segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O Retorno do Ser

“Eu sou...” não se começa uma frase assim impunemente. Dizer “eu sou” traz infinitas implicações e a mais séria delas talvez seja a crença de que o Ser se define pelo próprio sujeito, quando na verdade é bem possível que aquilo que somos só seja efetivamente percebido pelo Outro. “Você é...” certamente causa muito mais preocupação – e está muito mais próximo do verdadeiro - do que um simples e surrado “eu sou”. Aliás, sempre desconfiei das pessoas que insistem em começar frases com "Eu sou...” e chega até a ser meio comum ouvir aqueles que começam frases com “sou o tipo de pessoa que....”. Essas frases costumam ser mais profissões de fé do que qualquer outra coisa – wishful thinking, alguns diriam. Ou então, pura insegurança: tenho que sair por aí dizendo o que sou, caso contrário corro o risco de ser nada.

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Conto pela milésima vez a mesma história, que envolve meu sobrinho (“quando deus não dá filhos o demônio manda sobrinhos”), então com uns 5 ou 6 anos de idade. Sua mãe e sua professora conversavam na saída da escola e eis que a tia diz: “Mas este menino tem muito boa índole !”, ao que a mãe orgulhosa respondeu, “Sim é verdade, ele tem boa índole !”. O moleque, perplexo ficou contemplando os adultos: pois e não é que sua mãe (principal enunciadora da verdade quando se tem 6 anos de idade) e a professora (mãe ersatz durante parte do dia) concordavam que ele possuía boa índole, e o moleque não fazia a mínima ideia do que isso queria dizer. Ou seja, afirmava-se o Ser do pimpolho, mas ao mesmo tempo ele era mantido na ignorância sobre seu significado, uma situação francamente perturbadora.

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O fato é que nos últimos meses, o mundo acabou acrescentando dois novos complementos ao meu Ser. A primeira delas é “Eu sou chefe”, fruto de uma evolução profissional mais ou menos normal ou previsível. Porém, certas coisas mudaram desde que “Eu sou chefe”. Amigos tratam-me diferente, as pessoas em geral tornaram-se mais atenciosas: ouço bom dia onde antes não ouvia, percebo subitamente que minhas piadas tornaram-se tremendamente engraçadas. Além disso, há uma tendência muito maior de as pessoas ouvirem o que eu falo, mesmo com o conteúdo da minha fala permanecendo o mesmo do tempo em que “Eu não era chefe”.

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A nomeação burocrática mudou a minha forma de inserção no trabalho, bem como parte da minha interação social. Querendo ou não, passei a ter nas mãos um certo poder; bem escroto, é verdade, mas ainda assim um poder. Minha fala deixa de ser descompromissada: agora tudo que digo tem efeitos de poder, que podem se realizar ou não. Por exemplo, meu mau-humor matinal, que me levava a dizer raros bons-dias, agora deve ser combatido: não posso ser um “chefe arrogante”. Ou então, quando digo, “Fulano é...” pareço estar enunciando uma sentença, pois sei que cada palavra minha vai ser interpretada, escrutinizada, torturada até que dela se extraiam todos os significados possíveis. Tenho que me policiar, ao mesmo tempo que, querendo ou não, espera-se que eu policie os outros.

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As pessoas me telefonam. Colegas passaram a me procurar, trazendo demandas que já não tem mais nada a ver com a profissão. Colegas com quem pouco conversei nos últimos anos se abrem para mim, até em questões familiares ou emocionais: a posse do poder me transforma em uma figura forte – penso no istos (ιστός) grego – mesmo que eu na verdade continue sendo um ser humano precário, inseguro e chorão.

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Da mesma forma que as pessoas dependem de mim, eu perco a minha independência. Em princípio, sempre valorizei a postura profissional de dizer o que penso, “e se não gostarem, tchau, peço demissão, vocês não me merecem”. Isso já não é mais possível. Há trabalhos em andamento, há projetos (alguns francamente empolgantes) dos quais eu quero participar, eu quero que funcionem como eu pensei. E é aqui que justifico meu poder escroto: com ele tenho a possibilidade de transformar o trabalho em algo estimulante, desafiador, rompendo com a mesmice de anos anteriores. Evito os detalhes técnicos, apenas penso na velha concepção marxista de realização do homem através do trabalho.

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O segundo novo “Eu sou...”, deixo para a próxima semana.



8 comentários:

Pappini disse...

Muito bom!!
As relações de poder em nossa sociedade são realmente detetáveis...

P.S.: A oficina de história deu certo?

Atenciosamente

JML disse...

lin-dô!!
como sempre saio satisfeito depois de ''navegar'' no seu blog~~

Gian disse...

1. "Atenciosamente" ? Porra, Pappini, vc nem bem entrou na São Francisco a já me vem com formalidades, hahahaha !

Sobre seu comentário, o erro de digitação fez pensar: "destestáveis" ou "detectáveis" ?

2. "JML" ? "Lin-dô" ? Ji Min, é vc ? Hahahahaha !

Pappini disse...

detestáveis!! Haha não sabia como acabar o comentário!!

hmp disse...

muito bom Gian,

esse jogo de interesses q rege o mundo é mesmo "escroto"

entendi agora pq você nao postava no blog faz alguns meses...

"Você é" chefe agora e deve estar sem tempo... de qualquer forma parabens, tenho certeza q fez por merecer

JML disse...

hauhauhauhauh^^
B.I.N.G.O!!
esse foi muito fácil de advinhar.. nÊ?
hehe^^

Mariana Teresa Galvão disse...

E o tema sempre volta à tona.

Porém, ao começar a ler o texto, pensei que tomaria um rumo completamente diferente. O "eu sou", poderia entrar em conflito não com as consequências do ser, em toda a sua suposta imutabilidade, mas com as do estar. Você é chefe, ou está chefe?

Acho que isso deixa o poder um pouco mais questionável, com um caráter mais frágil. Afinal, o que se é? E que se está? Se o mundo acabar, não estaremos mais nada, só teríamos sido... humanos.

E parabéns!

Gian disse...

O "estar" é uma manifestação do ser no ente. No dia que este ente chamado Gian deixar de "ser chefe", outros tomarão o seu lugar (como tantos outros entes manifestam esse Ser neste exato momento). É aqui que minha experiência singular ganha um caráter universal, e consigo escapar da triste sina de escrever posts confessionais.