masculina, o que, convenhamos, é bizarro –, independente da sociedade em que se vive, da língua que se fala, dos hábitos e costumes, das memórias e afetos construídos ao longo de uma vida.

O princípio é arcaico, e remete a ideias ao mesmo tempo ultrapassadas e perigosas – pois alimentam o racismo –, como a do “direito de sangue”. Acredito que o princípio de uma italianidade hereditária chega a ser contrário ao espírito republicano, uma vez que uma República e suas leis são para todos os cidadãos, independente do sangue e da ascendência. Aqui começa a ser patética minha ambição de levar vantagem em fila de aeroporto, uma vez que parte da rejeição ao princípio republicano que acabei assumindo quando resolvi ser cúmplice e participar do truque de “ser italiano”.

Tento buscar uma saída. Talvez a italianidade não deva ser vista como fruto do “direito de sangue”, mas sim compreendida em chave cultural. Ser italiano e participar de uma família de origem italiana talvez signifique incorporar um modo de vida que tenha lá suas origens na península e que, ao sobreviverem, passaram a fazer parte do meu Ser. Assim, sou italiano não porque tenho um eventual “sangue italiano”, mas porque... porque o quê ? Gosto de fettuccine ? Prefiro sangiovese a merlot ? Transformo o “e” final das palavras em “i” ?

Até concedo que um filho de italiano se sinta italiano e veja na italianidade uma parte de seu Ser. Mas, no meu caso, desconfio que a Itália já ficou para trás.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O Retorno do Ser

“Eu sou...” não se começa uma frase assim impunemente. Dizer “eu sou” traz infinitas implicações e a mais séria delas talvez seja a crença de que o Ser se define pelo próprio sujeito, quando na verdade é bem possível que aquilo que somos só seja efetivamente percebido pelo Outro. “Você é...” certamente causa muito mais preocupação – e está muito mais próximo do verdadeiro - do que um simples e surrado “eu sou”. Aliás, sempre desconfiei das pessoas que insistem em começar frases com "Eu sou...” e chega até a ser meio comum ouvir aqueles que começam frases com “sou o tipo de pessoa que....”. Essas frases costumam ser mais profissões de fé do que qualquer outra coisa – wishful thinking, alguns diriam. Ou então, pura insegurança: tenho que sair por aí dizendo o que sou, caso contrário corro o risco de ser nada.

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Conto pela milésima vez a mesma história, que envolve meu sobrinho (“quando deus não dá filhos o demônio manda sobrinhos”), então com uns 5 ou 6 anos de idade. Sua mãe e sua professora conversavam na saída da escola e eis que a tia diz: “Mas este menino tem muito boa índole !”, ao que a mãe orgulhosa respondeu, “Sim é verdade, ele tem boa índole !”. O moleque, perplexo ficou contemplando os adultos: pois e não é que sua mãe (principal enunciadora da verdade quando se tem 6 anos de idade) e a professora (mãe ersatz durante parte do dia) concordavam que ele possuía boa índole, e o moleque não fazia a mínima ideia do que isso queria dizer. Ou seja, afirmava-se o Ser do pimpolho, mas ao mesmo tempo ele era mantido na ignorância sobre seu significado, uma situação francamente perturbadora.

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O fato é que nos últimos meses, o mundo acabou acrescentando dois novos complementos ao meu Ser. A primeira delas é “Eu sou chefe”, fruto de uma evolução profissional mais ou menos normal ou previsível. Porém, certas coisas mudaram desde que “Eu sou chefe”. Amigos tratam-me diferente, as pessoas em geral tornaram-se mais atenciosas: ouço bom dia onde antes não ouvia, percebo subitamente que minhas piadas tornaram-se tremendamente engraçadas. Além disso, há uma tendência muito maior de as pessoas ouvirem o que eu falo, mesmo com o conteúdo da minha fala permanecendo o mesmo do tempo em que “Eu não era chefe”.

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A nomeação burocrática mudou a minha forma de inserção no trabalho, bem como parte da minha interação social. Querendo ou não, passei a ter nas mãos um certo poder; bem escroto, é verdade, mas ainda assim um poder. Minha fala deixa de ser descompromissada: agora tudo que digo tem efeitos de poder, que podem se realizar ou não. Por exemplo, meu mau-humor matinal, que me levava a dizer raros bons-dias, agora deve ser combatido: não posso ser um “chefe arrogante”. Ou então, quando digo, “Fulano é...” pareço estar enunciando uma sentença, pois sei que cada palavra minha vai ser interpretada, escrutinizada, torturada até que dela se extraiam todos os significados possíveis. Tenho que me policiar, ao mesmo tempo que, querendo ou não, espera-se que eu policie os outros.

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As pessoas me telefonam. Colegas passaram a me procurar, trazendo demandas que já não tem mais nada a ver com a profissão. Colegas com quem pouco conversei nos últimos anos se abrem para mim, até em questões familiares ou emocionais: a posse do poder me transforma em uma figura forte – penso no istos (ιστός) grego – mesmo que eu na verdade continue sendo um ser humano precário, inseguro e chorão.

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Da mesma forma que as pessoas dependem de mim, eu perco a minha independência. Em princípio, sempre valorizei a postura profissional de dizer o que penso, “e se não gostarem, tchau, peço demissão, vocês não me merecem”. Isso já não é mais possível. Há trabalhos em andamento, há projetos (alguns francamente empolgantes) dos quais eu quero participar, eu quero que funcionem como eu pensei. E é aqui que justifico meu poder escroto: com ele tenho a possibilidade de transformar o trabalho em algo estimulante, desafiador, rompendo com a mesmice de anos anteriores. Evito os detalhes técnicos, apenas penso na velha concepção marxista de realização do homem através do trabalho.

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O segundo novo “Eu sou...”, deixo para a próxima semana.