sábado, 20 de dezembro de 2008

Como ratos


Há algo de pegajoso em alguns sorrisos natalinos, sempre desconfiei de manifestações emotivas com data marcada. Não estou falando do porteiro do prédio, do entregador de jornal, do trabalhador pessimamente remunerado que se agarra a qualquer possibilidade de ganho extra como um dos iracundos de Gustav Doré se agarra ao barco que atravessa o Estige, no canto VIII da Divina Comedia. Para esses, escravos, mais uma reverência ao nhonhô branco não faz diferença, afinal, o que é uma humilhação a mais para quem vive na senzala ? (claro, eles não precisariam exagerar usando os abomináveis chapéuzinhos de Papai Noel enquanto lidam com suas tarefas do cotidiano). Mas falo, sobretudo, da outra ponta, daqueles que não precisariam ostentar simpatia natalina, daqueles que presenteiam panetones às dúzias, daqueles que, da casa-grande, exibem seus sorrisos pegajosos por aí. Con piangere e com lutto, spirito maledetto ti rimani, ch’io ti conosco, ancor sie lordo tutto.

[Adam Gopnik, que escreve instigantes textos na versão americana da revista Piauí (a New Yorker), identifica autores de blogs como pessoas que tem ódio. Disse que Robespierre, se fosse vivo, teria um blog. Dante Alighieri, que já começo citando a torto e a direito, dizia que se escreve por amor. Não fosse Beatriz, não haveria a Divina Comedia. Disso tudo eu tiro que a escrita não é indiferente, neutra: se não depositamos nela a fúria e a paixão, o máximo que conseguimos é uma redação de vestibular.]

Sigo transitando entre o amor e o ódio para falar sobre a grave arte de dar presentes. Sinto-me até inclinado a propor uma “genealogia do presente”, não fosse esse título, por si só, carregado de ambigüidade metafísica. Sob o Natal, a origem do hábito de presentear é bem conhecida. Lembremos da cena: três reis vindos de longe atravessam o deserto para encontrar o menino, não medindo esforços para lhe oferecer presentes. Disse o Venerável Beda (673-735): “Belchior era velho de setenta anos, de cabelos e barbas brancas, tendo partido de Ur, terra dos caldeus. Gaspar era moço, de vinte anos, robusto e partira de uma distante região montanhosa, perto do mar Cáspio. Baltazar era mouro, de barba cerrada e com quarenta anos, partira do Golfo Pérsico, na Arábia”. Seguindo uma estrela, rumaram para o Ocidente até chegarem à casa do menino. Após a busca, a entrega: primeiro o adoraram e, em seguida, ofereceram à sua mãe os valiosos presentes que trouxeram, ouro, incenso e mirra.

A história toda remete a singularidade da situação: aquele que foi presenteado era nada menos que o Salvador, jamais existiu ou existirá alguém como ele. O desejo de presentear era tão forte que levou à travessia de um deserto. Finalmente, seguindo a Bíblia (Mt, 2, 10; por pior que seja a fonte, não tenho outra), ao chegarem com os presentes, “os três reis alegraram-se com grande e intenso júbilo”. O ouro é uma referência à riqueza material; o incenso, diáfano e perfumado, à espiritualidade; a mirra, usada para embalsamar cadáveres, à imortalidade.

Que diferença gritante em relação às nossas trocas apressadas de fim de ano ! Ou então, aos nossos afamados “amigos-secretos”, um tipo de celebração que se limita, muitas vezes, a um jogo – divertido, por certo – , mas que já não tem mais nada a ver com o ato de presentear. Imagino os reis magos fazendo um amigo-secreto: só um deles tiraria o papelzinho com Jesus. Os outros trocariam presentes entre si e seria até bom se fizessem uma lista com o que gostariam de ganhar, para que ninguém passasse pela roubada de dar ouro e ganhar mirra.

A tradição aponta para o ato de presentear, conforme praticado pelos reis magos, como um ato sério, que gera felicidade para quem oferece. Percebemos, com a tradição, que aquilo que deveria ser exaltado com presentes é a singularidade do presenteado, o fato de que se trata de uma pessoa única que merece nossa dedicação. Atravessar um deserto só é possível se temos em mente a pessoa a ser presenteada, se ela é a estrela que conduz. Muito difícil é o ato de presentear, pois deveríamos oferecer ouro, incenso e mirra. Hoje, quase sempre, aplacamos a consciência dando ouro (ao preço de um panetone), mas deveríamos oferecer como presente verdadeiro nada menos que a dedicação espiritual e a imortalidade à pessoa presenteada. Como incenso e mirra, deveríamos fazer com que o presente fosse um pedaço de nós, que pudesse ser levado junto, sempre. E a pessoa presenteada, por sua vez, só poderia ser a pessoa amada, a quem já adorássemos antes da entrega.
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Volto aos sorrisos pegajosos, lembro os iracundos de Dante. Pelas ruas, nos shoppings lotados, no trânsito infernal, nos aglomerados de consumo, o Natal desperta raiva e ódio. Enquanto maldizemos a necessidade de ir ao shopping nesses dias movimentados (portanto maldizendo a necessidade de presentear), vamos xingando com sinceridade as pessoas que se põem em nosso caminho. Às vezes acho que presenteamos com ódio e xingamos com amor.

Uma das poucas vantagens da época (observe que não cito várias coisas verdadeiramente prazerosas das festas: hoje escrevo com raiva), é que o convívio com a multiplicidade de sorrisos pegajosos acaba nos ajudando a lidar com eles ao longo do ano. Escolados pelo Natal, deveríamos perceber mais facilmente ao longo do ano os canalhas que se escondem por trás de cada sorriso, uma vez que esses, lamento, estão por toda a parte.

Como ratos.

14 comentários:

Raphael Felice disse...

Realmente, o natal é uma das poucas datas do ano em que a tensao, os reencontros desarmoniosos e a angustia de ter que traduzir em compras aquilo que ficou apagado durante o ano acabam em reflexao sobre o tedio que é conviver. Pelo menos dessa vez, a desculpa de que "nao posso me desgastar com brigas de familia, e tenho que passar a ultima semana do ano estudando para o vestibular" me salva da rotina natalina.
Mas, realmente, é inevitavel escrever (ou pensar) com odio..

Suma disse...

Nossa Gian! Que bonito! hahahaha
Eu por ainda viver de mesada (aula!) não me sinto na obrigação de dar presentes a todos da familia, etc. mas acabo dando presentes à algumas pessoas, não por obrigação, mas pelo gosto de dar àquela pessoa algo que eu sei que ela vai gostar. Acho que o natal, idealmente, deveria ser assim. Lógico que, por conta do consumismo na nossa sociedade, acaba virando essa bagunça.

Bárbara disse...

o natal seria uma boa época para observar e instigar o nascimento de aspectos interiores que sejam fonte de crescimento. deveríamos nos dar presentes simbólicos (convenhamos... quem que estuda no anglo PRECISA de um presente material?) que alimentassem esses aspectos ao longo do ano.

mas não dá tempo. só a fila do estacionamento do shopping te rouba 40min. e um período que tinha tudo pra ser essencialmente espiritual se torna uma "máquina para aquecer comércio". Típico, numa época em que tudo que é racional/material tem mais valor do que a subjetividade.

E, no meio disso, a vontade de se enfiar no mato e fazer o próprio ritual em paz não é pequena....

Pedro Barreto disse...

Se eu vir mais um panetone, eu enlouqueço. Sim, é realmente essa sensação: dão sempre as mesmas coisas, as mesmas malditas comidas... tornou-se algo metódico e sem graça. E ainda tenho que comer essas coisas no café da manhã...
Creio que essa seja a sensação que todos têm quando se tornam mais velhos e vêem que aquele mundo maravilhoso do Natal é limitado às crianças.

Gostei de sua ironia, Gian. Se eu escrever um redação com ódio e paixão, estarei mais uma vez contigo nessa luta...

Unknown disse...

Os melhores natais eram aqueles em q o papai noel ainda era vivo......
Ai, resolveram matar o bom velhinho......
E desde então a noite de natal dá sono......
A ceia parece mais um jantar de domingo.......o peru é quase um frango assado e o chocotone é praticamente um bolo formigueiro.


Alguém ressuscita o papai noel por favor?!

Unknown disse...

Concordo que o Natal pra muitos perdeu totalmente o significado e que, sem duvida, tornou-se uma data marcada pelo consumismo adoidado!
Porém, seria muita ingenuidade pensar que é uma data na qual as pessoas se permitem conviver em paz? ignorando-se a falsidade, mas permitindo vc estar com alguem que por algum motivo vc odeia....odio esse que talvez ocorre pelo amor que se tem por tal pessoa, afinal como foi dito, eh impossivel nao transitar nessa relacao entre amor e odio...

Unknown disse...

Bom mesmo no Natal é uma macarronada com frutos do mar, heavens ! =] hahah

Só pra constar que passei por aqui!

beeijo!

Unknown disse...

Só acrescentando que não tem nada pior do que amigo-secreto com lista de pedidos (mirras podem ser mais divertidas do que ouro). Saber exatamente o que vai ganhar: "o CD X, da banda Y", afffff! Que tédio! (Mais uma definição para o tédio!) Fora que perde o sentido. Qual a graça de presentear senão a dedicação à pessoa querida, a surpresa e a felicidade gerada por ela? Prazeroso mesmo é ter uma estrela pra nos conduzir no deserto, uma Beatriz a quem escrever um cartão. E que se lasque a hipocrisia em qualquer tempo: Natal, Páscoa, aniversário, o ano todo...

Um beijo e uma jabuticaba.

Willzito disse...

Vc falou em Salvador, ele trabalha aki no predio e eh um excelente faxineiro viu!! Amigo secreto eh a famosa festa em q as pessoas dao presentes q sabem q nao sao bons pra pessoas q nao gostam, tudo isso regado a muito chopp eesfihas do Habib's. Lembro q um amigo me contou q certa feita ele deu um presente muito bonito, porem ganhou um copinho d plastico dakeles q abrem e fecham(tipo sanfona) e outra vez no 'amigo chocolate' ele deu bombons finos e ganhou tres batons(d chocolate).
Odeio o Natal, odeio pessoas q nao falam com vc o ano inteiro, mas no Natal desejam 'paz, harmonia e saude', no dia seguinte jah nao olham na sua cara d novo....bando d putos!!!
A unica coisa boa do Natal eh a gente comer ate explodir akelas delicias caloricas natalinas, assistindo na Tv a fome na Africa. Viva o espirito d porco natalino.

Unknown disse...

Fico imaginando se esse comentário realmente será lido. Dentre meus devaneios descubro que não faz muita diferença, o ódio é meu assim como o amor. Na noite de natal fiquei em casa sozinha e, sinceramente, me senti privilegiada. Eu me presentiei com sussego e sinceridade. Porém, o que me preocupa não são os sorrisos asquerosos dados durante o natal, os quais se perpetuam pelo ano seguinte. O que chama a minha atenção são os olhos vazios daqueles que já identificaram tais sorrisos e não fazem nada por eles. Tais olhos estão tão infestados de hipocrisia quanto os lábios mecânicos. Alguns olhos têm vista privilegiada, mas acreditando serem distintos dos lábios mantêm-se distantes, covardes.

Gian disse...

Leio sim, eu leio todos os comentários. Só lamento não responder todos (nesse fim de ano não estou respondendo praticamente nenhum).

Porém, o mais estranho é não saber quase nunca quem são os autores, e nunca sei se isso torna os comentários mais ou menos instigantes. (Trata-se da famosa questão da autoria; isso ainda dá um post).

Seja como for, feliz 2009 pra quem chegou até aqui.

Willzito disse...

Bom... eu tb pensei se vc lia ou nao os coments, mas a menina acima ja postou minha duvida.
Algumas pessoas tb tem blog, se vc clicar no nome delas vai abrir um blog(ou nao), aí fica mais facil vc saber quem sao os autores.
E eu sou eu... o "ditador" da sua comunidade no Orkut =)
Feliz ano novo Gian =D

Unknown disse...

Meu Deus!Com esse post vc consegue despertar a raiva dos que o leem. (Porque, no dia,calhou de vc estar escrevendo com raiva).

Será que no fundo, o que vc queria era evidenciar a descrença na humanidade, que te consumia naquele dia?
O erro seria levar seu post a sério.Para os outros dias.Para sempre.

Ainda bem que as pessoas mudam. =)

Gian disse...

Foi exatamente isso: a descrença na humanidade que me consumia naquele dia.