domingo, 13 de dezembro de 2009

Quase auto-ajuda


Muitos perceberam a semelhança que existe, na língua inglesa, entre as palavras history/story (“história”) e storey/story (“andar” de um edifício). Os dicionários etimológicos nos informam que tais palavras têm a mesma origem no latim historia, e é uma referência, provavelmente, ao fato de que os edifícios mais altos na Idade Média européia tinham relatos pintados em sua fachada. Tais edifícios eram igrejas e os relatos, bíblicos. Acho essa explicação meio duvidosa. Se buscarmos as origens mais remotas dessas palavras, hipóteses bem mais instigantes poderão ser examinadas.

A palavra latina historia vem do grego historia (ϊστορία), uma daquelas palavras helênicas que têm vários significados: pesquisa, conhecimento, narrativa. A partir daí: historen (ίστορεω, indagar, pesquisar) e histor (ϊστωρ, homem sábio, juiz). Aprofundando um pouco mais, historia foi formada pelos gregos a partir da junção da palavra istos (ιστός) com o verbo roi (ροή, fluir). E aí vem a parte poética da coisa toda: istos literalmente significa bastão ou mastro, e a palavra é utilizada também como referência a uma determinada peça que serve para sustentar um tear. Por causa disso, um tecido trançado ou uma rede também era chamado pelos gregos de istos. Assim, história significa literalmente “a trama que flui”.

Istos, como sufixo, surge em uma infinidade de palavras gregas, sempre no sentido de firmeza, permanência, ponto fixo; remetendo sempre ao sentido original de bastão ou mastro. Assim, istemi (ϊστεμι, istos + emi, que é uma variação de “ego”, eu), significando: erguer, permanecer, ficar, instaurar, fazer surigir. Aliás, istemi deu origem ao alemão stehen e ao inglês stay. E já que estou falando em inglês, volto à questão que provocou essa reflexão: as semelhanças entre history/story e storey/story. Acredito que essa semelhança aponta para o sentido original da palavra história, que vai muito além da mera referência a paredes pintadas em igrejas medievais. De fato, acredito que quando escrevemos a história ou mesmo quando contamos uma história, o nosso objetivo é “por em pé” o passado, ou seja, ordenar nossa memória para que ela possa permanecer. É dessa forma que fazemos surgir nada menos que nossa identidade. Uma vez que o substrato da memória é o passado, acabamos por construir nossa memória (nossa história pessoal) como um edifício, com diversos andares, bem ordenados um depois do outro. A contagem numérica dos anos é uma forma extremamente prática de ordenar o passado e erguer o nosso eu, o nosso ego. Daí sim, a trama de nossa existência pode fluir à vontade, como se fosse um navio impelido pela vela solidamente presa ao mastro de nossa memória.

Recorro à essa avalanche erudita para refletir sobre o presente. É Natal, aproxima-se o ano novo. Impossível fugir das avaliações de fim de ano, da seleção de memórias que irão identificar a ano de 2009 como um dos andares de nossa existência. Esta é a época do ano em que nos dedicamos a transformar nossa vivência em memória, encontrando um lugar para o que já passou e refletindo sobre aquilo que vai continuar fazendo parte de nosso presente em 2010. Há aspectos francamente prosaicos nesse processo, pois lembraremos do ano que passou não só pelas pessoas que conhecemos ou pelos espaço que freqüentamos ou visitamos, mas também pelo universo pop no qual estamos mergulhados (e sua infinidade de músicas, filmes, vídeos); e é curioso como nem sempre temos controle sobre a construção dessa memória Como fazer com que “I gotta feeling” do Black Eyed Peas não seja a música do ano, aquela que irá nos transportar de volta para 2009 em qualquer momento do futuro que estejamos ? Ou então, como evitar identificações óbvias, do tipo “2008, ano do cursinho” e bizarras, como “2006, ano que tive hemorróidas” ?

Ainda assim, sugiro que nos dediquemos a essa tarefa de avaliação de fim de ano. Com uma ressalva: por um lado podemos ter um sentimento de perda nessa época do ano, levando em consideração tudo o que passou; mas por outro, podemos encarar essa época a partir de uma perspectiva de ganho. O que ganhamos em vivência é muito maior do que os ganhos práticos, quaisquer que sejam eles. Em 2009, construímos mais um pedaço de nossa história (sem a qual não somos nada), e para o qual podemos voltar quando quisermos, no respectivo andar de nossa memória.

3 comentários:

Sentir disse...

Detesto pensar em perdas. Que coisa melancólica me lembrar disso...]Mas não tem como não ser melancólico neste fim de ano. Festas em familia demais para não se lembrar do quanto é triste essa fase...

Renata M. disse...

Que foto animal!

Saudade de vc Gigi.

E pensar que o meu ano de cursinho foi um dos melhores até hoje...

Beijo!
Rê.

Nando Takenobu disse...

não tive a oportunidade de agradecer a você por esse ano gian. fique sabendo que vc já faz parte de 2 andares e de muitos outros que ainda virão, porque com os seus devaneios me ensinou a pensar de verdade.

abraZos.

ps: ano que vem tentarei ver suas aulas na sanfran, mesmo não pertencendo aaaaquele(não sei onde fica a crase nesse pc) lugar.