segunda-feira, 23 de março de 2009

Sils-Maria blues



Sempre me intrigou porque as pessoas adoram citar Nietzsche. Talvez porque seja aparentemente fácil, seus livros trazem páginas e páginas de aforismos em frases rápidas e bem humoradas. Veja, por exemplo, o capítulo quarto de Além do Bem e do Mal – agora em edição de bolso, na banca mais próxima de sua casa – contendo nada menos que 122 frases supimpas, que abrilhantam qualquer festa, impressionam em qualquer colóquio. Claro, tal “facilidade” de citação, bem como a linguagem carregada de metáforas usada pelo bigodudo filósofo acabam por desviar a atenção de um pensamento vibrante e nem sempre fácil de acompanhar.

Porém, vejo dois outros fatores que levaram Nietzsche a se tornar um filósofo pop. Em primeiro lugar, aquela estranha tendência que as pessoas têm de identificar genialidade com loucura. A foto mais famosa de Einstein mostra-o pondo a língua de fora, em gesto bem pouco aceitável para um velhinho de cabelos brancos. Em “The Big Bang Theory”, o comportamento das pessoas geniais é no mínimo exótico, e todos rimos com as esquisitices e pouco apego às convenções demonstrado por Sheldon, Leonard et caterva. É como se o exotismo fosse sinal externo da genialidade, e não poucas pessoas assumem comportamentos bizarros querendo demonstrar uma pretensa sabedoria. Oras, Nietzsche teve problemas mentais sérios, e muitos dos seus textos sugerem um equilíbrio mental precário. Os capítulos de um de seus últimos livros, Ecce Homo, tem títulos bem pouco normais: “Por que sou tão inteligente”, “Por que escrevo tão bons livros”.

Em História da Loucura, o francês Michel Foucault (leitor atento de Nietzsche) sugeriu que para muitas pessoas a experiência da loucura é vista como possibilidade de entrar em contato com um conhecimento que escapa ao racional. Na des-razão se esconderia um saber oculto e, ao mesmo tempo que rimos do louco, sabemos que ele é capaz de enunciar as verdades mais claras. Citando episódio célebre: em 1807, na fuga de Lisboa, a rainha de Portugal, demente, não parava de perguntar: “Mas por que corremos tanto ? O povo vai pensar que estamos a fugir !”

Em segundo lugar, Nietzsche é alemão. Por aqui, a língua é ignorada pela maioria, e conhecê-la parece ser um feito grandioso. A esquisitice das palavras e os sons guturais, bem como o acúmulo de consoantes rudes que mal usamos em português (K e W, principalmente) e a escassez de vogais; tudo faz com que a língua pareça ter uma complexidade infinita. Veja a palavra “Nietzsche”, por exemplo, com essa magnífica sucessão de T, Z, S, C e H. Um nome quase tão complexo quanto Wittgenstein, mas muito mais fácil de citar: basta dizer “nitx” e pronto. Em São Paulo, até dizemos “nitxi” (italianado, “nicci”; no Sul os gaúchos dizem “ni-tche”).

Digo isso para falar de um conceito presente em Nietzsche e que costuma ser citado a torto e à direito, nem sempre com a compreensão devida. Trata-se do Eterno Retorno. O enunciado é aparentemente simples: como no budismo, a morte não é o encerramento da vida e, ao contrário do cristianismo, a morte não é a abertura para a vida eterna. O que acontece é que renascemos para uma nova existência finita, que ao se encerrar começa de novo e assim em um ciclo eterno. A vida não é linear, mas circular, ou melhor, em espiral: seguimos em frente retornando sempre ao mesmo ponto, e a vida dentro da qual renascemos é a mesma que acabamos de deixar.

A abertura para o misticismo é evidente, bem como a possibilidade de enveredar pela discussão falaciosa acerca de “destino”. Porém, o que deve ser ressaltado é o sentido ético do Eterno Retorno: nossas escolhas devem ser muito bem pensadas porque serão repetidas, nossa vida deve ser bem vivida porque voltará a ocorrer. Independente de existir ou não um Eterno Retorno, e na impossibilidade mesmo de prová-lo, resta a alternativa de apenas ter “fé” nessa idéia, de acreditar pura e simplesmente no Eterno Retorno. A justificativa ? Acreditar no Eterno Retorno significa dar à vida um sentido imediato, independente de grandes saberes ocultos (ou religiosos) ou justificativas metafísicas mais complexas, e só isso já basta para que passemos a acreditar na sua existência. Ou, “na existência” pura e simples.

O ponto é que uma idéia aparentemente carregada de misticismo e espiritualidade nem sempre deve ser tratada como tal, melhor seria se a enxergássemos por outro ângulo. E aqui chego onde queria. Muitas vezes tomamos o discurso religioso como uma balela sem fim (ainda mais nesses tempos em que a Igreja Católica se dedica a causas vibrantes como excomunhões e condenação ao uso de preservativos), porém há algumas coisas que não deveríamos simplesmente ignorar. O professor Luis Felipe Pondé, que escreve na Folha de São Paulo às segundas-feiras, nos ajuda a pensar a Igreja ou a religião de uma forma diferente: costumo discordar de cada vírgula que escreve, mas não consigo deixar de lê-lo. E tenho vontade de rasgar o jornal e fazê-lo engolir cada pedacinho, cada vez que ele perturba minhas convicções iluministas. Porém, convenhamos, não se pode esperar nada melhor de um texto.

Na Idade Média, as heresias pululavam. Uma das minhas preferidas é aquela que considerava a dualidade do universo conforme expresso na oposição entre o Bem e o Mal. O homem, ser inferior, era capaz tanto de um quanto de outro e, diante da finitude do mundo, todo o Bem e todo Mal de que o ser humano era capaz na terra era limitado. É como se houvesse um “estoque” finito de Bem e Mal sobre a terra, esperando para ser realizado. Para maior glória do senhor, esses hereges decidiram esvaziar rapidamente o estoque do Mal terreno, cometendo todos os atos de maldade possíveis e imagináveis no mais breve tempo possível. Dessa forma, o Bem triunfaria na terra, “e as previsões do Senhor pelos seus profetas se realizarão”.

Na prática, o resultado era invadir castelos, matar senhores e tomar a terra. Sabemos que as heresias acabaram por se tornar a expressão da revolta social na Idade Média. Porém, brinco com a idéia de estoques limitados de Bem e de Mal na terra. Não seria a crença nesse princípio o fundamento de uma ética ainda possível ? Pois se eu considerar que meu estoque pessoal de bondade e maldade são finitos, passarei a pensar quase obsessivamente no momento da virada: quando um deles se extinguiria, e eu passaria a viver na plenitude do outro. Incorrigivelmente otimista, penso na extinção do Mal, no dia em que me transformarei senão em bondade plena, mas pelo menos em uma pessoa melhor. E por descartar a inútil e falaciosa discussão acerca do “destino”, sei que tenho condições de agir já, para que essa virada deixe de ser um futuro acaso e passe a ser realidade imediatamente. Dessa forma, penso no Mal de que já fui capaz em minha vida, voluntariamente ou não, e imagino que seu estoque já tenha de fato acabado.

É quando um arrepio atravessa a espinha: mas e se foi o Bem que se extinguiu em mim desde há muito ? E se todo esse Mal que já fiz seja apenas o que me resta daqui para frente ?



16 comentários:

Unknown disse...

confesso que nao li viu!
mas to na aula e resolvi dar o ar da graça!!!!

beijo gian!

Manuel Lira disse...

Acredito que as pessoas citam Nietzsche pra sancionar psicologicamente constrangimentos de diferenciação intelectual.

Emy disse...

Isso tudo parece meio Auto da Barca do Inferno...diabo x anjo.

ps: a Hello Nietsche eh uma exatoide?

Sentir disse...

Não tem como não ler uma linha e não querer chegar até o final.

Peguei o " deslocamento" emprestado. Vem ver!

ma.memps disse...

Não tem como não ler uma linha e não querer chegar até o final!!!!! [2]

Sentir disse...

De bandeja essa! Ok, a gente só tava no eufemismo da farsa.

Unknown disse...

Gian,

Já que mencionou o Pondé, vai aí uma dica.
Não sei se você sabe, mas o Pondé costuma das aulas no CEU (www.ceu.org.br). Um amigo fez um curso com ele e achou muito bom. Vale à pena olhar de vez em quando, para ver se o tema te interessa. É só. Um abraço.

Danilo (sala 4)

Gian disse...

"constrangimentos de diferenciação intelectual", "o eufemismo da farsa"... no mínimo assunto pra mais uns dois posts.

E obrigado pela sugestão dos cursos do Pondé. Jamais frequentarei, pois terei vontade de esganá-lo. Mas continuarei leitor assíduo de seus textos.

Anônimo disse...

Realmente não tem como começar a ler e não querer chegar ao fim... Gian, formidável o seu texto..assim como são suas aulas!

Pierri disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

A grande qualidade de Nietzche, ao meu ver, é conseguir tratar assuntos complexos de uma forma simples e descontraída. E mesmo assim, ele é mal lido. Talvez esse seja um dos motivos dele ser considerado um filósofo pop. Um outro motivo, talvez, seja o fato de ele ser a versão otimista do Schopenhauer (é assim que se escreve?), que ao meu ver é o verdadeiro gênio.

Gian disse...

Não concordo. Não acho nosso bigodudo filósofo um cara lá muito descontraído, acho que há algo prestes a explodir por trás de cada gracejo seu. Também não vejo muito otimismo, ele parece querer destruir tudo que ele despreza à sua volta, e que não é pouca coisa. Se quiser, fale-me mais sobre otimismo em Nietzsche.

Já sobre Schopenhauer, confesso preciso tomar vergonha na cara e ler seus textos com mais seriedade.

P.D. disse...

A loucura é um tema riquíssimo para se discutir e de fato é vista de maneira mística, um belo exemplo seria o medo sentido por muitos de visitar um psicólogo que poderia considera-los loucos varridos.
Contudo a discussão da loucura é muito mais profunda do que o medo de uma simples consulta pois implica em uma discussão relacionada a autenticidade tema profundamente ligado ao eterno retorno assim como a Nietzsche, afinal o louco não é aquele que duvida de sí, mas aquele que confia de tal maneira que esta preparado para desafiar a própria lógica,a realidade ou qualquer outra barreira mental que possamos nos impor, talvez seja exatamente por isso que a autenticidade é um assunto tão importante para o nosso "bigodudo filósofo", pois este em distonia com a realidade por ele vivida( seja por suas dores de cabeça,distúrbios ou qualquer outra patologia)interpretou esta de maneira única e ímpar, demostrando a coragem em parte só atribuída aos loucos,implicando muitas vezes em um isolamento social.
Porém ao fazermos uma perspectiva das grandes idéias vemos que a loucura esta profundamente ligada ao desenvolvimento humano, Sócrates,Galileu,Copérnico,Newton,Eistein, Nietzsche e outros tantos.De forma que a ligação entre loucura e a genialidade não é tão distante,mesmo assim concordo com Foucault quando se diz que a des razão pode se esconder um saber oculto,oculto de não revelado e não relacionado ao ocultismo, pois ela representa uma nova interpretação que desafia a razão atual.
Portanto eu diria que há um fascinio em relação à loucura quando externa a nós,porém um medo extremo quando interno decorrente do isolamento causado pela insanidade.
Eu portanto acredito na loucura, como forma última de expressão da individualidade,muitas vezes marginalizada pelo medo sentido de ser louco ,de estar preso a sua realidade de tal forma que não nos resta escolha a não ser enfrentarmos nossos próprios demônios e aceita-los, nossa reserva infinita de mal e bem.
Acredito que a compreensão plena de Nietzsche só pode ser feita mediante uma compreensão da própria loucura de forma que suas frases são utilizadas em grande parte dos casos por sua real coragem insana que desafia a própria realidade cientificista na medida em que não reconhece o conceito de realidade como verossímil, o que nos causa desconforto e o não entendimento pleno do autor, não sendo este bem entendido pela maioria, possivelmente até eu não o compreendo tão bem.

Unknown disse...

Então, muito dos assuntos que Nietzsche tratou já estavam presentes na obra de Shopenhauer. Apesar do Nietzsche ter conseguido desenvolver uma filosofia própria, ele presta homenagem ao seu mestre por algumas vezes. No entanto, ele critica o pessimismo do nosso amigo Shop (é um saco escrever o nome dele). O eterno retorno (na minha opinião que, definitivamente, não é de especialista) é um exemplo disso. Mas, creio que o maior exemplo do "otimismo" de Nietzsche seja a crítica a vontade culpada (ressentimento) de shop, e a substituição pela vontade alegre, em que prega que o homem precisa recuperar seus instintos primordiais. Obviamente, o otimismo dele não é do tipo "Nossa, como a vida é legal". Schops adota a máxima budista que diz "a vida é um sofrimento, Nietzche rebate e diz "a vida é um sofrimento, para quem é fraco". Além disso, em zaratrustra, Nietzche diz que os fracassos são obstáculos que aparecem na nossa vida e que nos ajudam a crescer, isso é um tanto otimista, não?

Unknown disse...

Essa idéia de trazer pra vida um sentido imediato me parece altamente convidativa mas é inevitável pensar q se vivêssemos a vida de tal forma a aprovar atos para q eles fossem dignos de se repetir, estaríamos submetendo todo o presente a um futuro incerto e q cm foi dito impossível de ser provado. Aí, o encantamento com a idéia se perde diante do possível questionamento da veracidade desse caráter imediatista...
Na procura de mais uma justificativa para a crença no Eterno retorno só consigo pensar no prazer (ou terror) q teríamos de reviver sensações.
Acredito q os sentimentos são parcialmente esquecidos. Conhecemos a tristeza a felicidade, o amor, o ódio, o bem e o mal, somos até capazes de imaginá-los e identificá-los, porém eles só são plenos e completos em nós no momento em q passamos por estas sensações..... acho q viver o q já foi vivido é uma forma de reafirmar o ser vivente, a existência e de brinde a nossa humanidade.

Gian disse...

A melhor parte do texto de Pedro (aliás, quem diabos é Pedro ? Já que falamos de Foucault, poderíamos aproveitar o embalo para abordar a questão da autoria) foi quando ele disse, “eu portanto acredito na loucura” (Já Daniele disse: "Viver o que já foi vivido é uma forma de reafirmar o ser vivente..."). Ainda sobre a loucura e saindo do registro filosófico para o literário, faço questão de lembrar as famosas palavras que Fernando Pessoa pôs na boca de Dom Sebastião, em Mensagem:

“Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem mais que besta sadia,
Cadáver adiado que procria ?”

Quanto ao otimismo de Nietzsche, certamente ele existe: caso nosso mal-humorado eremita de Sils-maria não fosse ao seu modo otimista, ele não mandaria Zaratustra descer da montanha trazendo a “boa nova”, ele não se apressaria em informar a todos da morte de deus. De fato, se Nietzsche não fosse tão otimista, ele não se daria ao trabalho de escrever “tão bons livros”.

E Nietzsche continua mais pop do que nunca: este post quase bateu o recorde de comentários.