domingo, 19 de maio de 2013

Mais constrangedor impossível

 
A foto é constrangedora sob todos os aspectos. Um automóvel. A compra de um automóvel. Balões coloridos celebrando o ato da compra do automóvel. Um comprador distraído surpreendido diante de uma câmera e sem tempo de pensar em uma rota de fuga.
 
Não gosto de automóveis. Imagino que as gerações futuras irão rir de nós: inventamos uma civilização tecnológica na qual um indivíduo, para se deslocar, leva consigo 700 quilos de ferro, aço, plástico e vidro, e ainda por cima emite poluentes no processo. A irracionalidade  da coisa toda é escandalosa.  Automóveis são, ao mesmo tempo, desastres ambientais e urbanísticos. Necessitam de largas vias asfaltadas (isto é, de solo impermeabilizado) para circular. Estimulam a agressividade e o individualismo, no âmbito do trânsito. Se levar em conta as condições de produção de automóveis na indústria, seja fordista ou toyotista, imagino que o desastre seja também social.
 
Choro lágrimas de sangue sempre que constato que, na cidade onde vivo, sou obrigado a possuir um automóvel, devido à absoluta precariedade do transporte público (entenda-se: insuficiência dramática de linhas de metrô). Por pior que seja, sem automóvel  meu deslocamento pela cidade se tornaria ao mesmo tempo mais restrito, arriscado e  dispendioso em tempo. Sendo assim, tenho que suportar a vergonha de possuir um automóvel.
 
O surgimento de uma nova geração de automóveis, compactos, me dá um pingo de otimismo para enfrentar o apocalipse motorizado. Gosto de pensar que a posse de um mini carro possa ser considerada como um humilde manifesto  contra a cultura dos carros e carrões, das cilindradas e potências, dos SUVs e da lei do mais forte. Sendo assim, eventualmente compro carros, compactos.
 
É quando percebo um dos aspectos mais constrangedores do complexo automobilístico: a venda para o consumidor final. Trata-se do mundo pervertido e sorridente das concessionárias e seus vendedores entusiásticos. Vendem carros, contribuem para a destruição, mas sempre sorrindo e oferecendo um cafezinho a cada etapa.  Aqui, não existem relações verdadeiras, mas apenas um mundo falso de sorriso, abraços e felicitações feitas sob balões coloridos.
 
No mundo nebuloso das concessionárias, apesar dos sorrisos eternos (e congelados) não existe nenhuma alegria verdadeira. O humor não é possível. Na concessionária, ao constatar que meu veículo novo, Fiat Cinquecento, é “cinza”, procuro na tabela de cores seu nome oficial. Os técnicos de marketing da Fiat são ótimos em nomear as cores, e batizaram meu cinza de “grigio sfrenato”. Sorrio e pergunto ironicamente para o vendedor, “Mas o freio desse carro é bom mesmo ?”. Não sou compreendido, porém ele continua sorrindo.
 
Depois das infinitas e kafkianas formalidades de praxe – que incluem assinar um documento,  devidamente reconhecido em cartório, afirmando que não troquei o motor do carro usado que dei como parte do pagamento por outro – chega finalmente a hora de pegar o carro novo. O menino que me apresenta o painel de instrumentos e suas infinitas funções (das quais usarei uns 10%, se tanto), é entusiástico como todas as pessoas na concessionária. Lá pelas tantas ele me apresenta o botão “ESC Sport”, que devo acionar quando quiser diminuir o risco de capotagem. Perguntei o que aconteceria se eu o deixasse desligado, e o rapaz, sorridente e incapaz a de prestar a mínima atenção no que eu dizia, continuou concentrado, recitando seu mantra agora sobre as múltiplas funções do computador de bordo. Seguiu-se a foto constrangedora que adorna o post.
 
Finalmente, já ia saindo quando o vendedor me alcançou e disse, inclinando-se sobre a janela: “Parabéns pelo carro. Você merece !”. Aquilo foi demais para mim. Disse: “Não, eu não mereço ! Talvez eu seja uma pessoa má ! Talvez eu tenha cometido crimes, o que você sabe de mim ?”.
 
Sem saber responder, ele continuou sorrindo.