quarta-feira, 25 de abril de 2012

Angelis Novus




Pense na pior forma possível de ler uma revista de história em quadrinhos. Acho que nem o mais requintado espírito sádico chegaria a essa solução: dispor as páginas da revista em gavetas, de forma que, conforme a leitura fosse avançando, o leitor, sempre em pé, fosse obrigado a ir se curvando, cada vez mais, até chegar próximo do chão (descartando-se a possibilidade de sentar, por simples falta de espaço e risco de levar chutes). Acrescente a isso uma iluminação precária, por exemplo, sob a forma de lâmpadas colocadas no interior de cada gaveta, acionadas automaticamente quando de sua abertura. Claro está que, após centenas de aberturas de gaveta e um acende e apaga infernal, as tais lâmpadas, praticamente  única fonte de luz em um ambiente francamente penumbroso, comecem a piscar. Como toque final, adicione a passagem de dezenas de pessoas às suas costas, o que implica em um safanão ou cutucão a cada meia página lida.
 E pronto, aqui está: é assim que se lê história em quadrinhos no sétimo círculo do inferno.

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Visitei a exposição sobre Angeli no Centro Cultural Itaú no último fim de semana. Angeli é um desses artistas que todos amam adorar. Seu humor feroz e sarcástico (tão bem usado nos cartuns políticos), sua crítica aos costumes  (os modernos e pretensiosos), seus personagens interessantes ou escrotos (ou melhor, skrotos), sua incrível capacidade de auto referência (podemos confiar no humor de quem sabe rir de si mesmo), tudo isso faz do Velho Cartunista uma figura digna de interesse. Ou apenas uma figura digna, muito digna.  
Estava tudo lá. Os personagens criados ao longo dos últimos quarenta anos, as tirinhas, uma parede com as capas da revista Chiclete com Banana (que me levaram de volta aos anos 80),  os quadrinhos porn, Los Tres Amigos, pranchas originais, ampliações, capas de disco e bandas fictícias, enfim, um delícia.  Mas...
Mas que raio de organização foi aquela ? Que m. é essa de história em quadrinhos em gavetas ? Algumas ideias, na aparência geniais ou criativas, simplesmente não funcionaram em um espaço tão limitado – que, calculei, mal devia ter uns cem metros quadrados. Pois nessa estreita área amontoava-se uma pequena multidão, que ainda por cima tinha que dividir o espaço com mesas (onde ficavam coletâneas encadernadas de suas tirinhas), bancos (para descansar... do que ? De caminhar em uma exposição de 100 m2 ?), as famosas prateleiras com gavetas e até uma geladeira.
As pessoas se acotovelavam, e o próprio conteúdo da exposição (quadrinhos que devem ser lidos) fazia com que as pessoas ficassem por longo tempo diante de cada mural, de cada instalação. Talvez não se esperasse tamanho afluxo de público, mas esse argumento não cola mais em São Paulo: qualquer evento divulgado na imprensa atrai multidões.
 Seja como for, fui embora sem ter visto sequer  1% do material exposto. Aproveitei que estava na Paulista e fui caminhando até o MASP, para ver a exposição do De Chirico. Claro, não entrei: era também o último fim de semana da exposição de Roma, e as filas para entrar no Museu, quilométricas. O ponto alto do sábado à tarde na Paulista acabou sendo – além da companhia, é claro – uma participação meio involuntária na passeata dos armênios em lembrança do genocídio de 1915. É isso aí. O ponto alto foi a lembrança de um genocídio.


Volto à exposição do Angeli. Pelas paredes, alguma ampliações de gravuras dos anos 1980, como a de logo acima. Acredito que a década de 1980 foi seminal para a transformação da cidade no que ela é hoje em dia, e Angeli deixou um testemunho forte sobre as mudanças do período. Após décadas de crescimento e otimismo, o país entrou em um lento declínio que iria durar os próximos vinte anos. Em São Paulo, a euforia da “cidade que mais cresce no mundo” foi deixada para trás, e até tornada motivo de vergonha: de que adiantou tudo isso ? O que restou desse crescimento todo, além de um horrendo aglomerado de prédios ? E, o que é pior: a ditadura havia acabado, e a solução mágica de todos os problemas – que obviamente viria com a democratização – não se realizou.
Da janela de seu apartamento - nostalgicamente emoldurada por venezianas de tipo antigo, que lembram velhas casas que quase já não mais existem na cidade - a personagem Rê Bordosa contempla a cidade. Nada mais dá certo, o projeto coletivo do “viver junto” que uma cidade  promete não se realizou em São Paulo (e parecia cada vez mais distante), portanto vamos resolver cada um seus problemas pessoais. Nem que seja bebendo até cair.
Porém, o que mais me chama atenção na imagem não é a personagem, mas a cidade em si. Vibrante, quase pulsante. A escuridão da noite, pontuada por letreiros luminosos, sugere a existência de vida. Porém essa vida não se expressa em pessoas (não há nenhuma na imagem da cidade, somente a Rê Bordosa em primeiro plano): os milhões de indivíduos isolados que vivem nesse aglomerado paulistano não formam uma coletividade (que se entende no plano social), mas um corpo vivo chamado cidade (que se entende, quem sabe, no plano da criação literária ou artística, não sendo menos vivo por isso).
Nos anos 1980 eu assistia seguidas vezes o sumido filme de Scorsese, After Hours, (incrivelmente traduzido no Brasil como “Depois de Horas”), que dá forma a esse sentimento de vida da cidade. Nessa década, o CineSesc manteve em cartaz por anos a fio o filme de Wenders Der Himmel über Berlin, “O céu sobre Berlim”, que mostrava anjos pairando sobre uma cidade cinza, tentando salvar os habitantes da cidade do nihilismo puro.
A cidade de São Paulo passou a se contorcer sobre si mesma (se continuava a crescer, isso já não mais importava) e, ao mesmo tempo, se voltar para seus espaços internos, privados; uma vez que o espaço público era cada vez mais decrépito e, com o tempo, também arriscado. O interesse gastronômico começou a nascer. O Festival Internacional de Cinema e as baladas intermináveis. Logo, a cultura de boteco deixaria de ser periférica ou ancestral, passando a ser chique. Também foi por essa década que fui em minha primeira baladinha de apê, com o som baixo, pra não incomodar vizinhos, e todos de meia, para não fazer barulho no andar de baixo.
Restaurante, cinema, boate, boteco, apartamento... entre quatro paredes, a vida pulsava, e pela janela via-se o mar de prédios escondendo milhões de existências privadas. Esta é a cidade, até hoje.

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