terça-feira, 16 de setembro de 2008

Lazare Ponticelli (1897 - 2008)


Falecido no dia 12 de março de 2008. Segue um trecho do Obituário publicado na revista The Economist (edição de 22-28 março):

O trato da memória é algo ao mesmo tempo sólido e solene. Placas na parede são inauguradas; monumentos de pedra são construídos em praças; a cúpula dos mausoléus se ergue tijolo acima de tijolo por sobre as cidades. Mas o trato da memória é também algo tão ilusório e instável quanto a água ou a névoa. Fotografias amareladas escorregam para trás das gavetas; as vozes se desvanecem; e as últimas lembranças dos mortos deixam de existir, por sua vez, deixando apenas aquilo que Thomas Hardy chamou de “o mar engolidor do esquecimento”.

A aproximação da morte de Lazare Ponticelli causou algo como um pânico na França. Esse “último dos últimos” foi, por algum tempo, o único homem no país que lembrava da Primeira Guerra Mundial por ter nela combatido. No subúrbio parisiense de Kremlin-Bicêtre, onde vivia, havia um monumento aos mortos da guerra como em quase todas as comunidades na França. Mas, o mais importante, havia o Ponticelli que, até o seu 111º aniversário, aparecia todo ano no dia 11 de novembro, com o seu quepe achatado e casaco marrom, recurvado e com os olhos brilhantes, tendo dificuldades em lidar com os poucos passos necessários para estender seu pequeno ramo de flores na direção do monumento. Quem mais se impressionava e observava seriamente a cena eram as crianças, para quem – caso quisessem – ele contaria suas histórias.

Sucessivos presidentes da França empenharam-se em honrar Ponticelli. Era uma forma de conter todas as outras sombras que ele representava: os 8,5 milhões de trabalhadores, camponeses e pessoas comuns que, em capacetes pontudos de aço e capas folgadas, defenderam suas pátrias como soldados no Fronte Ocidental, entre 1914 e 1918. Jacques Chirac sugeriu um funeral oficial e um túmulo no Panteão, ao lado de Rousseau e Voltaire. Nicolas Sarkozy propôs uma missa solene nos Invalides. Ponticelli não queria nada disso: nada de desfile, nada de barulho, nada de algazarra. Ele estava feliz com sua importante medalha, a Legião de Honra, que ele guardava com suas outras medalhas em uma caixa de sapato. Mas ele sabia muito bem que só atraía tanta atenção por ser o último.

O que aconteceu com os outros ? Por exemplo, os carregadores de maca na Argona, que lhe disseram que não iriam sair da trincheira porque estavam com medo do fogo alemão. O homem que ele ouviu gritando na terra de ninguém, apanhado no arame farpado e com as pernas rasgadas, gritando para ser socorrido, até que Ponticelli corresse até ele com alicates e o arrastasse de volta para a trincheira. Ou o soldado alemão em quem ele tropeçou na escuridão da terra de ninguém, já ferido e aguardando ser morto, que, em silêncio ergueu seus dedos para dizer que tinha dois filhos. Ou os companheiros que o ajudaram, por ele não saber ler nem escrever, a manter uma correspondência com a sua ama de leite da infância. Ou os quatro colegas que o seguraram, após a batalha de Pal Piccolo, enquanto o médico do exército arrancava de seu pescoço um pedaço de projétil, já provocando gangrena.

A cada nova salva de artilharia, ele disse, todos esperavam o pior. E, como único consolo, os soldados se diziam um ao outro: “Se eu morrer, você irá se lembrar de mim, não vai?” Ponticelli sabia que tinha o dever de lembrar. Eles eram seus camaradas, os rapazes, uns sujeitos: rostos e não nomes. E agora que ele se foi, esses rostos perderam a última coisa que ainda os mantinha na terra (...)

The Economist tem a estranha fama de ser uma revista "sisuda". Pelo menos é com essa palavra que ela costuma ser citada pelos editoriais da Folha de São Paulo. Na verdade, trata-se de revista de humor refinado (porém britânico: quase tudo fica nas entrelinhas ou se limita a discretas ironias) e capaz de acessos emocionais como o do Obituário de Ponticelli.

Sobre o soldado francês: seu sobrenome indica uma outra nacionalidade. De fato, em 1914, o italiano Ponticelli, ainda com 16 anos, mentiu sobre a idade para se alistar na Legião Estrangeira. Ao final da guerra optou pela nacionalidade francesa.
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PS: Meu avô Giulio Dorigo (1900-1982) foi operário na construção de trincheiras no Fronte Alpino da Primeira Guerra Mundial, onde esteve sob fogo inúmeras vezes. Ao completar 18 anos, tornou-se soldado do Exército Italiano e, curiosamente, foi enviado para a retaguarda para treinamento e designado a funções administrativas, não chegando a combater de fato.

Meu tio-avô Maurice Bourgeois (1896-2002) era tenente em 1914 e participou de toda a guerra como oficial do Exército Francês, destacando-se na batalha de Verdun onde ganhou a Legion d’Honneur. Ferido duas vezes e feito prisioneiro, tonton Maurice permaneceu nas Forças Armadas chegando a ser general anos depois. Viveu até os 106 anos de idade e presidiu a Ceux de Verdun, Associação dos Ex-Combatentes de Verdun. A Associação foi extinta quando de sua morte !

23 comentários:

Sentir disse...

Inefável.

Gian disse...

é vc.

Unknown disse...

Gian... vc é lindo! obrigada por tamanha dedicação contribuindo para o nosso conhecimento e crescimento pessoal! pq a vida não é só vestibular...! obrigada Gian...!!

Steh disse...

Gian, atualmente ainda existem questões pendentes e conflituosas entre Alemanha e França? (que sejam ou não provinientes da primeira guerra)
Obrigada^^
E obrigada também pela dedicação do blog!

Gian disse...

Nada ! Nenhuma questão séria pendente. Aliás, a amizade franco-alemã é a própria essência da União Européia.

E obrigado pelas palavras meigas e carinhosas de todos.

Anônimo disse...

Gian! Quando vc faz relatos pessoais sobre a História, a aula vai além da informação, dá pra sentir um quê da realidade dos fatos! Dá vontade de aprofundar mais e mais, conectar os assuntos!
Muito boa a idéia do blog! :)
Beijo!

Pedro Barreto disse...

Achei interessantíssimo o que você disse sobre Lazare Ponticelli. Quando há alguém que se lembre do passado vivido, evita-se que alguém trate as mortes ocorridas como meras estatísticas. Haveria alguém que se importasse com o desastre que ocorreu aos Irmãos Graco se algum houvesse alguém ainda vivo daquela época? Haveria alguém que se tocasse com os genocídios que os espartanos causaram aos povos aqueus se houvesse mamães gregas chorando pela violência desmedida?
Ninguém mais se importa ou é atingido com isso: viraram história.
Essas coisas não podem se tornar história, mas História.

Natália disse...

Gian, você emociona tanto a gente nas suas aulas, que eu chorei com a leitura do obtuário....

pablo415288 disse...

O tour de Hitler por Paris na 2ª Guerra = Mike Tyson pisando no Nelson Ned?

Se sim, o que significa Tyson ter sido preso [1991], e ,enquanto cumpria sua pena, ter se convertido ao islamismo? Vai acontecer alguma coisa à Alemanha?

haroldo disse...

gian...uma coisa que nunca intendi....como os soldados na primeira guerra, conseguiam cavar aquelas enormes trincheiras sem antes serem mortos por seus inimigos?


Haroldo

Lis. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lis. disse...

Será que seu tio-avô tinha um parentesco com a aranha da Louise Bourgeois? (risos)

Gian disse...

Que eu saiba, nenhum !

Unknown disse...

Gian, parabéns pela idéia, muito legal o blog!
Falando em primeira guerra, já assistiu Glória Feita de Sangue(Paths of Glory), do Kubrick???
Sensacional o filme!!!

Anônimo disse...

é gian, será que o seu tio-avô conheceu o meu bisavô? hm... para se pensar.

o seu blog será devidamente recomendado no meu =)

haroldo disse...

gian...uma coisa que nunca intendi....como os soldados na primeira guerra, conseguiam cavar aquelas enormes trincheiras sem antes serem mortos por seus inimigos?


Haroldo

Gian disse...

Ué, não era difícil. O trabalho era quase todo feita sob o nível do solo: depois de construído o primeiro parapeito, o resto ia fácil. E à noite semopre havia oportunidade de fazer trabalhos mais complicados.

E mais: as trincheiras da linha de frente eram meio precárias mesmo. Já as linhas principais de defesa eram bem mais complexas e bem construídas, e ficavam coisa de 1 ou 2 km atrás da linha de frente. Ou seja, nunca era difícil trabalhar nelas.

Unknown disse...

tonton Maurice...hehehehe...
Uma pena o senhor não ter feito isso qdo EU tinha suas aulas....
Magnífico!!! Informação cultural via orkut... Tá valendo!!!

Unknown disse...

Ói, Gian,
me esforcei para não enviar nenhum comentário, mas não resisti. Primeiro porque também tive familiares lutando na 1ª Guerra, segundo porque esse assunto me fascina. Parabéns pela iniciativa e pelo profissional que você é.
Viva a Frase!!!

Maíra Rosin. disse...

Que lindo, anda 'historiando' fora das paredes do Anglo.
De historiadora pra historiador, obrigada pela ajuda na formação!
Má.

Gabriel Liguori disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gabriel Liguori disse...

A I Guerra parece ter um efeito mágico sobre seus combatentes: aqueles que não morreram em combate parecem ter sido presenteados com uma vida tão longa como poucas outras!

Gian disse...

Magia ou maldição ? Precisa ver se vale a pena viver uma vida tão longa com lembranças tão terríveis.