sábado, 2 de outubro de 2010

Istanblues





24 de setembro, hora indeterminada, sobre o Atlântico

“Por favor, solicitamos a presença de um doutor. Comparecer com urgência à cabine do fundo do avião”, grita o alto falante à bordo do vôo TK0014 da Turkish Airways rumo à Istambul. Achei curioso que não chamaram um médico, mas um doutor. Será que podia ser alguém de Humanas ? Será que eles estavam necessitando de um doutor, digamos, em Filosofia ? Imagino a emergência: o doutor em Filosofia chega afobado na cabine do fundo e encontra um passageiro angustiado, sofrendo calafrios, que pergunta com a voz rouca (enquanto a aeromoça tenta afrouxar sua gravata): “Doutor... me ajude... será que a ontologia pura serve apenas para dar forma ao entendimento ?” E o filósofo responde – como se fosse um dentista chamado para atender um ataque cardíaco: “Xeeeeee, lamento, mas minha área é a Estética”.

24 de setembro, 18h34, Aeroporto Internacional de Istambul

A vingança turca. Ressentidos por não serem aceitos na União Européia, os turcos se vingam. A entrada na Turquia só é permitida mediante um visto que é emitido no próprio Aeroporto, quando se chega no país. Porém, para algumas nacionalidades o tal visto não é necessário. No Aeroporto, vejo uma fila enorme de italianos, alemães, franceses, espanhóis, todos eles aguardando o demorado visto. Como brasileiro, sou dispensado de visto, e passo ao lado da fila dançando um samba.

24 de setembro, 23h49, um meyhane em Sultanahmet

O som das borbulhas de dezenas de narguiles sendo aspirados ao mesmo tempo. Cheiro adocicado de tabaco. Café turco, forte. Ao meu lado, dois turcos jogam gamão.

25 de setembro, 11h36, mesquita de Sultanahmet

É gratuita a entrada na famosa Mesquita Azul, aquela que foi construída diante de Santa Sofia para rivalizar em grandeza com o templo bizantino. Na saída, um funcionário pede uma contribuição em dinheiro para a manutenção da mesquita. Sensibilizado pela generosidade do ingresso grátis (e estimulado pelo pouco valor do dinheiro turco), deposito 5 liras na urna. Imediatamente, o funcionário me passa um recibo. Penso comigo: “Uma indulgência !” Agora, o paraíso islâmico é todo meu.

26 de setembro, 16h32, porta de hotel

Conversa com um turco: “O que você acha de Orhan Pamuk ?”. “Ah, aqui não gostamos muito dele, não. É um filhinho de papai, sua opinião é a da elite rica da cidade”. Tento argumentar que condenar a estética em função da origem social é um procedimento arriscado, e que seus escritos provavelmente irão sobreviver até bem depois que a atual estrutura de classes da Turquia mudar. E chamo atenção para o conceito de hüzün (=melancolia), que passou a ser fundamental para se pensar a cidade desde que Pamuk o discutiu. “Isso é bobagem”, diz o interlocutor turco, “a tal hüzün de Istambul não existe”. Como não existe ? Então eu posso dizer que o princípio segundo o qual “só Alá é Deus e Maomé é seu profeta” não existe só porque eu não acredito nisso ? Subitamente, o turco perde interesse na conversa.

26 de setembro, 19h05, entrada do mosteiro de dervixes de Mevlana

Nesses tempos tão corretos, me provoca um sorriso o cartaz afixado na entrada do mosteiro: “Este edifício NÃO é adequado para cadeiras de rodas”.

26 de setembro, 19h34, salão do mosteiro dos dervixes de Mevlana

Entra a banda dos dervixes, com seus longos chapéus cilíndricos. Em meio à solenidade de seus movimentos rituais de apresentação, subitamente lembro-me dos Keystone Cops, e sinto uma vontade desesperada de rir. Porém, logo começa a música e eu fico mudo de admiração. Quando os dervixes começam a rodopiar, chego próximo de um transe extático.

27 de setembro, 10h59, Palácio do Sultão (Topkapi)

A entrada do harem continua sendo um lugar assustador. Um beco estreito, ganchos para iluminação com lâmpadas de óleo, uma fileira de portas entreabertas com os aposentos dos truculentos eunucos, um corredor escuro no final. Era essa a primeira visão que as moças – seqüestradas em todo Império Otomano – tinham do palácio luxuoso onde passariam o resto de suas vidas. Sua maior aspiração: serem escolhidas como uma das “favoritas” e, com sorte, gerarem o príncipe herdeiro.

27 de setembro, 21h05, Sultanahmet

A comida de rua em Istambul é boa, aprendi isso da outra vez que aqui estive. Morrendo de vontade de comer um kokoreç - uma espécie de kebab feito com intestinos de carneiro - pergunto ao garçon de um dos muitos restaurantes de Sultanahmet, bairro dos hotéis ao lado de Santa Sofia: “Onde eu posso comer um kokoreç?”. Assutado, ele me responde, “Hayir ! Não, kokoreç não tem mais ! É contra as normas de higiene da União Européia !”. Penso se seria elegante da minha parte lembrar que a Turquia não faz parte da União Européia, mas prefiro ser simpático. Depois de muito insistir, ele me passa, quase em segredo, um endereço em Beyoglu. E acrescenta em voz baixa: “Best kokoreç in town !”. (http://sampiyonkokorecci.com/)

28 de setembro, 9h45, rua Akbiyik


Conversa com um turco: “Você se sente mais asiático ou mais europeu ?”. A resposta vem direto: “Ah, sem dúvida, mais asiático.” Suspeito que se um turco fizesse a mesma pergunta ele responderia: “Mais europeu”. Viver entre o Oriente e o Ocidente, o tradicional e o moderno, deixa todos os turcos meio esquizofrênicos.

28 de setembro, 17h52, Santa Sofia

De onde vêm esses olhos azuis e cabelos claros de alguns turcos ? Várias origens, e uma delas se encontra nos guerreiros vikings contratados como mercenários a partir do século X pelos imperadores bizantinos. Tais guerreiros, denominados varegues, chegaram a ter um papel importante na defesa de Constantinopla contra o saque realizado pela Quarta Cruzada (1204). Enquanto não se dedicavam a atividades guerreiras, os varegues deviam perambular por Constantinopla e eis que, nos parapeitos internos da Santa Sofia, encontram-se inscrições feitas por esses guerreiros nórdicos em seu alfabeto rúnico. Gravadas no mármore por espadas, assinalam os nomes de “Halfdan” e “Ari”, verdadeiros precursores da pichação.

29 de setembro, 8h12, Aeroporto Internacional de Istambul

Na livraria do aeroporto, encontra-se à venda a edição de bolso (completa, em turco) de O Capital de Marx



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(foto: Ara Güler)

8 comentários:

Unknown disse...

Adorei a parte da fila de europeus. hahahaha Ser brazuca tem lá suas vantagens as vezes, né? Um dia faço uma viagem dessas. Beijos Gian.

Erica Watanabe disse...

Ótimo diário de viagem! Adorei os comentários bem humorados :)

Raphael Felice disse...

enquanto eu, preso nessa realidade monótona, tenho que estudar pra uma prova amanha, alguem ronda a cidade turca em busca de entranhas saborosas. Eita inveja violenta!

Sortudos aqueles que pisam em terra estrangeira no meio do ano letivo!

Gian disse...

N: com seu passaporte italiano, vc iria mofar na fila.

E: não, Érica, ótimo foi o SEU diário de viagem. Aliás, quando vai ser a próxima ?

R: "...em busca de estranhas saborosas" ???

Eileen Winther disse...

intestinos de carneiro? reaaallly???? ecaaat...

fazia tempo que eu não passava por aqui (:

Sinto que existem partes muito interessantes da viagem que você não contou nesse seu diário de viagem... AHAHAH

beeeijos Gi... ;*

Mônica disse...

Como é bom viajar!
Por vezes um avião cruza o céu e eu, daqui de baixo, só queria estar ali dentro, voando com ele. Poderia furar as nuvens e, pela janelinha, ver toda a civilização tão pequena e frágil, escondidinha em seus telhadinhos. Lá de cima parece que aqui embaixo as coisas são tão menores e mais simples que até achamos graça de como podemos engrandecer assuntos banais.

Anônimo disse...

Bom, próxima vez que eu te ver.. dance um samba para que eu possa me sentir européia uma vez na vida, pode ser?

Unknown disse...

Um comentário "meio" atrasado.Mas valeu a pena ter lido esse post agora.Divertidíssimo.

Tá aí.Fornecer ilegalmente kokoreç na Turquia.Bom negócio.
E café turco?!Hmm...