terça-feira, 23 de outubro de 2012

Mostra & Metas

 


Entrei com tudo na programação da Mostra Internacional de Cinema deste ano, depois de longo afastamento. O fato de logo o primeiro filme que assisti ter sido muito bom me animou a estabelecer uma meta ambiciosa: assistir 14 filmes em 14 dias de Mostra. Jamais cheguei nem perto dessa marca em outras edições.

 O tal filme que me seduziu foi Cinejornal, um documentário russo, mais precisamente, um recorte de trechos de cinejornais soviéticos da década de 1950, com direito a discursos de Khruschev e tudo mais. As imagens, em preto e branco, são belas e o texto original dos cinejornais foi suprimido, restando apenas a fala das pessoas em entrevistas, depoimentos, peças teatrais e por aí vai. A legenda, em inglês, estava incompleta, e alguns trechos de até quatro minutos foram exibidos sem nenhuma legenda, apenas com o som original em russo. Mas pouco importa, isso faz parte do charme da Mostra.

 Além da pura beleza plástica das imagens, o filme mostra aspectos do cotidiano da União Soviética da época, quando ainda havia um espantoso crescimento econômico, pouco antes do início da longa estagnação que se iniciaria com Brezhnev a partir do final dos anos 1960. Além disso, a reconstrução do pós-guerra e a ênfase de Kruschev na melhoria das condições de vida da população ajudam a alimentar um clima de autêntico otimismo, amplificado pela propaganda oficial.
 
Os Planos Quinquenais ainda eram vistos como uma ferramenta adequada para “atingir e ultrapassar” os Estados Unidos, na famosa frase de Khruschev, infelizmente não mostrada no filme. O Comunismo ainda estava no horizonte e, lá pelas tantas, um analista afirma que em mais uns 20 anos, a transição estará completa e o sistema implantado.

Nesse contexto, chama atenção a verdadeira obsessão  das imagens produzidas pelo jornalismo soviético em mostrar como os Planos estão sendo cumpridos com folga. Assim, vemos um operário recebendo um prêmio, pois graças a uma ideia sua a produção da usina siderúrgica ultrapassou as metas estabelecidas pelo Plano. Mais adiante, um repórter de rádio entrevista o maquinista de um grande comboio ferroviário que afirma, orgulhosamente, ter acrescentado dois vagões a mais do que o previsto, uma vez que sua habilidade de condutor  e o conhecimento da linha o permitiam conduzir com segurança um trem deste tamanho. Finalmente, as colheitas de trigo na Fazenda Coletiva número X, da Ucrânia, superaram todas as expectativas, graças ao empenho dos cientistas soviéticos e dos camponeses em seu trabalho conjunto na melhoria da semeadura. Em outras palavras: as metas são sempre atingidas e ultrapassadas.

Impossível não pensar no mundo corporativo e na forma como o discurso e a prática das metas generalizou-se no capitalismo triunfante. Venda de unidades, satisfação dos clientes, captação de matrículas, há sempre uma meta numérica a ser atingida, e, num dado intervalo de tempo, um gráfico deve ser produzido, com suas curvas ideais se projetando rumo ao infinito. É como se o fervor revolucionário dos Comissários do Povo agora se transferisse para uma moderna casta de engravatados, que lidam com multidões de números, estabelecendo metas, definindo estratégias e apresentando orgulhosamente a superação dessas metas nas reuniões de acionistas, que é como o Politburo todo poderoso agora é chamado.

Tanto nos Comissários do Povo quanto na casta dos engravatados, o triunfalismo entusiástico é o mesmo, bem como a alegre empolgação com a superação das metas. Também se assemelham os volteios dialéticos e a lógica tortuosa que justificam as curvas que surpreendentemente não seguem as previsões ambiciosas pré-estabelecidas. Finalmente, o furor com que as cabeças são cortadas e os bode-expiatórios são apontados: alguém falhou, mas nunca o sistema. E se na União Soviética tudo era feito em nome do Comunismo, hoje o entusiasmo todo se esgota no presente e na possibilidade imediata de realização de lucros  no sistema financeiro.

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Volto à Mostra. Meu objetivo pessoal neste ano é assistir 14 filmes em 14 dias. Prometo que me esforçarei ao máximo para não atingir a meta.

Um comentário:

jotacosteleta disse...

Da hora Gian! Mas eu ainda prefiro o capitalismo.