quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Em princípio, tenho princípios


Gostamos de ver. Temos prazer em assistir. Platão, do seu jeito, já observou isso no livro V de A República, dizendo que todas as pessoas gostam de ver os espetáculos, os coros e as festas dionisíacas. Se forem deixadas em paz, as pessoas passarão toda a vida assistindo e, cá entre nos, na sua passagem mais famosa, Platão nos aponta para os pobres coitados no fundo da caverna, acorrentados mas incapazes de reagir, uma vez que estão entretidos com as sombras que passeiam pela parede.

De onde vem esse estranho encanto ? De onde vem esse sentimento agradável que sentimos, por exemplo, quando se apagam as luzes do cinema ? Mas não se trata apenas de ver, gostamos também de ouvir histórias. Penso no prazer que temos quando sentamos com os amigos, em um alegre colóquio, e nos preparamos para ouvir uma historia bem contada. (Nessas horas, às vezes até nos ajeitamos na cadeira para – estranho – ouvir melhor). Talvez gostemos de ver e ouvir porque temos o hábito de sempre nos situar dentro da historia, ou seja, de nos projetar no lugar dos protagonistas, avaliando nossas possíveis reações e comparando-as com as ações dos personagens de uma narrativa que se desenrola diante de nos. Assim, toda história nos coloca diante de um grande espelho.

[Interlúdio. No meu cotidiano, cruzo com isso o tempo todo, ganho meu pão enunciando discursos para audiências relativamente grandes, com graus de interesse diversos. Periodicamente, para ilustrar o que digo, conto uma historia pessoal. É quando ocorre a mágica: o interesse é redobrado, o silêncio torna-se maior do que o de costume. As canetas são largadas e todos olhares se erguem dos cadernos e dirigem-se aos meus olhos. O interesse é maior e as reações são mais autênticas quando a história se aproxima da vivência dos que me ouvem, ou seja, quando falo de minha experiência de vida escolar, familiar ou de vestibular.]

Há certos tipos de histórias que me encantam. Pouco comuns, são histórias – reais – cujo enredo de alguma forma me fascina. Por exemplo, aquelas histórias envolvendo pessoas que optam por permanecer totalmente passivas diante da vida. Não estou pensando em pessoas miseráveis, sem oportunidades, cujo nada fazer é sobretudo uma imposição, mas sim daquelas pessoas que têm todas as oportunidades na vida, seja no estudo ou no trabalho, mas que acabam optando por não fazer nada, absolutamente nada. Recentemente ouvi a história de um jovem que conheci anos atrás. Me contaram que ele parou de estudar, sequer fez cursinho, e mais tarde abandonou um curso técnico pela metade. Hoje, homem feito, não faz nada. Mora com a mãe e todos os dias acorda pela manha sem ter absolutamente nenhuma obrigação. Em seguida, sai de casa e vai arrumar algo para fazer, visitar um amigo no trabalho, lavar um carro, assistir futebol amador. Às vezes, pede 10 reais emprestado para alguém.

Impossível não lembrar do Bartleby, de Herman Melville, o homem que decidiu dizer não. Pois esses adoráveis ociosos levam a negação às últimas conseqüências. São, muitas vezes, tragédias familiares (“Aquele seu primo ? É um vagabundo”), mas eles quase sempre se tornam pessoas de boa índole, jamais mal-humoradas. Afinal, se não há trabalho nem obrigações financeiras, que motivo resta para irritação ?

Existe, todavia, um outro tipo de história que me fascina e talvez isso seja francamente perturbador. Refiro-me àquelas pessoas, quase sempre homens, quase sempre profissionais corretos e ao mesmo tempo pais dedicados e maridos atenciosos, que, ao final da vida, descobre-se serem chefes de duas famílias. Não são pessoas vulgares, daquelas que mantém uma amante ou um caso permanente, mas sim duas famílias, estruturadas e organizadas como tal.

Imagino o grau infinito de tensão que esses bígamos vivem, tentando articular compromissos, natais, aniversários, presentes e datas comemorativas. Obrigações escolares junto aos filhos, festas de empresa, além do convívio com sogras em dobro, parentes em dobro, isso para não falar de como justificar ou ocultar essa história dos próprios pais e irmãos. Esses bígamos são pessoas que criam a sua própria moral - além do bem e do mal - e vivem em função do segredo, de uma ética na qual a mentira se justifica. Contrariam os costumes, para não falar da lei. Claro, novamente estamos falando de uma tragédia familiar. O que diriam os filhos desses bígamos após descobrirem a verdade ? E suas mulheres ?

Tanto no caso dos ociosos quanto dos bigamos, não considero seriamente suas opções. Em princípio, tenho um punhado de princípios, seja no que se refere ao trabalho ou ao universo afetivo. Mas de alguma forma os invejo, não pelos seus atos em si, mas pelo que neles existe de inconformismo, de revolta surda diante de uma vida cujo roteiro já está previamente estabelecido. São pessoas que tem coragem de dizer não e de criar seus próprios valores. E aqui encontro mais um fator que me explica porque gostamos tanto de ouvir histórias: porque elas nos colocam em contato com vontades perturbadoras que talvez jamais sejam realizadas.

5 comentários:

David Spira disse...

"(...)a paixão dos suicidas que se matam sem explicação."

Sentir disse...

já eu não tenho princípio algum...não sou nem ociosa nem faço parte dos bigamos...

Unknown disse...

gian , fui seu aluno , estou na fea atualmente.

acabei de ler bartleby , oque me causou uma inquietacao com relacao ao
tedio e o ACHO MELHOR NAO . e no tedio tinha uma vaga lembranca sobre algo de fernando pessoa e seu blog .
foi uma conhecidencia feliz , de ver que existem blogs bem escritos.
que traduzem pensamentos sem perde-los em elocubracoes

Kemil Raje Jarude disse...

Será que não ser passivo significa ser ativo? E quando ativo será que o é de forma egoísta, em prol somente do próximo ou uma tentativa de equilíbrio entre os dois?
Prestar atenção às histórias dos professores é um puro sinal da curiosidade humana. Sabe-se pouco sobre a vida deles. Eles acabam idealizados. As histórias parecem torná-los um pouco mais humanos, professores.

Giovanni disse...

Às vezes eu questiono a tendência de algumas pessoas (minha, também, em certos aspectos) de romantizar certos comportamentos; no caso, a bigamia e o ócio. Sim, creio que em ambos há certo incômodo, certa revolta com a sociedade em que vivem, e suas ações são tentativas de lutar contra as convenções comunmente aceitas. Mas também acredito que tal sentimento deve ser, de alguma forma, canalizado para o bem (será que é possível falar de 'bem' no mundo em que vivemos?), para influenciar positivamente sociedade em que vivemos, ou pelo menos, as pessoas que estão ao nosso redor. Diferentemente do que fazem bígamos ou ociosos.