O mundo terrestre era visto como palco da luta entre
as forças do Bem e as do Mal, hordas de anjos e demônios. Disso decorria um
dos traços mentais da época: a belicosidade.
...escreveu
sobre a Idade Média o professor Hilário Franco Júnior, “esse grande
medievalista brasileiro” (como o chamou Jacques Le Goff, esse grande
medievalista francês). Utilizo essa citação para retomar o tema
do último post, sobre uma certa visão anacrônica de luta de classes, ao mesmo
tempo maniqueísta, belicosa e fora do seu tempo.
Uma das
características mais evidentes do movimento socialista mundial através da História é a sua falta de
unidade. Nas palavras do professor Bucci, “a esquerda não consegue se unir nem
para eleger síndico de prédio”. A divisão das esquerdas talvez seja fruto dessa
visão maniqueísta que, ao identificar o proletariado como uma massa
homogênea, busca desesperadamente ser o seu intérprete: dessa forma, todos os
grupos pretendem expressar a verdade única do proletariado colocando-se na vanguarda
da luta pela sua emancipação e, na prática, fragmentando a esquerda em mil pedaços.
Não seria a multiplicidade das “verdades” expressas pelos vários grupos um
sintoma da própria heterogeneidade de uma classe que, na verdade, seria múltipla ?
Volto ao argumento do post anterior: talvez uma caracterização de classe social tendo como único referencial a matriz econômica seja expressão daquele
reducionismo economicista tão característico de um marxismo ligeiro.
Além da divisão
das esquerdas, também me parece evidente, na história, aqueles diversos
momentos em que há convergência de interesses entre classes sociais. Ao invés
de quebrar a cabeça buscando encontrar a fórmula que expresse a verdade do
proletariado, não seria o caso de identificar a barbárie e reunir forças para combatê-la
? Se os socialistas e os, vá lá, liberais, tem como fundamento teórico e projeto
último a emancipação dos homens, seja enquanto indivíduos ou enquanto
coletividade, não seria o caso de assestar as baterias contra aqueles que, em
número cada vez maior, apontam para o obscurantismo ? Por exemplo, vejo com perplexidade
o crescimento da religiosidade intolerante e fanática. Esse movimento coloca em xeque a herança iluminista dentro da qual floresceu tanto o liberalismo
quanto o marxismo, ambos fundados na razão emancipada. Enquanto uns falam de
ricos contra pobres e casagrande contra senzala, os Felicianos se locupletam.
Ao mesmo tempo,
no caso brasileiro, um ideal republicano fundado na inclusão e aceitação – generoso
o suficiente para dar conta da república liberal ou da república socialista –
se vê eternamente ameaçado pelos grupelhos políticos oligárquicos, a máquina
coronelística e corrupta que destrói qualquer ambição republicana. Sim,
continuo me alinhando com aqueles que criticam a corrupção, uma vez que promove a falência
do ideal republicano. (Por volta das Manifestações de Junho de 2013, certos
grupos, estranhamente, afastaram da pauta a questão da corrupção, sob o curioso
argumento segundo o qual não se pode manifestar contra a corrupção, uma vez que
ninguém é a favor). Seja como for, só poderemos começar a pensar em uma sociedade emancipada no dia em que nos virmos
livres dos Sarneys e Calheiros.
Encerro citando Marx,
referindo-se a Malthus:
Sua maior esperança (...) é que a classe média
aumente em quantidade e o proletariado trabalhador forme uma proporção
constantemente diminuída do total da população (mesmo se ela crescer em termos
absolutos) Esta é, de fato, a tendência da sociedade burguesa. (Teoria da Mais-valia, XVII, B)
Infelizmente, Marx
não desenvolveu esse trecho final, sobre "a tendência da sociedade burguesa”.
Mas pouco importa. Cada vez mais a discussão sobre socialismo me entedia. Cada
vez que ouço coisas como “Qual o verdadeiro socialismo ?” ou “O modelo soviético
foi verdadeiramente socialista” ?, sinto-me como algum membro da família Buendía.
Provavelmente como Rebeca, arrastando por aí um saco de ossos.