domingo, 11 de março de 2012

Como assim, "direito de colar" ?



“O aluno tem o direito de colar, mas o professor também tem o direito de tomar a prova do aluno caso isso seja percebido”. Como assim, "direito de colar” ? Ouvi a frase acima muitas vezes em diversas salas de professores por aí, e sempre me surpreendi com a naturalidade com que essa ideia é exposta e aceita. A meu ver, trata-se de raciocínio grosseiro e sem fundamento, cuja análise ajuda a lançar uma luz sobre a delicada relação entre ética e educação.
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Refuto o argumento do “direito de colar” de duas formas. Em primeiro lugar, no estrito âmbito do direito. Percebe-se que o direto (do aluno) de colar e o direito (do professor) de tomar a prova, enquadram-se no que costuma ser chamado de direitos conflitantes. Se o aluno tiver sucesso em colar, o professor não poderá exercer seu direito de tomar a prova; da mesma forma, no momento em que o professor tomar a prova do aluno, seu direito de colar é automaticamente abolido. Uma situação de direito conflitante é resolvida lançando-se mão de uma autoridade jurídica de instância superior, um Supremo Tribunal, que possa decidir a questão e, dessa forma, criar jurisprudência.
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Oras, o “Supremo Tribunal” em uma escola é a sua Direção ou Coordenação Pedagógica, e me parece que desde há muito já foi criada uma jurisprudência sobre o assunto: cada vez que o “direito de colar” entra em confronto com o direito de tomar a prova, a Direção da escola sempre se pronuncia em defesa do professor, ou seja, afirmando a superioridade do direito de tomar a prova sobre o suposto “direito de colar”. Nesse sentido, não se pode imaginar uma situação em que o “direito de colar” seja reconhecido, com o direto do professor sempre prevalecendo. A partir daqui, pode-se começar a questionar se o “direito de colar” é efetivamente um direito. A sua própria forma sigilosa, enquanto única forma como o ato de colar pode ser exercido, ajuda o questionamento. A cola é essencialmente uma prática sigilosa que, uma vez identificada, deve ser interrompida; dificilmente tal prática pode ser caracterizada como um direito.
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Mas há uma segunda forma de refutar o assim chamado “direito de colar”. Estamos cansado de saber que o país vive uma situação de verdadeiro déficit ético. Nas práticas do cotidiano e, lamentavelmente, nas práticas de uma certa política formal patrimonialista e– por que não ? – coronelística, predomina a ética do primeiro eu, cujo fundamento se encontra no princípio infelizmente consagrado de levar vantagem. Seu maior atributo é a esperteza, definida como a habilidade de contornar a lei buscando um benefício próprio, que resulta quase na obtenção de bens materiais ou dinheiro, ou simplesmente em uma vantagem que torna possível contornar um obstáculo ou resolver um problema. Ora, a cola apresenta-se como a quintessência da ética do primeiro eu, reunindo em si tanto seu fundamento quanto seu atributo. Caracterizar a cola como direito significa, de certa forma, consagrar a prática e, sobretudo, atrelar a ela um valor positivo, a ideia de direito, o que me parece errado.
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O direito do professor de tomar a prova do aluno só é possível de ser exercido se a cola é proibida, e chamar de direito uma atividade que, uma vez exercida, será reprimida, me parece um contra-senso evidente. Afirmar o “direito de cola”significa, em última instância, praticar o jogo da esperteza: quem é mais esperto, o aluno que cola ou o professor que vigia ? Conseguirá o aluno obter vantagens pessoais enganando os outros, contornando a norma ? Ou será o professor astuto o suficiente para surpreender os alunos (e lembro aqui do sorriso de satisfação de alguns colegas professores ao surpreender uma cola). Afirmar o “direito de cola” é reforçar o déficit ético em que vivemos.
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[Interlúdio perturbador: Mas e nos casos em que a norma estabelecida é incorreta ou arbitrária ? Não seria aqui o desrespeito a norma um ato de resistência, portanto eticamente aceitável – a até admirável ? No caso específico da questão que examino, a cola, cabe a pergunta: a forma de avaliação (provas individuais e sem consulta) é adequada ? Não seria a cola um ato de resistência à prática autoritária das avaliações escolares como são realizadas atualmente ? Deixo a questão em aberto, para ser abordada em outra oportunidade. Hoje simplifico minha reflexão assumindo que as avaliações são adequadas; e assumir esse pressuposto ajuda a delimitar melhor a questão da cola.]
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Diante do déficit ético em que vivemos, me parece que o caminho a ser adotado pela escola seja o de um tratamento absolutamente intransigente em relação a questões éticas. Muitos consideram essa intransigência como a simples adoção de uma série de práticas repressivas voltadas contra aqueles que transgrediram normas contidas em um “manual ético” ou “guia disciplinar” ou qualquer outra monstruosidade do gênero. Não é disso que falo. Por intransigência refiro-me ao tratamento ético de todas as questões envolvendo o cotidiano da escola, e não mais chamar a cola de direito me parece um exemplo de medida a ser tomada. Não peço aqui uma simples correção linguística – que nos levaria para as perigosas fronteiras do “politicamente correto” – mas principalmente um tratamento ético da questão da cola.
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Termino lembrando o sorriso de satisfação de alguns professores quando são mais “espertos”que algum aluno e o surpreendem colando. A cola, uma vez identificada e interrompida, não deve jamais ser celebrada. A simples ocorrência da prática da cola significa: a escola ainda tem muito trabalho pela frente, a educação contra a barbárie, a educação visando combater o déficit ético não está funcionando.

4 comentários:

Sentir disse...

Nossa que filosofia da cola! Muito criativo!

Fernando Paiotti disse...

é vc na foto ali gian?? alguns anos mais novo?

hehehe

saudades de vc gian. fui seu aluno no anglo em 2005, 2006 e 2008. Leio o blog desde sua inauguração e desde então nunca mais deixei de ler. lembro ate hj de vc anunciando ele pra turma "não é gianbofe.blogspot nao!" =]


vc foi um grande professor q tive, acho q o professor q mais me mudou nesses quase 25 anos.

engraçado q nunca comentei no seu blog, sou seu fã de carteirinha, mas hj deu vontade, um certo saudosismo. frase!! frase!! (mais um)

forte abraço gian. sinto falta das suas aulas, especialmente qnd vou para a facul. ter aquelas aulas incrivelmente entediantes. sinto falta da sua aula de blues e da sua sensibilidade.

me lembro como se fosse ontem vc falando: "o cursinho é chato... mas é legal!! (fazendo joinha)... a facul é legal... mas é chata :("
Essa foi uma das maiores verdades q ouvi no cursinho. se pá, na vida.


bom gian, forte abraço! gostaria de reve-lo qualquer hora. um dia eu te vi la na sanfran mas nao consegui te parar a tempo.
caso vc tenha uma vaga lembrança minha, eu te trouxe umas poesias de minha autoria em 2008. voltei fazer turmas de maio nesse ano pq larguei a FEA. vc levou meu poemas pra casa, do meu original, e ficou com eles. ai, qnd soube, vc trouxe de volta. e nunca vou me esquecer qnd vc falou "nossa era o original... isso poderia valer uma fortuna um dia..."

Mariane disse...

O único direito que realmente vale ai é o do professor, dizer que um aluno tem direito de colar é como dizer que ele tem direito de desrespeitar as regras contanto que não seja pego, seria algo como a gente tem o direito de roubar, contanto que não sejamos pegos...
Falar dos direito de cola e de tomar a prova, como vc disse deve ser mais uma disputa criada pra ver quem consegue ser mais esperto mesmo, o que é uma função bem boba que uma prova pode ter!
Enfim, lembrei desse post numa aula esses dias q uma professora falou como nosso conceito comum de cola é relativo!

jotacosteleta disse...

Seria interessante ver um protesto de colas pelo Brasil! Mas seria bem triste também. O fato é que não temos conselhos de ética. No caso da Economia, temos apenas códigos mal difundidos e não conheço punições à omissões da profissão, erros ou mesmo má fé. Como resolveremos? Tem que ser uma medida de cima para baixo?