quinta-feira, 12 de agosto de 2010

"...uma forma luminosa"


Curioso como algumas expressões se tornam um jargão, que progressivamente vai se afastando de seu sentido original. No mundo escolar uma das mais comuns, de uns tempos pra cá, é discutir conceito. As pessoas adoram discutir conceitos, vivem sofisticando suas práticas discursivas dizendo que discutiram conceitos quando, na verdade, na maior parte dos casos, apenas apresentaram definições.

Há diferenças entre conceito e definição. Como de hábito, lanço mão da etimologia para começar a entender as diferenças. A palavra definição vem do latim de-finitio, em que finitio dá idéia de fim, final, encerramento. Pois é esse justamente o sentido das definições: elas encerram um significado dentro de limites bem precisos. Trata-se, sem dúvida, de uma função importante. Pois as palavras devem ter significados precisos, sem isso é impossível um pensamento rigoroso e, em última análise, a própria filosofia. Todavia, definições não constroem conhecimento, e uma consulta ao dicionário, por mais instrutiva que seja, não faz o saber avançar sequer um milímetro.

conceptus tem o mesmo radical de conceber, concepção. Aqui, o sentido é de criar, portanto ir além do limite estreito das definições, que agora serão tomadas apenas como ponto de partida. Trata-se do procedimento filosófico por excelência, e Delleuze, no seu livro O que é Filosofia?, é taxativo: “Filosofar é criar conceitos”. Adorno falava de “ir além do conceito, através do conceito”, enquanto Francisco Bosco – meu filósofo pop preferido, em citação que vivo repetindo por aí – dá uma ideia melhor do árduo trabalho do conceito quando escreve: “O conceito é portanto uma pequena batalha que se trava em meio ao caos, a fim de fazer dele ressair, por meio de um meticuloso bordado semântico, uma forma luminosa”.

Por exemplo, uma definição da palavra trabalho pode ser encontrada no dicionário: trata-se de “aplicação da força e faculdades humanas para atingir um determinado fim”. Porém, uma discussão do conceito de trabalho inclui levar em consideração que essa atividade pode ser vivida de diferentes formas, resultando não apenas em práticas de trabalho distintas, mas também abrindo caminho para a identificação de diferentes éticas do trabalho.

O primeiro sentido da palavra trabalho remonta à etimologia latina do verbo trabalhar, tripaliare, com o significado original de “extrair as tripas”. Trata-se de uma referência ao sofrimento imposto aos escravos. Nesse sentido, o trabalho é visto como um sacrifício a que se deve dedicar em troca de uma remuneração em dinheiro e quando vejo os olhares sombrios de muitas pessoas em seus postos de trabalho, imagino que elas de fato “deixaram suas almas” na porta de entrada da fábrica ou empresa, para poderem pegá-la de volta na saída. A expressão deixar a alma na porta do trabalho é da pensadora francesa Simone Weil que, na década de 1930, abandonou o conforto de sua família para experimentar a vida de operária. Da experiência resultou um relato pungente, “Da condição operária”, que deveria ser leitura escolar obrigatória.

Porém, há outro significado para a palavra trabalho, que pode ser entendido enquanto praxis, uma prática constitutiva do ser. Essa visão está presente em Marx que, inclusive, identificava na habilidade e organização para o trabalho uma especificidade do humano (que ele pretendia resgatar criando um novo sistema social e econômico etc). O trabalho como praxis implica em fazer da atividade uma parte inseparável da sua vida, e chegam a ser comuns os casos daqueles que caem em profunda melancolia quando afastados do trabalho por algum motivo. Sem entrar em detalhes, lembro da interpretação psicanalítica da melancolia, um sentimento associado ao luto, uma vez que ambos resultam em conviver com a perda. Aqui, estamos lidando com nada menos que a perda de uma parte de si mesmo.

No primeiro caso - tripaliare - existe uma separação entre o mundo da vida e o mundo do trabalho, e o próprio conceito de lazer só pode ser pensado a partir dessa separação. Pois lazer é a negação do trabalho, é o tempo que deve ser aproveitado, pois se encontra longe do sofrimento. É o tempo que deve ser preenchido, uma vez que, se o trabalho não constitui o ser, o tempo torna-se vazio e sem sentido. Já no segundo caso - praxis - o mundo do trabalho é parte integrante do mundo da vida, não cabendo a separação tempo livre x tempo de trabalho. Oras, as duas formas de vivenciar a experiência do trabalho (ou os dois significados que são ao mesmo tempo parte integrante do conceito e indissolúveis da experiência do trabalho), implicam em duas éticas do trabalho distintas.

Para os que vivem o trabalho como sofrimento, o que conta é a sobrevivência, uma vez que a atividade é vista como pouco mais que um ganha pão. Neste caso, o trabalho incorpora os jogos de poder, fundamentais na luta pela sobrevivência dentro do ambiente de trabalho, e o resultado é uma atuação marcada pelo medo e paralisia. Já para os que vivem o trabalho como parte constitutiva de si mesmo, a realização encontra-se no trabalho bem-feito, visto como finalidade e parte integrante do conhecimento próprio enquanto sujeito. Aqui abre-se o espaço para a cooperação ( lembrando do caráter social e coletivo do trabalho), que incorpora o diálogo entre as partes e a constituição de laços que incluem a tão difícil amizade entre adultos.

7 comentários:

Pedro Barreto disse...

Professor, eu já soltei uns posts meio violentos contra você, mas enfim. Gostaria de lhe perguntar: o por que do caráter concêntrico do eu; qual sua posição perante a teoria modal de Dooyeweerd (que ele tirou de Xaver von Baader) e o que você acha do pressuposicionalismo dooyeweerdiano, e a crítica ao pensamento teórico dele (relativa ao dogma da independência da razão)? Haveria a possibilidade de teorias, definições, e, principalmente, conceituações com base em um pensamento livre de pre-definições que levem à teorização? Eu vejo nessa filosofia de índole calvinista uma das respostas ao caráter perdido das teorizações igualdade-liberdade que infectam o âmbito jurídico.

Gian disse...

Nossa ! Não lembro dos posts "meio violentos", talvez por não tê-los achado violentos. Críticas são sempre estimulantes, principalmente quando agudas.

Quanto à sua pergunta, não vou poder responder: tenho apenas uma vaga noção do que vc esteja falando. Acho que já comentei, essas referências ao "âmbito jurídico" muitas vezes são obscuras para quem não é dá área.

Obrigado por acompanhar o blog.

Pedro Barreto disse...

Opa, tudo certo então. Então, na verdade é uma Filosofia que foi desenvolvida na Univerisdade Livre de Amsterdã pelo filósofo Herman Dooyeweerd, acerca da fundação lógica do conhecimento teórico (ou segundo a terminologia que lhe é própria, teorético). Trata-se de uma crítica ao pensamento, mas tentando achar qual é a fonte do pensamento teórico, negando-se o dogma da autonomia da razão, procurando-lhe a fonte. Existe o livro na internet: New Critique of Theoretical Thought, que são 4 volumes; e tem uma introdução, traduzida para português: No Crepúsculo do Pensamento Filosófico (que no original era em inglês). Se você souber Holandês, boa sorte. Arranho no alemão que faço agora, mas não consigo compreender bulhufas daquela língua que parece alemão errado.

Os elementos agostinianos (permeados da teologia calvinista que não gosto - sou um tomista convicto) tratam de ver onde é que raios começa a teorização das coisas, não apenas parando no concêntrico "eu penso". Esse filósofo é desconhecido pela grande parte. E talvez tenha a melhor crítica aos pensadores pós-modernos.

Pedro Barreto disse...

Seria mais ou menos o seguinte: nosso mundo fenomênico é experimento não por conceituações, mas por modos: modo sensitivo, modo sentimental, modo religioso, modo artística, modo sexual, etc. Esses modos estão numa coerência inquebrantável; possuem um núcleo de sentido, mas o seus momentos experimentais pode aparecer analogicamente em um modo ou outro, antes ou depois, dentro do tempo (conceito complicado de tempo, que não é tão-somente o cronológico). Daí se explica o porquê da resistência ao pensamento teórico, já que essa coerência é inquebrantável, sendo que o pensamento teórico traria de retirar e conceituar sobre essa situação (lembra um pouco o foco aristotélico). Mas enfim. Daí se pergunta: se pensamos, esse pensamento não pode surgir dali, dada sua coerência não-lógica. Daí se pode inferir que as relações objeto-sujeito convergem todas pelo sujeito, sendo que pelo sujeito que lhes dá o verdadeiro caráter teorético (através dos modos). Daí se indaga: que raios é esse eu concêntrico que absorve tudo? Kant parou no "eu penso", e disse que não se poderia passar além disso. Dooyeweerd fala que isso foi uma questão do dogma da razão; diz que essa noção não tem, teoreticamente, nenhum sentido. Daí ele diz que o ego, per se, não possui nenhum sentido, mas é sempre concêntrico (apesar do que Hume diz); diz que todos os filósofos tentaram, sempre captando caráter extrínsecos para definir o ego, sempre falhando. Daí ele pergunta: de onde vem o pensamento téorico então? Daí ele chega à conclusão que é através do que ele chama de motivo religioso fundamental; não é objetivamente teórico, mas é uma noção de caráter religioso que age por toda existência, e tenta-lhe captar teoreticamente. Através dessa noção ele diferencia os motivos religiosos dialéticos (graça-liberdade, da escolástica; liberdade-natureza, do humanismo; forma-natureza dos antigos gregos), separando do não dialético, cujo único exemplar é o que ele chama do bíblico: criação-queda-redenção.

Ufa, talvez tenha ficado meio confuso, mas ao menos dá para se ter uma ideia do que digo. Ela realmente me assustou porque ela fornece um instrumental bem interessante sobre a falência teórica de nossa época, principalmente no âmbito jurídico (Dooyeweerd também era filósofo do direito).

Honey and Milk disse...

hahaha não entendi uma palavra do comentário acima!
Mas enfim... o que eu sei é que ao mesmo tempo que é necessário amar seu trabalho, é importante saber que sua vida não se baseia só naquilo e que em algum momento do seu dia você pode relaxar e ter um momento de lazer...
Por isso, na minha opinião, não se pode separar tão pouco unir o "mundo da vida" ao "mundo do trabalho"...
São coisas diferentes que de alguma forma se completam...

S. disse...

hahaha não entendi uma palavra do comentário acima! [2]

Este post me rendeu algumas reflexões pessoais. Lembro de mim há dois anos atrás pensando que não tinha o menor problema encarar o trabalho à base do conceito "tempo livre x tempo de trabalho", aliás acho que quem consegue fazer isso é muito sortudo. Se eu conseguisse encarar as coisas assim, prestaria Engenharia e ficaria rica rs. Mas eu não consigo, e deve ser por isso que desisti da faculdade pra fazer cursinho. Não sei se encarar o conceito de trabalho enquanto praxis é mesmo o melhor, mas é o único que me cabe, fazer o que.

Pedro Barreto disse...

O rigor de exposição é ruim demais. Mas é uma filosofia interessante. Eu acho que é muito imporante ter uma formação filosófica, porque ela demonstra muitos problemas que são "escondidos" num senso comum falso.