Pense na pior
forma possível de ler uma revista de história em quadrinhos. Acho que nem o
mais requintado espírito sádico chegaria a essa solução: dispor as páginas da
revista em gavetas, de forma que, conforme a leitura fosse avançando, o leitor,
sempre em pé, fosse obrigado a ir se curvando, cada vez mais, até chegar
próximo do chão (descartando-se a possibilidade de sentar, por simples falta de
espaço e risco de levar chutes). Acrescente a isso uma iluminação precária, por exemplo, sob a forma de
lâmpadas colocadas no interior de cada gaveta, acionadas automaticamente quando de
sua abertura. Claro está que, após centenas de aberturas de gaveta e um acende e apaga
infernal, as tais lâmpadas, praticamente
única fonte de luz em um ambiente francamente penumbroso, comecem a
piscar. Como toque final, adicione a passagem de dezenas de pessoas às suas
costas, o que implica em um safanão ou cutucão a cada meia página lida.
* * *
Visitei a
exposição sobre Angeli no Centro Cultural Itaú no último fim de semana. Angeli é
um desses artistas que todos amam adorar. Seu humor feroz e sarcástico (tão
bem usado nos cartuns políticos), sua crítica aos costumes (os modernos e pretensiosos), seus personagens
interessantes ou escrotos (ou melhor, skrotos), sua incrível capacidade de auto
referência (podemos confiar no humor de quem sabe rir de si mesmo), tudo isso
faz do Velho Cartunista uma figura digna de interesse. Ou apenas uma figura
digna, muito digna.
Estava tudo
lá. Os personagens criados ao longo dos últimos quarenta anos, as tirinhas, uma
parede com as capas da revista Chiclete com Banana (que me levaram de volta aos
anos 80), os quadrinhos porn, Los Tres
Amigos, pranchas originais, ampliações, capas de disco e bandas fictícias, enfim,
um delícia. Mas...
Mas que raio de
organização foi aquela ? Que m. é essa de história em quadrinhos em gavetas ?
Algumas ideias, na aparência geniais ou criativas, simplesmente não funcionaram
em um espaço tão limitado – que, calculei, mal devia ter uns cem metros quadrados.
Pois nessa estreita área amontoava-se uma pequena multidão, que ainda por
cima tinha que dividir o espaço com mesas (onde ficavam coletâneas encadernadas
de suas tirinhas), bancos (para descansar... do que ? De caminhar em uma exposição
de 100 m2 ?), as famosas prateleiras com gavetas e até uma geladeira.
As pessoas se
acotovelavam, e o próprio conteúdo da exposição (quadrinhos que devem ser lidos) fazia com que as pessoas ficassem
por longo tempo diante de cada mural, de cada instalação. Talvez não se
esperasse tamanho afluxo de público, mas esse argumento não cola mais em São
Paulo: qualquer evento divulgado na imprensa atrai multidões.
Seja como for, fui embora sem ter visto
sequer 1% do material exposto. Aproveitei
que estava na Paulista e fui caminhando até o MASP, para ver a exposição do De
Chirico. Claro, não entrei: era também o último fim de semana da exposição de Roma,
e as filas para entrar no Museu, quilométricas. O ponto alto do sábado à tarde
na Paulista acabou sendo – além da companhia, é claro – uma participação meio involuntária
na passeata dos armênios em lembrança do genocídio de 1915. É isso aí. O ponto
alto foi a lembrança de um genocídio.
Volto à exposição do Angeli. Pelas paredes, alguma ampliações de
gravuras dos anos 1980, como a de logo acima. Acredito que a década de 1980 foi
seminal para a transformação da cidade no que ela é hoje em dia, e Angeli deixou um
testemunho forte sobre as mudanças do período. Após décadas de crescimento e
otimismo, o país entrou em um lento declínio que iria durar os próximos vinte
anos. Em São Paulo, a euforia da “cidade que mais cresce no mundo” foi deixada
para trás, e até tornada motivo de vergonha: de que adiantou tudo isso ? O que
restou desse crescimento todo, além de um horrendo aglomerado de prédios ? E, o
que é pior: a ditadura havia acabado, e a solução mágica de todos os problemas –
que obviamente viria com a democratização – não se realizou.
Da janela de seu apartamento - nostalgicamente emoldurada por
venezianas de tipo antigo, que lembram velhas casas que quase já não mais
existem na cidade - a personagem Rê Bordosa contempla a cidade. Nada mais dá
certo, o projeto coletivo do “viver junto” que uma cidade promete não se realizou
em São Paulo (e parecia cada vez mais distante), portanto vamos resolver cada
um seus problemas pessoais. Nem que seja bebendo até cair.
Porém, o que mais me chama atenção na imagem não é a personagem, mas a
cidade em si. Vibrante, quase pulsante. A escuridão da noite, pontuada por
letreiros luminosos, sugere a existência de vida. Porém essa vida não se
expressa em pessoas (não há nenhuma na imagem da cidade, somente a
Rê Bordosa em primeiro plano): os milhões de indivíduos isolados que vivem nesse aglomerado paulistano não formam uma coletividade (que se entende no plano social), mas um
corpo vivo chamado cidade (que se entende, quem sabe, no plano da criação literária
ou artística, não sendo menos vivo por isso).
Nos anos 1980 eu assistia seguidas vezes o sumido filme de Scorsese,
After Hours, (incrivelmente traduzido
no Brasil como “Depois de Horas”), que dá forma a esse sentimento de vida da
cidade. Nessa década, o CineSesc manteve em cartaz por anos a fio o filme de
Wenders Der Himmel über Berlin, “O
céu sobre Berlim”, que mostrava anjos pairando sobre uma cidade cinza, tentando
salvar os habitantes da cidade do nihilismo puro.
A cidade de São Paulo passou a se contorcer sobre si mesma (se
continuava a crescer, isso já não mais importava) e, ao mesmo tempo, se voltar
para seus espaços internos, privados; uma vez que o espaço público era cada vez mais
decrépito e, com o tempo, também arriscado. O interesse gastronômico começou a nascer.
O Festival Internacional de Cinema e as baladas intermináveis. Logo, a
cultura de boteco deixaria de ser periférica ou ancestral, passando a ser chique. Também foi por essa década que fui em minha primeira baladinha de apê, com o som
baixo, pra não incomodar vizinhos, e todos de meia, para não fazer barulho no
andar de baixo.
Restaurante, cinema, boate, boteco, apartamento... entre quatro
paredes, a vida pulsava, e pela janela via-se o mar de prédios escondendo milhões de existências
privadas. Esta é a cidade, até hoje.
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