sábado, 20 de dezembro de 2008

Como ratos


Há algo de pegajoso em alguns sorrisos natalinos, sempre desconfiei de manifestações emotivas com data marcada. Não estou falando do porteiro do prédio, do entregador de jornal, do trabalhador pessimamente remunerado que se agarra a qualquer possibilidade de ganho extra como um dos iracundos de Gustav Doré se agarra ao barco que atravessa o Estige, no canto VIII da Divina Comedia. Para esses, escravos, mais uma reverência ao nhonhô branco não faz diferença, afinal, o que é uma humilhação a mais para quem vive na senzala ? (claro, eles não precisariam exagerar usando os abomináveis chapéuzinhos de Papai Noel enquanto lidam com suas tarefas do cotidiano). Mas falo, sobretudo, da outra ponta, daqueles que não precisariam ostentar simpatia natalina, daqueles que presenteiam panetones às dúzias, daqueles que, da casa-grande, exibem seus sorrisos pegajosos por aí. Con piangere e com lutto, spirito maledetto ti rimani, ch’io ti conosco, ancor sie lordo tutto.

[Adam Gopnik, que escreve instigantes textos na versão americana da revista Piauí (a New Yorker), identifica autores de blogs como pessoas que tem ódio. Disse que Robespierre, se fosse vivo, teria um blog. Dante Alighieri, que já começo citando a torto e a direito, dizia que se escreve por amor. Não fosse Beatriz, não haveria a Divina Comedia. Disso tudo eu tiro que a escrita não é indiferente, neutra: se não depositamos nela a fúria e a paixão, o máximo que conseguimos é uma redação de vestibular.]

Sigo transitando entre o amor e o ódio para falar sobre a grave arte de dar presentes. Sinto-me até inclinado a propor uma “genealogia do presente”, não fosse esse título, por si só, carregado de ambigüidade metafísica. Sob o Natal, a origem do hábito de presentear é bem conhecida. Lembremos da cena: três reis vindos de longe atravessam o deserto para encontrar o menino, não medindo esforços para lhe oferecer presentes. Disse o Venerável Beda (673-735): “Belchior era velho de setenta anos, de cabelos e barbas brancas, tendo partido de Ur, terra dos caldeus. Gaspar era moço, de vinte anos, robusto e partira de uma distante região montanhosa, perto do mar Cáspio. Baltazar era mouro, de barba cerrada e com quarenta anos, partira do Golfo Pérsico, na Arábia”. Seguindo uma estrela, rumaram para o Ocidente até chegarem à casa do menino. Após a busca, a entrega: primeiro o adoraram e, em seguida, ofereceram à sua mãe os valiosos presentes que trouxeram, ouro, incenso e mirra.

A história toda remete a singularidade da situação: aquele que foi presenteado era nada menos que o Salvador, jamais existiu ou existirá alguém como ele. O desejo de presentear era tão forte que levou à travessia de um deserto. Finalmente, seguindo a Bíblia (Mt, 2, 10; por pior que seja a fonte, não tenho outra), ao chegarem com os presentes, “os três reis alegraram-se com grande e intenso júbilo”. O ouro é uma referência à riqueza material; o incenso, diáfano e perfumado, à espiritualidade; a mirra, usada para embalsamar cadáveres, à imortalidade.

Que diferença gritante em relação às nossas trocas apressadas de fim de ano ! Ou então, aos nossos afamados “amigos-secretos”, um tipo de celebração que se limita, muitas vezes, a um jogo – divertido, por certo – , mas que já não tem mais nada a ver com o ato de presentear. Imagino os reis magos fazendo um amigo-secreto: só um deles tiraria o papelzinho com Jesus. Os outros trocariam presentes entre si e seria até bom se fizessem uma lista com o que gostariam de ganhar, para que ninguém passasse pela roubada de dar ouro e ganhar mirra.

A tradição aponta para o ato de presentear, conforme praticado pelos reis magos, como um ato sério, que gera felicidade para quem oferece. Percebemos, com a tradição, que aquilo que deveria ser exaltado com presentes é a singularidade do presenteado, o fato de que se trata de uma pessoa única que merece nossa dedicação. Atravessar um deserto só é possível se temos em mente a pessoa a ser presenteada, se ela é a estrela que conduz. Muito difícil é o ato de presentear, pois deveríamos oferecer ouro, incenso e mirra. Hoje, quase sempre, aplacamos a consciência dando ouro (ao preço de um panetone), mas deveríamos oferecer como presente verdadeiro nada menos que a dedicação espiritual e a imortalidade à pessoa presenteada. Como incenso e mirra, deveríamos fazer com que o presente fosse um pedaço de nós, que pudesse ser levado junto, sempre. E a pessoa presenteada, por sua vez, só poderia ser a pessoa amada, a quem já adorássemos antes da entrega.
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Volto aos sorrisos pegajosos, lembro os iracundos de Dante. Pelas ruas, nos shoppings lotados, no trânsito infernal, nos aglomerados de consumo, o Natal desperta raiva e ódio. Enquanto maldizemos a necessidade de ir ao shopping nesses dias movimentados (portanto maldizendo a necessidade de presentear), vamos xingando com sinceridade as pessoas que se põem em nosso caminho. Às vezes acho que presenteamos com ódio e xingamos com amor.

Uma das poucas vantagens da época (observe que não cito várias coisas verdadeiramente prazerosas das festas: hoje escrevo com raiva), é que o convívio com a multiplicidade de sorrisos pegajosos acaba nos ajudando a lidar com eles ao longo do ano. Escolados pelo Natal, deveríamos perceber mais facilmente ao longo do ano os canalhas que se escondem por trás de cada sorriso, uma vez que esses, lamento, estão por toda a parte.

Como ratos.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Com a Lua em Vênus (seja lá o que for isso)



O início da temporada de vestibulares fez com que todos se calassem, é como se todos tivessem parado de pensar para estudar loucamente (no que estão certos). Ao mesmo tempo, os últimos “alegres colóquios” não renderam muita coisa, e me vejo na obrigação de compartilhar pensamentos que tenho tido por conta própria – porém dos quais fazem parte esse nosso estranho convívio. A leitura apressada do livro de Theodor Adorno, As estrelas descem à terra (agora em português: São Paulo, Ed.Unesp, 2008) e alguns momentos de ócio matinal me levaram à reflexão que ando compartilhando por aí. Apesar de solitária, eu a compartilho: a alternativa é abandonar o blog temporariamente . De fato, o último post, com texto de Ítalo Calvino, foi quase solenemente ignorado pelos alegres seguidores do blog. Suspeito que se não puser nada de mim nos textos, ninguém dará a mínima atenção ao que escrevo.

Sigo Adorno ao meu jeito, falando de horóscopos e do que leva as pessoas a lerem horóscopos. Jamais chegarei ao grau de refinamento de Adorno, que diz coisas como: “O envolvimento com astrologia pode oferecer àqueles que se deixam levar por ela um substituto para o prazer sexual de natureza passiva. Em primeira instância, isso significa a submissão à força desenfreada do poder absoluto...” (p.47) e por aí vai. Mas, posso dizer que as colunas de astrologia propõem uma estranha relação entre o racional e o irracional, na medida em que mobilizam todo um obscuro campo de saber com uma finalidade eminentemente prática ou utilitária, sendo o utilitarismo o fim último de uma razão instrumental. Ao consultar meu horóscopo de hoje na Folha de São Paulo, descobri que a Lua está em Vênus, o que parece me trazer perspectivas extremamente favoráveis no campo sentimental (são 20h55, até agora as expectativas foram todas frustradas). Já em O Estado de São Paulo, fiquei sabendo que eu devo tomar cuidado ao julgar as pessoas, porque também serei julgado, conforme dizem os “livros sagrados”. Por não ser leitor assíduo desse tipo de Literatura, fiquei na mesma. Esperava algo mais prático, como aquelas colunas de horóscopo mais sofisticadas que separam as diversas esferas da existência: amor, trabalho, família.

O lado racional do horóscopo está em oferecer diretrizes para a ação de uma pessoa, visando, obviamente, seu bem-estar e sobrevivência. Assim, trata-se do primeiro antepassado da auto-ajuda. Isso nos leva ao leitor de horóscopo, identificado necessariamente como alguém inseguro, que precisa de tais orientações. Em outras palavras, alguém que duvida da própria capacidade de assumir o controle do seu destino, perdido diante de um mundo que aparece como ameaçador. Já a irracionalidade se encontra na fonte do discurso astrológico: um saber oculto, com forte dose de misticismo, e que ganha credibilidade justamente por essa base irracional. Explico: para um desesperado, se a condução racional da vida não está dando certo, sua condução a partir de princípios irracionais aparece como uma alternativa perfeitamente viável.

[Interlúdio pop: em Seinfeld, o personagem George Costanza, um fracassado por excelência, diante do colaaaapso de todos os seus projetos de vida, resolve simplesmente fazer o oposto de tudo que sua razão indica. Os resultados são hilariantes. Uma fina análise do episódio está em em Jason Holt, “The Costanza Maneuver: is it Rational for George to ‘do the opposite’?”; pp.121-138 in: W. IRWIN, Seinfeld and Philosophy – Chicago, Open Court, 2000; há em português.]

Observe a diferença entre a fonte irracional do discurso e o agir irracional: o astrólogo não sugere que se façam loucuras, quase sempre apontando uma conduta serena para a existência dos leitores; porém, a fonte desse aconselhamento permanece distante, obscura. Sua credibilidade provém não só do desejo dos que o lêem, mas de uma certa aura mística que envolve seu saber (um saber que está muito além do nosso conhecimento e do próprio conhecimento científico), seu discurso (carregado de metáforas e referências dúbias) e de sua imagem. Quiroga, astrólogo do Estado, se deixa fotografar ao lado de sua coluna diária, de olhos apertados (ou “olhar penetrante”, como queiram) e roupa preta fechada até o pescoço, em pleno estilo Paulo Coelho (o bruxo por excelência). Da mesma forma, a “vidente”, que trabalha sua imagem e que somente irá ler a sua mão em um local específico, cheirando a incenso, com luz diminuída (ela sempre atende por um nome meio cigano, meio exótico, Zoraide, Zuleika).

E aí chegamos ao ponto (sigo dialogando com Adorno). Há algo de muito semelhante entre essa relação racional-irracional proposta pelos horóscopos ou leitura de horóscopos e o processo que resultou na ascensão do nazismo na Alemanha da República de Weimar. No olho do furacão, encontra-se o alemão da época do Entre-Guerras, para quem nada parecia dar certo. Após uns quarenta anos gloriosos após a unificação, o mundo subitamente desabou na cabeça dos alemães: guerra, derrota, humilhação, revolução e guerra civil, hiperinflação. Quando parecia que as coisas iam melhorar, sobreveio a crise de 29, a Grande Depressão. Tudo dava errado. Nas palavras clássicas de Walter Benjamim (aliás, amigo de Adorno); “...porque nunca houve experiências mais desmoralizadoras que a experiência estratégica da guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes” (“Experiência e Pobreza” in Obras escolhidas. São Paulo, Brasiliense, 1994; vol.1, p115.)

Se a política tradicional e a ciência econômica, com toda suas racionalidades, não resolviam os problemas, algo de novo deveria ser experimentado. E eis que surgiu Hitler, com seu discurso tão pouco ortodoxo. Falando para as massas, Hitler dizia reconstruir o Reich (o terceiro), restaurando a grandeza do povo alemão, de raça superior. O sentimento völkisch dos alemães os diferenciava do resto da Humanidade, e bastaria afastar tudo aquilo que não era alemão – o comunismo, o judaísmo – para que a raça ariana triunfasse. O Geist (espírito) alemão era uma garantia de que tudo iria dar certo. (Lembremos de um episódio ocorrido já durante a guerra, quando os generais sugeriram que a indústria alemã passasse a copiar e produzir os tanques russos T-34, tão marcadamente superiores aos tanques alemães. A proposta foi rejeitada por Hitler, ao dizer que qualquer arma alemã era necessariamente superior às russas, por ter sido projetada por um engenheiro alemão, construída por um operário alemão e disparada por um soldado alemão: todos eles investiram um pouco do seu Geist alemão, seja no projeto, no apertar das porcas, no disparo da arma).

Hitler trazia além do discurso irracional, a imagem do enunciador místico. Lembramos dos estranhos rituais do Partido Nazista e sua simbologia rúnica; lembremos das cenas iniciais do filme de Leni Rifenstahl, Triumph des Willens, “O Triunfo da Vontade”, em que Hitler aparece como um enviado dos céus; lembremos das seitas místicas que diziam que Hitler era um medium. O resultado foi a entrega de toda uma nação a um indivíduo, partindo daí o exercício de um poder desmedido e assassino. Parafraseando Ingmar Bergman, em Ovo da Serpente: “Quem tiver o discurso e falar sobre as emoções terá todo o poder”.

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Agora posso completar a volta do parafuso. Ao lidar com pilhas de vestibulandos, encontro pessoas que estão em evidente situação de insegurança diante de um mundo que pela primeira vez parece ser ameaçador: há escolhas a serem feitas, elas dependem somente do sujeito, elas irão afetar toda sua vida. A incerteza passa a prevalecer, junto dela a insegurança, tudo que é sólido desmancha no ar. Será que todos os alunos de cursinho tornam-se, portanto, leitores de horóscopo ? Claro que não, mas cedem com uma facilidade estupenda ao canto da sereia de um discurso que trafega entre o racional e o irracional. Porque em sua vida surge o professor de cursinho, com seu comportamento muitas vezes excêntrico, fazendo coisas que as pessoas não costumam fazer, dizendo coisas que não se costuma ouvir por aí, mas ao mesmo tempo, despertando interesse sobre assuntos até então vistos com desdém, à luz de uma racionalidade explícita.

E aqui mora o perigo. Ao mesmo tempo que trafegam entre o racional e o irracional, os professores de cursinho vêem uma aura mítica criar-se ao seu redor. Pelos orkuts da vida, multiplicam-se as páginas de fofocas sobre professores, onde multidões de anônimos (sempre anônimos) constroem um discurso infinito feito de amores, ódios, lendas, intrigas, investigações sobre o passado, previsões sobre o futuro, especulações as mais diversas. Sem nunca chegar perto da verdade (tornada impossível pela própria multiplicidade de relatos ao mesmo tempo anônimos e contraditórios), essas páginas são um testemunho da mitificação dos professores, como o são as inocentes conversas sobre cursinho, de irmão mais velho com irmãos mais novos, ou até de pais para filhos, ou as breves aparições públicas do professor fora do espaço do cursinho, ou mesmo blogs de professores (tão desprezados quando não incluem um mínimo de desvendamento de suas personalidades).

Para provocar, eu diria que professores se tornam figuras míticas diante de pessoas inseguras, não é preciso muito para que passem a ser possuidores de imenso poder. Lembrem quantas vezes ao longo do ano alunos não sabiam o que fazer e simplesmente seguiram uma opinião do professor, ou mesmo fizeram aquilo que os professores queriam que eles fizessem. Em alguns instantes, os alunos de cursinho lembram a famosa frase de Goering ao Führer: “A partir de hoje, minha consciência chama-se Adolf Hitler”. Pensemos nisso e, sobretudo, pensemos que essa proposta de reflexão dá bem a medida dos riscos que corremos todos nós – no fundo, pessoas inseguras, todos, nós, sempre.

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Na foto, o Relógio Astronômico de Praga.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Cidades Invisíveis


"O atlas do Grande Khan também contém os mapas de terras prometidas visitadas na imaginação mas ainda não descobertas ou fundadas: a Nova Atlântida, Utopia, a Cidade do Sol, Oceana, Tamoé, Harmonia, New-Lanark, Icária.

Kublai perguntou para Marco:

- Você, que explora em profundidade e é capaz de interpretar os símbolos, saberia me dizer em direção a qual desses futuros nos levam os ventos propícios?

- Por esses portos eu não saberia traçar a rota nos mapas nem fixar a data da atracação. Às vezes, basta-me uma partícula que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o diálogo de dois passantes que se encontram no vaivém, para pensar que partindo dali construirei pedaço por pedaço a cidade perfeita, feita de fragmentos misturados com o resto, de instantes separados por intervalos, de sinais que alguém envia e não sabe quem capta. Se digo que a cidade para a qual tende a minha viagem é descontínua no espaço e no tempo, ora mais rala, ora mais densa, você não deve crer que pode parar de procurá-la. Pode ser que enquanto falamos ela esteja aflorando dispersa dentro dos confins do seu império; é possível encontrá-la, mas da maneira que eu disse.

O Grande Khan já estava folheando em seu atlas os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilônia, Yahoo, Butua, Brave New World.

Disse:

- É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito.

E Polo:

- O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço."

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O texto acima foi extraído do livro Cidades Invísíveis, de Ítalo Calvino (1923-1985). A figura é do quadrinista francês Moebius (1938-).

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Acender um cigarro




Na outra semana, em mais um daqueles “alegres colóquios”, fui parar ao lado de uma mesa “sex-and-the-city”, em um bar que não freqüentava fazia tempo. As mesas “sex-and-the-city” são muito comuns de uns tempos pra cá, formadas por grupos de mulheres que fumam e bebem despreocupadamente enquanto comentam em voz alta sua vida emocional e sexual – todas elas imaginando que são Carries, quando na verdade não passam de Charlottes.

Chamou minha atenção o fato de que as seis moças da mesa fumavam ao mesmo tempo (um cigarro aceso ajuda muito na ilusão de ser Carrie, assim como o diploma de jornalismo: eu estava em um bar freqüentado em peso pela ECA-USP), e pelo menos duas das moças da mesa praticavam um hábito irritante: para evitar jogar fumaça na cara das amigas (que, curiosamente, eram todas fumantes), as duas faziam um estranho contorcionismo que levava seus braços a se projetarem a distância, mantendo o cigarro longe da própria mesa e, obviamente, na MINHA cara. Da mesma forma, ao soltar a fumaça, torciam desesperadamente a boca para não incomodar as amigas fumantes, jogando a fumaça em outra direção e limitando-se a incomodar a mim, apenas um desconhecido.

E aí é que está o ponto. Em nenhum momento, sequer pensei em reclamar, pois tomei a decisão consciente de entrar em um bar que aceita fumantes. Portanto, eu sabia o que me esperava e continuarei frequentando o bar e fazendo comentários irônicos (ou mesmo maldosos) sobre pessoas que fumam na mesa ao lado, em voz baixa.

Esse episódio todo faz pensar na lei que proíbe cigarro em locais fechados. Me parece estupidamente jacobina uma lei como essas, vetando indiscriminadamente o fumo em todos locais fechados. Estou cansado de ouvir amigos fumantes falarem a respeito do prazer que o cigarro proporciona, e jamais negaria tal prazer a um amigo (tenho até cinzeiros na minha casa). O grande problema se encontra no fumo em lugares fechados de freqüência compulsória. Se o bar ou restaurante aceita fumantes, é escolha minha entrar ou não. Porém, se um local de frequência compulsória aceita fumantes, me vejo obviamente prejudicado enquanto não-fumante. Elevadores, salas de aula, transporte coletivo, cinema, exposições... nesses locais, não pode valer o argumento “não entro se não quero respirar fumaça”. Mas, sobretudo, locais de trabalho: sou obrigado a freqüentá-lo, sou obrigado a respirar fumaça alheia. Eu como meu lanche no local de trabalho e, sinceramente, se um semi-desconhecido despeja sua carga nefasta de nicotina e alcatrão, devidamente processada por pulmões francamente apodrecidos, em cima do misto quente que eu pretendia comer, automaticamente está legitimada minha reação anti-tabagista histérica.

Diante do crescimento da histeria anti-tabagista, legítima ou não, os fumantes contra-atacam. E miram justamente naquele que é o argumento mais estúpido que pode ser utilizado contra o tabaco: o argumento da saúde. Voltando ao nosso bar do fim de semana, eu jamais poderia reclamar do mal que o cigarro das Carries-de-periferia estavam fazendo aos meus pulmões, uma vez que, ao mesmo tempo, eu voluntariamente agredia um outro órgão vital, meu fígado. Claro está que eu não agredia o fígado das moças, embora elas atingissem meus pulmões, mas mesmo assim o argumento do “seu cigarro está me matando” soaria meio imbecil.

Quando penso na questão, tento deslocá-la para o lado ético. O prazer que um fumante sente com suas tragadas é diretamente proporcional ao desprazer do não-fumante diante do cheiro da fumaça. Aqui não conta o pulmão, a saúde ou aumentar e diminuir a expectativa de vida em um tempo mínimo qualquer, mas o simples desprazer, que pode incluir náuseas e sintomas físicos bem evidentes e imediatos. Portanto, o ato de acender um cigarro implica em uma escolha a ser feita: será que o meu prazer pessoal vale o desprazer que provoco nos outros ? Acender um cigarro diante de não-fumantes é o ato que responde a pergunta. Aos não-fumantes, cabe contemplar as escolhas éticas que os fumantes fazem cada vez que acendem um cigarro, e avaliar seu universo de valores a partir daí.
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(A foto foi tirada do livro de Anne Taintor, "I can't be good all the time"; a referência - pela segunda vez - a "alegres colóquios" foi tirada de... adivinhe. Dou um barril de azeite grego para esfregar no corpo para quem descobrir de onde veio)

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Por que e como diabos fui gostar de American Chopper



Para quem não conhece, a coisa toda é assim: trata-se de um programa de TV, no estilão pegajoso dos reality shows da vida e que se passa em uma oficina de construção de choppers, aquelas motonas americanas no estilo Easy Rider. Paul Senior, o grandalhão proprietário da “Orange County Choppers”, comanda o empreendimento, junto com seu habilidoso filho Paul Junior e com o eficiente mecânico Vinny. Volta e meia, Mike, o outro filho, dá as caras na oficina, mas parece que sua competência para o trabalho (e para a vida) é bem limitada.

O que acontece naquela oficina é absolutamente entediante. Eles recebem pedidos de choppers personalizadas, fazem o projeto, encomendam as peças e montam o troço todo. Sempre há preocupações com os prazos, sempre há aqueles pequenos detalhes que não dão certo, sempre há reclamações sobre trabalhar nos fins de semana, etc. Os diálogos são maçantes e repetitivos, “Eu sabia que aquela moto seria especial” ou “Onde está a solda ?” ou “Quero ver essa moto pronta até sábado!” ou ainda o vibrante “Vamos limpar essa oficina”.

Nos bons anos 70, esse tipo de moto se identificava com a contracultura, e qualquer um no volante (guidão?) de uma chopper poderia, legitimamente, se sentir um Peter Fonda ou, melhor ainda, um Dennis Hopper. Hoje elas foram incorporados pela cultura burra americana, a cultura dos carrões, dos fortões. Paul Senior, o proprietário, encarna como ninguém esse universo, com seu pescoço taurino, bíceps avantajados cobertos de tatuagens, seu SUV e seu jeito truculento em geral. Paul Senior bate as portas, grita com os funcionários, é de uma grosseria explícita. As choppers encomendadas muitas vezes são personalizadas em estilo militar, com temas como a Polícia de não-sei-onde ou o helicóptero militar Apache ou os veteranos do Vietnam.

Nos episódios da série, muitas vezes vemos Paul Senior, Paul Jr, Vinny e Mike nas suas horas vagas, que eles aproveitam para fazer coisas como ir ao boliche ou treinar a pontaria. Aliás, foi justamente em um stand de tiro que o bobão Mike descobriu sua única habilidade na vida, o tiro. (Calafrios. O bobão da turma, costumeiramente ridicularizado por pais e amigos, descobre ser habilidoso com armas de fogo. Subitamente ele pode sentir um desejo de vingança contra todos e... soa familiar ? Maiores informações em qualquer jornal norte-americano da semana.)

American Chopper significa, em princípio, tudo que qualquer pessoa de sólida formação humanista abomina. Não sei lidar com motos, suspeito do modo de vida estiloso que as pessoas inventam só porque tem motos estilosas, além de me entediar até as lágrimas com problemas de engenharia e com o trabalho mecânico em geral. Com o tempo, fui descobrindo que a minha capacidade de diálogo (ou de convívio) com pessoas de bíceps gigantescos, tatuagens, e que se divertem dirigindo carros gigantes quando não estão no volante de suas motos, é bem limitada. Muitas vezes, penso que o simples fato do indivíduo usar um boné (como todos usam em Orange County) já diz muita coisa sobre seu universo de valores. E, convenhamos, um reality show chamado American-qualquer-coisa tem forte possibilidade de ser repugnante para os espíritos, digamos, mais sensíveis.

E, no entanto, eu não consigo tirar os olhos da maldita TV quando passa American Chopper.

Depois de meses de angústia, hoje consigo vislumbrar um porque. Aquele mundo do American Chopper é um mundo essencialmente masculino, mulheres simplesmente não aparecem em cena. É também um mundo que gira em torno do trabalho, talvez o verdadeiro tema da série. Assistindo American Chopper, comecei a suspeitar que o trabalho é a única forma que os homens encontraram até hoje de construir relações entre si. Naquela oficina, os laços que unem as pessoas parecem ser muito fortes: volta e meia lá estão Paul Jr e Vinny, lado a lado, contemplando o trabalho feito ou analisando um problema prático qualquer. É assim que homens constroem suas relações, ombro a ombro. Homens nunca se olham de frente, nos olhos, pelo contrário, eles dirigem juntos o seu olhar ao mundo ao seu redor. Homens têm a estranha compulsão de querer conquistar esse mundo, ou mudá-lo através do trabalho. Às vezes, Paul Jr e Vinny contemplam o trabalho pronto, ou o problema resolvido, e não dizem nada (eles não precisam dizer nada), mas escapa um sorriso. Talvez Marx estivesse certo: o trabalho é uma das formas de realização do ser humano.

(Mulheres olham de frente, nos olhos, mulheres prescrutam a alma. Local essencialmente feminino: salão de beleza, manicure, frente a frente. Local essencialmente masculino: estádio de futebol, arquibancada, lado a lado. Queira ou não, a presença de um indivíduo do outro sexo em cada um desses ambientes sempre causa estranheza, provocando gracejos ou despertando curiosidade.)

Além disso, American Chopper traz à tona um aspecto esquecido da masculinidade: a paternidade. Pois e não é que o grandalhão monstruoso Paul Senior se preocupa com Mike ? Paul Senior xinga o filho, bate, ridiculariza... mas, volta e meia, ele inventa um trabalho para o filho problemático, por mais simples que seja. E acompanha o trabalho sem dizer palavras femininas de encorajamento, mas sim ásperas palavras masculinas de cobrança, como ele faz com todos os demais funcionários da oficina. Porém, Paul Senior não abandona o filho difícil, Paul Senior traz Mike para fazer parte da turma truculenta. Mais de uma vez, após Mike conseguir realizar um trabalho simples com muita dificuldade, o paizão dá um sorriso. É como se pensasse: agora o filhote pode sobreviver, ele está aprendendo, ele vai sobreviver.

Talvez American Chopper promova um reencontro com nossa própria masculinidade. Depois de anos sendo sensíveis, demonstrando uma preocupação autêntica com as pessoas, depois de anos sem segurar o choro e indo ao cinema para assistir o filme que ELA escolheu, redescobrimos a nossa masculinidade naquilo que pode ter de mais inspirador. Sem abrir mão da sensibilidade que aprendemos a deixar aflorar, retornamos a nós mesmos, percebemos que somos capazes de construir relações fortes com pessoas com quem trabalhamos, ou ainda, descobrimos um sentido para a existência, por exemplo, em uma paternidade engajada. No final, descobrimos que somos pessoas melhores assistindo American Chopper.

American Chopper restaura minha confiança na Humanidade. Talvez Mike por fim não se torne um serial killer.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Arquitetura e bloquinhos coloridos





Qual era seu brinquedo de construir preferido quando criança ? “Brincando de Engenheiro” ? “Blocos de Construção” ? “Blocos Xalingó” ? Ou o impagável “Brincando de Engenheiro com a Turma do Chaves” ? (sim, existe).

Há um tipo de arquitetura na cidade que não fica nada a dever aos prédios que construíamos com bloquinhos coloridos na infância. Costumo chamá-la de Arquitetura Pueril e seu estilo limita-se à junção de blocos formados por figuras geométricas simples, com cores berrantes. O grande oferta de materiais pré-fabricados bem como o desejo das grandes redes comerciais, ansiosas por padronizar suas lojas e criar uma identificação fácil com uma freguesia de gosto duvidoso, ajudam na proliferação da Arquitetura Pueril. O McDonalds é o modelo arquetípico, e se levarmos em consideração que qualquer vizinhança do McDonalds é necessariamente suja (devido ao volume absolutamente espantoso de detritos produzido pela indústria do fast-food), o resultado é a destruição de mais e mais áreas da cidade.

Repetindo-se como tragédia, a Arquitetura Pueril vai além das grandes redes, multiplicando-se por toda a cidade e tragando os espaços. Shopping Centers são pródigos nesse “estilo”, edifícios baratos de classe média (e alguns caros também), bem como os terríveis buffets infantis e pré-escolas, que desde cedo acostumam a criança ao mau gosto visual. Ainda pior, há uma modalidade de Arquitetura Pueril disfarçada de arquitetura adulta: trata-se do afamado neo-clássico paulistano. Aqui, as cores berrantes são substituídas por cores mortas, e os blocos de pré-moldados são empilhados de forma mais ou menos homogênea, visando dar um ar de elegância ou jeitão aristocrático. Trata-se, por excelência, da arquitetura nouveau-riche (tão indigente quanto a vieux-pauvre).

De onde vem tanta indigência ? Presumo que uma de suas origens seja a arquitetura de auto-estrada, made in USA, em que os estabelecimentos comerciais devem ser identificados claramente pelo que são a longa distância e em alta velocidade. Daí as formas simples e cores fortes. O triunfo do Modernismo, e seu apelo à simplicidade e superfícies lisas também tem algo a ver, certamente. O individualismo triunfante tem seu papel, uma vez que cada edifício é projetado para ser um fim em si mesmo, e que se dane o entorno.

Porém, temo que sua origem e proliferação esteja relacionada também a outra questão. Já repararam como a Arquitetura Pueril lembra as toscas maquetes de alunos de primeiro ano de arquitetura ? Na sua simplicidade atroz e na limitação da construção à superposição de volumes básicos, as semelhanças são gritantes. Sabemos que no primeiro ano de arquitetura o uso dessas formas, bem como sua manipulação, tem lá sua função, estimulando e provocando o jogo da criatividade, mas ninguém imagina que essas pequenas maquetes darão origem a edifícios reais um dia. Pois a Arquitetura Pueril ousa construí-los: repare como as construções parecem mesmo edifícios em miniatura que foram erguidos fora da escala mínima de onde nunca deveriam ter saído.

E aqui descobrimos a origem da proliferação da Arquitetura Pueril: o mau arquiteto que passa sua vida preso ao modelo estético da maquete e do bloquinho colorido, sem desconfiar que à sua volta existe algo vibrante chamado CIDADE.
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PS. Sobre a foto, trata-se de loja na avenida Aclimação. O prédio à esquerda também é pueril: um maquetão de uns 15 andares, com poucas janelas quadradas e paredes cinzas, nuas, ao qual foram encaixados alguns triângulos e losangos com função de terraço. Os postes onipresentes e a fiação elétrica aérea completam a devastação da esquina .

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Grafite novo perto do Anglo


Rua Tamandaré, entre o Anglo e a Igreja Ortodoxa Russa.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Liniers




Tira de Liniers, cartunista argentino do "La Nación".

Veja seu site: www.porliniers.com/


(para quem não sabe, "rodilla" é "joelho")

domingo, 2 de novembro de 2008

Grafite e pixação



No jornal O Estado de São Paulo de hoje há uma interessante matéria sobre grafites pintadas nos muros de São Paulo. As fotos (e a paginação) são ótimas, encontram-se no caderno Metrópole, páginas C6 e C7.

A partir do Anglo Tamandaré, temos oportunidade de conviver com alguns belos exemplos de grafite do bairro da Liberdade e, não sei se alguém reparou, mas andou rondando a porta do Anglo na semana passada ninguém menos que Titi Freak, um dos mais inspirados grafiteiros em ação hoje em dia. Com sua bolsa de sprays e braços tatuados, ele pintou um muro na rua Tamandaré, um pouco acima do Anglo, próximo ao Frans Café e à igreja ortodoxa russa. Convido todos a uma visita: trata-se de uma explosão de cores com a forma aproximada de um peixe. Enfim, mais um muro libertado do cinza.

O texto da reportagem de hoje do Estadão fala do reconhecimento desses artistas e do valor de suas obras. E o reconhecimento é internacional: na foto do blog, uma obra de osgemeos (Otávio e Gustavo Pandolfo), pintada na parede da galeria Tate Modern em Londres, onde houve uma interessante exposição de grafites e "street art" neste ano. Já exibi uma imagem de osgemeos no blog, na semana passada: uma lata de spray é o prêmio para quem advinhar qual imagem. Porém, o reconhecimento do grafite gerou ódio na turminha fascista do não-tenho-nada-a-dizer-ao-mundo-exceto-meu-nome: em outubro, vários exemplos de grafite da cidade de São Paulo começaram a ser pixados, rompendo o pacto que sempre existiu entre grafiteiros e pixadores. Transbordando de ciuminhos, os pixadores deram mais um passo na direção da marginalidade de que tanto se orgulham. O que eles ainda não perceberam é que a marginalidade levada às últimas conseqüências leva somente ao de*sa*pa*re*ci*men*to.
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Sobre a exposição da Tate: www.tate.org.uk/modern/exhibitions/streetart

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

... e a Bienal foi pixada.





Em um desses “alegres colóquios” no último fim de semana, eu fazia fáceis previsões sobre o andar vazio da Bienal: será pixado (assim mesmo, com “x”, e que se dane a norma culta). É óbvio. Hoje em dia é mais fácil fazer previsões sobre arte do que nos tempos de Stalin e do realismo socialista.

Como todo mundo, diferencio grafite de pixação. Grafite se caracteriza pela elaboração estética mais refinada (o que inclui uso de cor e imagem), diálogo com o entorno, aspecto lúdico e proposta estética minimamente ambiciosa. Já a pixação se limita quase sempre à inscrição de um nome (seja do pixador ou de seu grupo/ gangue/ coletivo/ crew), uso predominante da cor preta, alfabeto de vaga inspiração rúnica, intervenção em área de risco (alto de prédios, viadutos, espaços tradicionais de exposição fechados e vigiados). Exemplos de grafite e da pixação estão no post abaixo, depois desse texto.

A partir dessa caracterização e das imagens abaixo, a conclusão fácil é: grafite pode ser um tipo de arte, pixação é “sujeira”. Porém, o que mais me chama atenção nas imagens que selecionei, nas três imagens, não é a diferença entre as duas formas de expressão mas a pobreza da arquitetura que serve como suporte. De fato, na cidade de São Paulo há uma abundância de superfícies verticais, brancas, cinzas, insossas, praticamente pedindo para que alguém faça algo. Na cidade, há uma forte cultura do cimento, do concreto, todo chão é cimentado, toda parede exibe o concreto. Fiação elétrica aérea, multiplicação de antenas e torres de antenas, cacos de vidro e arame farpado em concertina no alto dos muros, “plantações” de postes (jamais alinhados), tudo contribui para uma paisagem urbana francamente deteriorada. Diante disso, tanto o grafite quanto a pixação (em que pesem suas diferenças) cumprem uma bela função: chamam nossa atenção para a feiúra que nos cerca.

E aí vem a Bienal com suas propostas, "inovadoras" já há cinquenta anos. Ninguém mais agüenta a arte conceitual, do tipo que costuma ser exposto nas bienais. Desde décadas que as instalações artísticas contemporâneas giram em torno da pergunta, “o que é arte?” e, francamente, ninguém mais suporta isso. Alguns artistas já deixaram isso pra traz. Fernando Botero já deixou isso para trás, Lucian Freud já deixou isso para trás, só para citar dois. Ou melhor: eles certamente continuam pensando no significado de arte, mas pelo menos não nos impingem suas perguntas. E eis que vem a Bienal nos propor nada menos que um andar vazio, para que possamos refletir sobre a ausência, a criação de sentido, blábláblá. Ainda existe espaço para esse tipo de questionamento ?

A proposta da Bienal (http://www.bienalsaopaulo.globo.com/) diz, sobre o espaço vazio do segundo andar:

É nesse território do suposto vazio que a intuição e a razão encontram solo propício para fazer emergir as potências da imaginação e da invenção. Esse é o espaço em que tudo está em um devir pleno e ativo, criando demanda e condições para a busca de outros sentidos, de novos conteúdos.

Assim não dá. Na década de 1950, Robert Rauschenberg já expunha suas telas em branco, com um projeto que não se diferia em nada de “fazer emergir as potências da imaginação etc.” Apresentar uma proposta nesse sentido a essa altura do campeonato, só pode soar como empulhação ou provocação. Não acredito que o curador seja um enganador, resta portanto a hipótese de provocação: então, que sejam bem-vindos os pixadores. Sejamos todos pixadores e vamos emporcalhar o segundo andar da Bienal. Porém, não há um só lugar nessa história toda para onde olhemos e consigamos vislumbrar um fiapo de sanidade: a única virtude da pixação é chamar atenção para a pobreza da nossa arquitetura, mas o espaço aberto para a intervenção fica justamente no Pavilhão da Bienal, um dos raros exemplos de boa arquitetura da cidade.

Uma última palavra sobre pixadores, uma vez que os grafiteiros não apareceram na Bienal, pelo menos até o momento em que escrevo. Até onde percebo, os pixadores tem como características:

- o hábito de formação de grupos,
- a contestação da ordem em nome de valores que só eles conhecem ou reconhecem como verdadeiros (convertendo-se assim em uma minoria de portadores exclusivos da verdade),
- valorização de feitos físicos que implicam em risco ou coragem,
- valorização pura e simples da ação como forma de expressão que antecipa ou substitui o pensamento ou o discurso,
- manutenção de códigos próprios de comunicação e identificação,
- reconhecimento da violência como parte integrante ou possível de suas ações.

Tudo isso aproxima esses grupos daquilo que o século passado produziu de mais sórdido, e que continua existindo até hoje. Chamemos a besta pelo nome: esse grupos exalam um nauseabundo cheiro de fascismo. Só não sentimos mais claramente seu cheiro porque o fedor da cidade é ainda maior.

(imagens)









domingo, 19 de outubro de 2008

Blog e imagem



Lagostas infláveis, nus tribais, e velhos, muitos velhos. Hoje, pra variar, Maggie Cheung.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Jeff Koons em Versalhes


Publicar material inédito é a última coisa que eu imaginava quando comecei o blog. O texto abaixo é parte de uma matéria de Isabel Brandão sobre a polêmica exposição de Jeff Koons no Palácio de Versalhes (de onde foi tirada a imagem acima).


Ainda faltava muito para o dia 10 de setembro e a ministra da cultura da França já havia recebido uma carta exigindo o cancelamento da exposição de Jeff Koons, o artista vivo mais caro do mundo, no palácio de Versalhes. O ultimato era assinado por um tal de Arnaud-Aaron Upinsky, presidente da União Nacional dos Escritores da França, uma associação que, segundo ele, já contava com 400 membros, mas ninguém até então ouvira falar. Para Upinsky, que também é autor de livros esotéricos, esta exposição na sede da monarquia absoluta francesa é, além de uma “ofensa à obra de Luís XIV”, uma “mácula no que nosso patrimônio e nossa identidade têm de mais sagrado”.

Ideologias à parte, Upinsky mal sabia que Jeff Koons não só é considerado por especialistas o mais barroco dos artistas contemporâneos, como Luís XIV é uma das suas fontes de inspiração. “Puppy” (1991) é fruto de um devaneio do artista americano de 53 anos com o Rei-Sol. “Eu me perguntei ‘pela manhã, quando ele acordasse, qual fantasia gostaria de ver realizada antes do anoitecer”, explicou às dezenas de jornalistas presentes no dia da abertura da sua primeira exposição individual na França. A resposta imaginada por Koons, que nega ser um artista kitsch, foi uma escultura de 12 metros em forma de cachorrinho, inteiramente coberta por 90000 plantas vivas.

Um trabalho semelhante à “Puppy”, “Split Rocker” (2000), metade dinossauro metade pônei, enfeita ainda mais o jardim por onde a Corte Real passeava diariamente. Para os contestadores do evento, “Split Rocker” foi dos males, o menor. Quinze das dezessete obras selecionadas foram instaladas dentro dos aposentos do rei e da rainha. Até o fim da exposição, em dezembro, os visitantes do palácio de Versalhes pagam um e, queiram ou não, levam dois.

No salão de Marte, onde vez ou outra se realizavam bailes, “Lobster” (2003), uma lagosta inflável de dois metros de altura, foi - tal qual um lustre - preso ao teto decorado por Charles Lebrun, pintor favorito de Luís XIV. A escultura de mármore do rei à moda antiga, no salão de Vênus, é ofuscada por uma outra em porcelana dourada de Michael Jackson e seu chipanzé (“Michael Jackson and Bubbles”, 1988). Mais adiante, um vaso de flores (“Large vase of flowers”, 1991) enfeita o quarto onde Maria Antonieta dormia.

A aposta dos jornais para este cômodo era bem diferente da escolha de Koons: alguma das esculturas da série (“Made in Heaven”) em que o artista reproduz o “Kama Sutra” com sua ex-mulher, a porn star (e senadora nos tempos vagos) Cicciolina, cairia como uma luva sobre a cama da rainha decapitada. Os jornais botaram ainda mais lenha na fogueira ao questionarem as motivações da escolha de Jeff Koons pela administração do palácio de Versalhes. Liguem os pontinhos: a exposição foi quase inteiramente financiada por dois dos maiores colecionadores de Koons no mundo, o americano Eli Broad e o francês François Pinault. Jean-Jacques Aillagon, o antigo ministro da cultura e atual presidente do palácio de Versalhes, já administrou a coleção de François Pinault. O sucesso de uma exposição influencia positivamente a cota de um artista no mercado da arte.

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Isabel Brandão, 24, é jornalista e estuda História da Arte na Sorbonne. Já colaborou nas revistas Piauí e L’Oeil, bem como no site http://www.artclair.com/ . E ela não está dançando só.

sábado, 11 de outubro de 2008

Nada menos que o Ser

Quinta-feira, 9 de outubro, fui surpreendido por uma equipe do SBT fazendo reportagem para um daqueles estranhos programas vespertinos. A coisa até que foi organizada, a equipe permaneceu quase toda a aula na sala tentando manter a discrição. A aula foi dada conforme o previsto e não ocorreram maiores contratempos. Porém, após o sinal, houve uma rápida entrevista, e não é que logo na primeira pergunta a moça-repórter me tasca assim, à queima-roupa, “O que é ser professor ?”

Como assim ? Trata-se de uma pergunta gigante, seriam necessárias horas de reflexão para dar uma reposta minimamente aceitável. Surpreendido, disse qualquer bobagem sobre subir no palquinho, falar coisas e ser compreendido, enfim, desfiei algumas tolices sobre aquilo que de mais evidente existe na atividade de professor. Mas a pergunta me acompanhou pelo resto do dia. Com o tempo, foi saindo uma resposta um pouco mais elaborada que tento esboçar em seguida.

Ser professor significa, em primeiro lugar, compartilhar com os alunos um lugar chamado sala de aula e lá criar nada menos do que um espaço de sociabilidade. Por espaço de sociabilidade entendo um local de troca, única forma possível de se obter um conhecimento verdadeiro. Em outras palavras, a experiência de sala de aula tem como pré-requisito a interação entre o professor (que deve ser mais do que um mero enunciador do discurso verdadeiro) e os alunos (que não devem se limitar a ouvintes passivos). A interação, todavia, se faz a partir de dois pressupostos: em primeiro lugar a existência de um indivíduo chamado “professor” que, de fato, passou por mais experiências de vida ou simplesmente leu mais livros que os alunos. Nesse sentido, o professor continua sendo o referencial na sala de aula, porém sem menosprezar a vivência do aluno: há experiências que não foram vividas pelo professor, há livros que não foram lidos. Em segundo lugar, a rejeição às fórmulas simples do “debate entre alunos”, que muitas vezes resultam em uma avalanche de achismos e na mera expressão desencontrada de obviedades.

Como proceder ? O espaço de sociabilidade começa a existir a partir do momento em que o professor se apresenta como uma personalidade (inventada ou não), ou seja, um indivíduo como os outros, dotado de dúvidas, angústias e incertezas. Isso abre espaço para um verdadeiro jogo de espelhos, uma vez que o aluno também tem os mesmos medos: entra em cena a dessacralização da figura do "mestre". Enxergar o professor como uma personalidade implica tornar possível identificação (ou rejeição) com essa figura, transformando o estudo, que deixa de ser a análise de objetos distantes e passa a ser uma análise de questões que envolvem a própria subjetividade do aluno e a sua constituição. O conteúdo das “ciências humanas” facilita essa prática ao abordar, mais cedo ou mais tarde, questões que remetem às paixões humanas.

Dessa forma, ser professor é apresentar essas questões, “levantar a bola”, aproveitando do espaço de sociabilidade criado para que as interações possíveis rendam frutos e levem a reflexão para diante. E aqui surge um aspecto decisivo do tal espaço: nos interstícios da relação professor-aluno, aquilo que foi sugerido na sala de aula é expandido. Nos encontros (fortuitos ou planejados), nos corredores, em outras atividades ou mesmo no blog, a aula prossegue, sob a forma de uma reflexão viva. Mas, sobretudo, a aula prossegue nas conversas entre os alunos, não sob a forma ao mesmo tempo desencontrada e cronometrada dos afamados “debates" de sala de aula, mas em suas vidas sociais, nos seus encontros, nas suas famílias. Nesse sentido, ser professor é ser um provocador.

A última pergunta da repórter foi, “Qual sua maior satisfação ?”. Por pouco não caí na armadilha, respondendo o óbvio: “a aprovação nos vestibulares bla bla bla”... conversa fiada, minha maior satisfação tem pouco a ver com isso. Balbuciei algo a respeito do aluno dizer “valeu” ao final do curso, com ou sem aprovação no vestibular. Porém, pensando mais no assunto, não tenho dúvida em dizer que a maior satisfação está em chegar em casa depois de uma manhã de aula, sentar na poltrona vermelha da sala e recordar o que aconteceu durante o dia. Nesse momento, fico imaginando se as pessoas estarão refletindo no que foi dito, nas coisas que aconteceram, nas bolas que foram levantadas. Fico imaginando até que ponto as pessoas mudaram, ou se sentiram melhores (ou piores) ou “mais sábias” depois da aula. Ou ainda, fico pensando até que ponto aquilo que aconteceu durante a aula ajudou cada aluno a avançar um pouquinho mais na direção do conhecimento daquilo que cada um de nós vagamente chama de “eu”. Diante dessas possibilidades, passar ou não no vestibular torna-se algo efêmero: quem não passa neste ano passa no próximo, quem não entra nesta faculdade, entra na outra; e daqui a 20 anos, tudo isso não fará tanta diferença assim. Mas se daqui a 20 anos a reflexão proposta ou a mudança despertada ainda fizer parte das pessoas, o troço todo valeu a pena. Para mim e para os alunos, pois fizemos de uma parte da vida uma experiência rica, de troca social e busca de conhecimento. O estudo para o vestibular acabou se transformando em uma mera desculpa para uma atividade que tem como horizonte o conhecimento de si mesmo.

(Vou além: se as pessoas que passam diante de nossa vida levam alguma coisa de nós e, de alguma forma, passamos a fazer parte de suas vidas - seja no jeito como elas são, ou na sua memória -, e se isso for passado ainda para outras pessoas, e depois outras, e com o passar do tempo ainda outras, acabamos por ganhar nada menos que a imortalidade. Dessa forma, o maior medo ancestral é superado, e um dia aprendemos a lidar com a morte, serenamente).

Em outras palavras, ser professor é uma forma que encontrei de levar a vida do jeito que ela deve ser vivida. A construção da personalidade que transporto para o palquinho (com tudo que tem de verdadeiro e de invenção) significa um questionamento constante sobre o meu próprio eu, principalmente porque essa construção nunca é feita a priori, mas vai surgindo ao sabor das aulas e da interação com as pessoas. Ser professor talvez seja exorcizar os medos mais íntimos.

E o que há de verdadeiro ou falso no texto acima vai do gosto do freguês.

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Na foto, Parmênides de Eléia, o primeiro a abordar a questão do Ser
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quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Sergei Eisenstein (1898-1948) e Leni Riefenstahl (1902-2003)


Nos últimos dias, falamos do totalitarismo, que tem como um de seus elementos integrantes o emprego dos meios de comunicação em massa seja para exaltar a figura do líder, seja para fazer propaganda do regime. Na primeira metade do século, duas das formas mais atuantes de comunicação em massa foram o rádio e o cinema, e tanto o regime nazista quando o stalinista fizeram uso desses meios em larga escala. Nesse contexto, destacam-se dois diretores de cinema que aliaram seu engajamento com o regime com um virtuosismo e espírito de inovação poucas vezes visto no cinema.

O russo Sergei Eisenstein nasceu de família abastada, e mesmo assim envolveu-se na revolução a partir de 1918, como soldado na Guerra Civil contra os exércitos brancos (contra-revolucionários). Em 1923 iniciou-se no teatro e rodou seu primeiro filme dois anos depois. Deve-se destacar que nos primeiros anos do regime soviético as artes tiveram um grande desenvolvimento, antes que o modelo estético stalinista passasse a dominar a produção cultural em geral. Se o socialismo era o futuro da humanidade, as artes futuristas (desde o cinema até a pintura abstrata) participavam do clima geral de renovação da sociedade com grande destaque. Foi por essa época (1925) que Eisenstein filmou sua obra prima, O Encouraçado Potemkin. O filme trata de um episódio dramático da fracassada Revolução de 1905, e apresenta inovações técnicas impressionantes, por exemplo, nos campos da edição e montagem. Seguiu-se o grandioso filme Outubro, parte das comemorações do décimo aniversário da revolução.

Após uma curta estadia nos Estados Unidos, meca da indústria cinematográfica mundial, onde não conseguiu emplacar nenhum projeto, Eisenstein retornou à União Soviética quando os rigores do stalinismo eram cada vez mais intensos. A aproximação da guerra resultou na produção de filmes anti-germânicos e nacionalistas, como Alexandre Nevski (1938) e Ivan, o terrível (1942-45, já durante a guerra). Nessas suas últimas grandes produções, a interferência do próprio Stalin resultou em diversas alterações no projeto original e na dificuldade de condução do filme de forma autônoma.

A cineasta alemã Leni Riefenstahl, por sua vez, contava com plena confiança do Partido Nazista para dirigir seus filmes. Após um início como atriz nos anos 20, Leni Riefenstahl fez alguns experimentos na direção e foi rapidamente convidada por Hitler para documentar o comício do partido em Nuremberg no ano de 1934. O resultado foi o filme O Triunfo da Vontade, que mostra claramente um dos aspectos da “estetização da política” conforme comentado em aula: o comício é plasticamente belo, coreografado e impregnado de dramaticidade, feito para impressionar a multidão que lotava o estádio. Em 1936, a cineasta alemã foi escolhida para produzir um documentário sobre as Olimpíadas daquele ano em Berlim, e o resultado foi o filme Olympia. Nos dois filmes citados, o preciosismo técnico é aliado a constantes inovações, especialmente no posicionamento das câmeras e enquadramento.

Após a guerra, Leni Riefenstahl disse desconhecer os crimes do nazismo, afirmando sua inocência diante das acusações de ter promovido o regime. Seja como for, sua carreira praticamente terminou: ninguém mais ousava se patrocinar ou mesmo se aproximar da cineasta do nazismo. Suas últimas obas foram politicamente “neutras”: nos anos 1970, fotografou tribos africanas no Sudão (de onde foi tirada a imagem acima; algumas das fotos tiradas na Àfrica trazem estranhas semelhanças com as imagens de corpos nus ou semi-nus no filme Olympia) e, mais tarde, ao completar cem anos de idade, distribuiu um documentário sobre a vida nos oceanos, seu último filme.

domingo, 5 de outubro de 2008

Passeando na imaginação

Ainda está em cartaz em São Paulo o filme com Marisa Monte sobre a velha guarda da Portela, O Mistério do Samba. Trata-se de um documentário com depoimentos dos membros mais antigos da escola de samba, que contam suas histórias e cantam seus sambas, dando origem a momentos de beleza indizível. Ao final do filme, a platéia, deliciada, não conseguiu segurar os aplausos: foi a primeira vez que essa reação não me causou constrangimento em uma sala de cinema.

O depoimento de velhos sempre provoca algum tipo de ternura, ainda mais quando sabemos que, no caso do filme, alguns deles morreram antes mesmo de ver o resultado final nas telas, casos de Argemiro Patrocínio (1923-2003) e Jair do Cavaquinho (1920-2006). O filme trata da memória: trata-se de uma grande coletânea de histórias e “causos” do passado envolvendo membros da escola, moradores de Oswaldo Cruz, subúrbio do Rio de Janeiro onde nasceu a Portela. No meio do emaranhado de relações pessoais – amorosas, familiares e de trabalho – que surge a partir dessa narrativa, vai nascendo o samba, contando as coisas simples da vida ao mesmo tempo em que desvenda estados de alma mais profundos. É assim que o filme nos “pega”, uma vez que compartilhamos de alguma forma essas experiências de vida. Quando lamentamos não ter a mesma sensibilidade dos compositores para transformar isso em arte, já é tarde; estamos irremediavelmente identificados com os “velhinhos”, não conseguimos conter o aplauso no final do filme.

A participação de Marisa Monte (que é branca, zona sul e bem falante) se faz serenamente. Em nenhum momento ela parece deslocada ou querendo roubar a cena. Não ocorre estranhamento sequer nas cenas finais, quando ela canta cercada dos membros da velha guarda na quadra da escola de samba. Nesse momento final, o tema é justamente o da continuidade, da permanência da tradição ou mesmo do surgimento de novas. Mais do que nunca, aflora a sensação de pertencimento a uma coletividade (o bairro de Oswaldo Cruz ? a Humanidade ?), através de sua expressão mais nobre: a arte.

(Como comparação, o músico norte-americano Ry Cooder não conseguiu evitar o estranhamento, em 1996, quando fez um documentário semelhante, reunindo a velha guarda da música cubana então em pleno esquecimento. O filme, Buena Vista Social Club, tem momentos constrangedores cujo auge é o concerto final, em Nova York, quando a slide guitar de Ry Cooder acompanha uma sucessão de boleros aguados.)

Assistam o filme, antes que saia de cartaz. Um trailer pode ser visto em http://www.omisteriodosamba.com.br/ , e a foto acima é de seu Argemiro, responsável por momentos verdadeiramente impagáveis.
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PS.: A direção competente é de Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda.

sábado, 4 de outubro de 2008

... and bright. Joyous and bright.


Sem comentários.
(foto por Karina Neves, em Chicago, 3/8/2008)

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Ainda o tédio


Se contei direito, Fernando Pessoa dá nada menos que 35 definições de tédio no Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Escolha a sua.
1. angústia metafísica disfarçada;
2. correspondência desperta da sonolência do vadio;
3. grande desilusão incógnita;
4. poesia surda da alma aflorando aborrecida à janela que dá para a vida;
5. pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar;
6. sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir;
7. não querer sem que se não queira, com a náusea de não querer;
8. sofrer sem sofrimento;
9. querer sem vontade;
10. pensar sem raciocínio;
11. fel de inércia;
12. cansaço de si;
13. sensação de vácuo;
14. fome sem vontade de comer;
15. insatisfação da alma íntima por não lhe termos dado uma crença;
16. desolação da criança triste que intimamente somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino;
17. a estrada sem nada de não saber sentir;
18. falta de uma mitologia;
19. perda, pela alma, de sua capacidade de se iludir;
20. falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade;
21. desolação sem lugar,
22. naufrágio de toda a alma;
23. aborrecimento do mundo;
24. mal-estar de estar vivendo;
25. cansaço de ter vivido;
26. sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas;
27. aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não;
28. mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo;
29. cansaço não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, (e) da eternidade, se a houver, (e) do nada, se é que ele é a eternidade;
30. sensação física do caos, e de que o caos é tudo;
31. prisão em liberdade frustrada numa cela infinita;
32. possessão por um demônio negativo,
33. embruxamento por coisa nenhuma;
34. isolamento de nós em nós mesmos;
35. reflexo maligno de bruxedos de um demônio das fadas.

sábado, 27 de setembro de 2008

Bolsa e tédio


Pode existir algo mais entediante do que uma quebra na Bolsa de Valores ?

Nos últimos anos (ou pelo menos até onde vai minha memória econômica), acompanhei um número expressivo de quedas na Bolsa. Quase sempre eram anunciadas de forma apocalíptica, prenunciando tempos sombrios, seja pela imprensa ou por acadêmicos subitamente trazidos à luz dos holofotes. Nesses momentos, os economistas sempre anunciam os diagnósticos mais desbaratados, o que nos leva a refletir seriamente sobre o estranho caráter da ciência econômica: a única das ciências humanas que tem sua atividade focada para a nebulosa tarefa de prever o futuro. Aliás, essa constatação acaba pondo sob suspeita o estatuto “cientifico” da disciplina, aproximando-a da astrologia ou das artes ciganas em geral. Felizmente a História já deixou para trás esse vício, não sem antes derramar muito sangue. Ao Anjo da História, um brinde.

Lembro de quebra da Bolsa de Nova York em 1987, quando o índice Dow Jones despencou cerca de 20%. Como comparação, no auge da Crise de 29, a maior baixa diária do índice foi de 12%. Em seguida, ocorreram as “mini-quebras” da Bolsa de Nova York em 1989 e 1997, seguidas do colapso após o 11 de setembro de 2001. Todas essas crises atingiram o Brasil e trouxeram um princípio de pânico econômico. Da mesma forma, as sucessivas crises dos chamados mercados emergentes, como a crise mexicana de 1994, a asiática ou tailandesa de 1997 e a russa de 1998. Além das crises externas que atingiram o Brasil, lembro dos afamados “pacotes” econômicos, que criaram sua cota de caos econômico e queda nas Bolsas locais. Rapidamente, cito os planos Cruzado (1986), Bresser (1987), Verão (1989), Collor (1990) e Collor II (1991). A isso acrescento a lembrança da iminente vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2002, que provocou nada menos que o colapso cambial, com a meteórica desvalorização do Real e os efeitos nefastos de sempre na Bolsa.

Em outras palavras: somente na minha memória, o mundo acabou em 1986, 1987, 1989, 1990, 1991, 1994, 1997 (duas vezes), 1998, 2001, 2002 e, agora, em 2008. Haja Juízo Final. Assim não há alma que agüente.

Aqui não há otimismo. Dizer que essas quebras na Bolsa são fogo de palha não quer dizer que as coisas vão bem, mas que a instabilidade é parte integrante do sistema. A quebra periódica do sistema financeiro é fundamental para que o sistema financeiro continue existindo. Além disso, após a Crise de 29, foram criados mecanismos de controle e intervenção (de matriz keynesiana) que permitem rápido combate às crises, cujos efeitos mais agudos são deixados para trás em cada vez menos tempo. Enfim, que essa reflexão não seja encarada como algum tipo de previsão, mas, sobretudo, que sirva pelo menos como uma advertência contra os profetas do apocalipse: aqueles que partem da leitura apressada dos cadernos de Economia dos jornais e ficam se arvorando ares de sabedoria ao antecipar o futuro. Um grande TPXI! para todos eles.

domingo, 21 de setembro de 2008

Ditos e Escritos

Ao final de uma das aulas da semana passada, fui procurado, como de hábito, por alunos cheios de dúvidas, angústias e incertezas. Um deles me disse ter lido um poema de Cecília Meireles que o fez lembrar de algo que pensou ao ler o blog e o obituário de Ponticelli. Estendeu-me uma cópia, que segue abaixo:

Os presentes dos mortos

Os presentes dos mortos
arrastam-se ternamente
no encalço dos vivos

Usam um silêncio diferente
pousam de um modo peculiar

Como também morreram um pouco,
têm uma feição pálida e ausente.
Comanda-os de longe esquiva estrela.

Como, porém, não morreram de todo,
aproximam-se com branduras de fantasma,
e a cada instante se detêm,
medrosos, por se encontrarem em nossa frente.

Somos tão bruscos, tão agressivos!
É tão insensível aos delicados modos de morte
a condição do áspero ser vivente!

(Cecília Meireles – Mar Absoluto)

Algo me chamou atenção nesse episódio. Primeiro, o fato de que não tenho a mínima idéia do alcance do discurso, ou seja, de como as pessoas lidam com aquilo que ouvem ou lêem. Coisas são ditas, coisas são escritas... e daí ? O que acontece com essas palavras ? Quais efeitos elas provocam ? De Górgias (séc.V a.C.): O Discurso é um senhor soberano que, com um corpo diminuto e quase imperceptível, leva a cabo ações divinas. Na verdade, ele pode tanto deter o medo como afastar a dor, provocar a alegria e intensificar a compaixão. Sem achar que meu discurso tem todo esse alcance, ainda assim me pergunto: que tipo de pensamento minhas palavras despertam ? Também me chamou atenção o fato de que sequer sei o nome do menino que me entregou o poema e que, de alguma forma, ficou tocado pela leitura do obituário de Ponticelli. Assim como não sei o seu nome, ignoro o nome de muitos dos seus colegas. Em outras palavras: enuncio um discurso que irá provocar um efeito ignorado em pessoas anônimas. Isso tem algo de assustador.

Voltando à Primeira Guerra Mundial, lembro que após o Armistício multiplicaram-se por toda a Europa os monumentos ao “soldado desconhecido”. A idéia, ao que parece, surgiu em Verdun, quando dezenas de milhares de soldados simplesmente desapareceram sob o dilúvio do fogo de artilharia, reduzidos a poeira. Sem direito a um túmulo individual, não seriam relembrados como heróis, mas foram capazes de sacrifícios tão grandes quanto os outros. Impossível não fazer alguma relação com a multidão de alunos anônimos que passam pelas salas de aula e que se envolvem na proposta do curso de História, e se dedicam e, ao final do ano, seguem para suas carreiras acadêmicas levando sabe-se lá o quê da experiência do cursinho. Aproveito a poesia de Cecília Meireles, que me foi entregue de forma tão delicada e atenciosa, e dedico-a a todos esses “Alunos Desconhecidos”.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Lazare Ponticelli (1897 - 2008)


Falecido no dia 12 de março de 2008. Segue um trecho do Obituário publicado na revista The Economist (edição de 22-28 março):

O trato da memória é algo ao mesmo tempo sólido e solene. Placas na parede são inauguradas; monumentos de pedra são construídos em praças; a cúpula dos mausoléus se ergue tijolo acima de tijolo por sobre as cidades. Mas o trato da memória é também algo tão ilusório e instável quanto a água ou a névoa. Fotografias amareladas escorregam para trás das gavetas; as vozes se desvanecem; e as últimas lembranças dos mortos deixam de existir, por sua vez, deixando apenas aquilo que Thomas Hardy chamou de “o mar engolidor do esquecimento”.

A aproximação da morte de Lazare Ponticelli causou algo como um pânico na França. Esse “último dos últimos” foi, por algum tempo, o único homem no país que lembrava da Primeira Guerra Mundial por ter nela combatido. No subúrbio parisiense de Kremlin-Bicêtre, onde vivia, havia um monumento aos mortos da guerra como em quase todas as comunidades na França. Mas, o mais importante, havia o Ponticelli que, até o seu 111º aniversário, aparecia todo ano no dia 11 de novembro, com o seu quepe achatado e casaco marrom, recurvado e com os olhos brilhantes, tendo dificuldades em lidar com os poucos passos necessários para estender seu pequeno ramo de flores na direção do monumento. Quem mais se impressionava e observava seriamente a cena eram as crianças, para quem – caso quisessem – ele contaria suas histórias.

Sucessivos presidentes da França empenharam-se em honrar Ponticelli. Era uma forma de conter todas as outras sombras que ele representava: os 8,5 milhões de trabalhadores, camponeses e pessoas comuns que, em capacetes pontudos de aço e capas folgadas, defenderam suas pátrias como soldados no Fronte Ocidental, entre 1914 e 1918. Jacques Chirac sugeriu um funeral oficial e um túmulo no Panteão, ao lado de Rousseau e Voltaire. Nicolas Sarkozy propôs uma missa solene nos Invalides. Ponticelli não queria nada disso: nada de desfile, nada de barulho, nada de algazarra. Ele estava feliz com sua importante medalha, a Legião de Honra, que ele guardava com suas outras medalhas em uma caixa de sapato. Mas ele sabia muito bem que só atraía tanta atenção por ser o último.

O que aconteceu com os outros ? Por exemplo, os carregadores de maca na Argona, que lhe disseram que não iriam sair da trincheira porque estavam com medo do fogo alemão. O homem que ele ouviu gritando na terra de ninguém, apanhado no arame farpado e com as pernas rasgadas, gritando para ser socorrido, até que Ponticelli corresse até ele com alicates e o arrastasse de volta para a trincheira. Ou o soldado alemão em quem ele tropeçou na escuridão da terra de ninguém, já ferido e aguardando ser morto, que, em silêncio ergueu seus dedos para dizer que tinha dois filhos. Ou os companheiros que o ajudaram, por ele não saber ler nem escrever, a manter uma correspondência com a sua ama de leite da infância. Ou os quatro colegas que o seguraram, após a batalha de Pal Piccolo, enquanto o médico do exército arrancava de seu pescoço um pedaço de projétil, já provocando gangrena.

A cada nova salva de artilharia, ele disse, todos esperavam o pior. E, como único consolo, os soldados se diziam um ao outro: “Se eu morrer, você irá se lembrar de mim, não vai?” Ponticelli sabia que tinha o dever de lembrar. Eles eram seus camaradas, os rapazes, uns sujeitos: rostos e não nomes. E agora que ele se foi, esses rostos perderam a última coisa que ainda os mantinha na terra (...)

The Economist tem a estranha fama de ser uma revista "sisuda". Pelo menos é com essa palavra que ela costuma ser citada pelos editoriais da Folha de São Paulo. Na verdade, trata-se de revista de humor refinado (porém britânico: quase tudo fica nas entrelinhas ou se limita a discretas ironias) e capaz de acessos emocionais como o do Obituário de Ponticelli.

Sobre o soldado francês: seu sobrenome indica uma outra nacionalidade. De fato, em 1914, o italiano Ponticelli, ainda com 16 anos, mentiu sobre a idade para se alistar na Legião Estrangeira. Ao final da guerra optou pela nacionalidade francesa.
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PS: Meu avô Giulio Dorigo (1900-1982) foi operário na construção de trincheiras no Fronte Alpino da Primeira Guerra Mundial, onde esteve sob fogo inúmeras vezes. Ao completar 18 anos, tornou-se soldado do Exército Italiano e, curiosamente, foi enviado para a retaguarda para treinamento e designado a funções administrativas, não chegando a combater de fato.

Meu tio-avô Maurice Bourgeois (1896-2002) era tenente em 1914 e participou de toda a guerra como oficial do Exército Francês, destacando-se na batalha de Verdun onde ganhou a Legion d’Honneur. Ferido duas vezes e feito prisioneiro, tonton Maurice permaneceu nas Forças Armadas chegando a ser general anos depois. Viveu até os 106 anos de idade e presidiu a Ceux de Verdun, Associação dos Ex-Combatentes de Verdun. A Associação foi extinta quando de sua morte !

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Wagner, Strauss e Stravinsky


Ainda sobre a aula de 9 de setembro: a idéia de que o sacrifício ritual (a morte que traz a vida) é uma síntese desse sentimento agonístico da belle époque, que oscila entre a valorização da morte (ilustrada no "crepúsculo" de Wagner) e da vida (ilustrada pela "aurora" de Richard Strauss), partiu de uma leitura do livro "A Sagração da Primavera", do historiador Modris Eksteins. O título do livro já antecipa sua abordagem. É dele também a aproximação entre a dança e a guerra, que expliquei como experiências dotadas de forte caráter de "presentidade".

No fin-de-siécle passado, Nietzsche (sempre ele) fez sua própria leitura da tensão morte/vida: a síntese se encontra na doença, metáfora empregada muitas vezes em sua obra como referência não só a decadência, mas a uma possibilidade de cura ou "renascer". (Lembre de outras metáforas nietzscheanas no mesmo teor: a corda estendida sobre o abismo, etc. Aliás, o título desse blog tem algo a ver com esses estranhos estados de suspensão entre uma coisa e outra). Em 1924, o escritor alemão Thomas Mann publicou um catatau de 1200 páginas chamado A Montanha Mágica, romance que incorpora e ilustra a metáfora nietzscheana de doença.

Sobre o Crepúsculo dos Deuses de Wagner.




Em alemão, Gotterdämmerung, uma das quatro partes do ciclo O Anel dos Nibelungos. O trecho usado em aula (9 de setembro) foi a "Marcha Fúnebre de Siegfried". Uma boa versão pode ser vista e ouvida em http://www.youtube.com/watch?v=20RldhK9354

O Bayreuth Festspielhaus foi construído por Wagner exclusivamente para apresentação das suas óperas, e inaugurado em 1876 para a apresentação completa do Anel dos Nibelungos (em cinco dias). Uma das características da sala é o local destinado à orquestra, um verdadeiro buraco na frente do palco. Para Wagner a idéia era não distrair a platéia da ação que se desenrolava no palco. Na prática, o resultado foi a criação de uma verdadeira "muralha de som", que se erguia dramaticamente do nada e envolvia os cantores, porém mantendo suas vozes em destaque

Nos anos 70, o Meat Loaf trouxe a idéia de "muralha de som" para o rock, com arranjos verdadeiramente wagnerianos, incluindo várias guitarras (elétricas e acústicas) tocando a mesma coisa ao mesmo tempo, ênfase nos vocais e músicas longas (de até dez minutos). Bandas contemporâneas de hard rock costumam empregar esse efeito.