segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O horror.




Durante a Guerra do Vietnã, boa parte da estratégia norte-americana foi dirigida pelo secretário de defesa Robert MacNamara, gênio da administração privada, trazido para aumentar os parâmetros de eficiência do governo norte-americano. Em meio a infinitos relatórios e busca de uma racionalização extrema, MacNamara definiu parâmetros rígidos para a realização de operações militares, bem como para sua avaliação. Em uma guerra de guerrilhas, em que “ganhos territoriais” não serviam para avaliar avanços na direção da vitória, a equipe de MacNamara definiu o conceito de body count, a partir do qual a eficiência das operações militares seria medida. Tratava-se nada menos do que a contagem rigorosa do número de inimigos mortos: quanto mais mortos, mais os Estados Unidos estariam próximos da vitória. Daí para a barbárie (ou para o surgimento dos coronéis Kurtz) foi um passo. “The horror, the horror”.

E eis que no último fim de semana fui solicitado para avaliar a prova de História do ENEM. Dificuldade da prova, abrangência do conteúdo, pertinência da questão, tempo necessário para resolução, esses foram alguns dos itens avaliados, e eu deveria dar uma nota de 1 a 5 para cada um. O objetivo era obter um banco de dados que fosse sendo criado ao longo das edições do ENEM, com o objetivo de adequar o material didático e os cursos oferecidos pelo Anglo a um determinado perfil de prova, levando-se também em consideração suas mudanças ao longo do tempo.

Porém, tive um primeiro problema: qual é a melhor nota, 1 ou 5 ? Uma rápida consulta ao burocrata de plantão me trouxe como resposta: “Considere sempre 5 como o melhor”. Ok, retornando ao trabalho, me deparo com o primeiro item a ser avaliado, o grau de dificuldade da prova. Segundo problema: o que é melhor, uma prova fácil ou uma prova difícil ?

E por aí afora, foi uma longa tarde. Conto essa história para chamar atenção para a distância que surge entre o trabalho que exige qualificação técnica (no caso, avaliar provas) e o trabalho administrativo: muitos vezes os encarregados da administração sequer compreendem a linguagem dos setores que administram, quanto mais as particularidades técnicas do trabalho realizado. A questão é infinita. Quem é melhor para administrar uma fábrica, o engenheiro ou o administrador ? E para dirigir uma escola, o professor ou o administrador ? Levo a questão ao extremo: quem é melhor para comandar o exército: o general ou o gerente ?

A questão tem algo de falacioso: já vi mais de uma escola particular sucumbir devido à espetacular falta de preparo dos professores que se tornaram seus proprietários e administradores. Muitas vezes ao técnico falta a visão de conjunto do administrador, muito embora essa virtude não seja obtida automaticamente, digamos, com um diploma de Administração de Empresas ou em um desses afamados programas de MBA.

Na verdade, a grande questão que me perturba é outra, e envolve a espetacular necessidade que certa burocracia tem de obter números, cifras, dados numéricos em geral. Toda ação precisa ser justificada, e os números oferecem uma ferramenta aparentemente ótima, pois são de fácil compreensão e manuseio. Daí o famoso sistema de metas, em que todos precisam ter metas numéricas que devem ser atingidas. A contrapartida é clara: quanto mais a quantidade (medida por números) ocupa espaços, menos importa a qualidade (de difícil medida ou, a priori, impossível de ser medida em escala numérica).

Mas há outros fetiches no mundo corporativo-gerencial-administrativo. Um dos meus preferidos é o dos gráficos. Lembro que anos atrás, ao visitar os escritórios de uma grande empresa que queria contratar temporariamente meus serviços de escriba, fui falar com um vice-diretor e, enquanto esperava em sua ante-sala, tive tempo para observar que uma das paredes estava coberta de gráficos. A legenda desses gráficos me escapava, mesmo porque eram muitos, e a única coisa que pude fixar foi seu aspecto geral: todos os gráficos apontavam para cima. Não havia nenhum exceção, nem um mínimo repique em qualquer das curvas: todas elas, números transformados em traço, eram vigorosas, sólidas, indestrutíveis no seu caminho para cima. Me senti na beira do precipício, correndo o risco de despencar de vez no mundo tenebroso do capitalismo fálico. Tentei me recompor e dando asas ao pensamento, imaginei: até onde vão essas curvas ? Para que infinito metafísico elas apontam ? Um infinito que só pode resultar na acumulação interminável de capital, ou na destruição incontornável dos recursos do planeta. No final das contas, nada pode sobreviver a uma ascensão tão vigorosa.

Quase em pânico, pretextei qualquer desculpa para a secretária e saí correndo daquele lugar de tortura mental.

4 comentários:

Alberto T. N. Incao disse...

Me faz pensar duas vezes antes de entrar no "captalismo fálico". Será que é tão errado trocar minha vida por isso? Me faz pensar se seria melhor ser um professor...
Ou será que é só influência de um professor bom?
Professores são perigosos, te influenciam demais...

nayla disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
nayla disse...

me fez pensar duas vezes no eixo de pezinho e no eixo deitadinho.
gráficso de historia sobre comportamentos e crises, esse sim é que são gráficos!

Mariana Teresa Galvão disse...

Excelente.