sábado, 30 de outubro de 2010

O direito à paisagem. Vista da rua.



Costuma-se chamar “revolução copernicana” a transformação operada por Kant na teoria do conhecimento. O termo refere-se à mudança que Copérnico teria provocado na nossa forma de olhar: o que veríamos, ou COMO veríamos o universo se não estivéssemos em seu centro ? Pois a teoria de Kant implica justamente em uma mudança no olhar, superando tanto a visão racionalista quanto a empirista, que dominaram a Filosofia por uns bons dois mil anos. Sem entrar em detalhes, para a tradição do racionalismo (que, passando por Descartes remonta a Platão), a mente cria coisas, enquanto que para a tradição do empirismo (que, passando pelos ingleses, encontra suas raízes em Aristóteles), a mente se adapta às coisas. A revolução copernicana de Kant criou a concepção de que as coisas se adaptam à mente, ou seja, é impossível o conhecimento das coisas sem o seu processamento pelas estruturas cognitivas do homem.

Em certo sentido, também a Ética kantiana fundava-se nessa operação do olhar. Como um desdobramento do imperativo categórico, Kant escreveu: “Age de tal maneira que tartes a humanidade em tua própria pessoa e na pessoa de cada outro ser humano, jamais meramente como um meio, porém sempre ao mesmo tempo como fim”. Isso significa que agira moralmente implica na árdua tarefa de reconhecer no Outro um Sujeito, e não um mero objeto, um meio diante da satisfação de nossas necessidades.

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A imagem da propaganda, em página dupla, me chamou atenção durante a leitura dos jornais no domingo passado, e continuou aparecendo nos periódicos desde então. Mais do que chamar atenção, na verdade levei um susto quando virei a página e vi a imagem. Por trás da idílica paisagem de bosques e lago, rapidamente identificada pelo texto como o Parque do Ibirapuera, surge a aparição ao mesmo tempo monstruosa e fantasmagórica de uma torre de uns trinta andares; e o traçado do edifício em linha branca, deixando transparecer o fundo azul, reforça o caráter espectral da imagem.

Segue-se o texto: “Mais do que uma simples paisagem, uma obra de arte viva”. Dispenso qualquer comentário sobre o caráter artístico do prédio, mais um exemplo da má arquitetura paulistana. Também deixo passar o contraste entre o emprego da palavra “vivo” para descrever a ilustração fantasmagórica. O que mais me chamou atenção foi a referência à paisagem, reforçada pelo texto seguinte: “Dois magníficos terraços que emolduram perfeitamente o cenário marcante do Ibirapuera ao fundo”. Foi aqui que lembrei de Kant e sua operação do olhar.

O Ibirapuera aparece aqui como mera paisagem vista da janela, jamais se concebendo que alguém vá freqüentá-lo de fato, levando, portanto, seu olhar para o Parque. Ou então, o Ibirapuera será freqüentado sim, mas a paisagem vista do Parque estará irremediavelmente destruída, cercado cada vez mais por torres medonhas. Mas pouco importa. O horizonte visto do espaço público não interessa, desde que seja preservada a paisagem que vejo de dentro do meu espaço privado, ainda mais se emoldurada por "magníficos terraços". E é sempre assim. Em São Paulo, ignora-se a paisagem vista da rua, constroem-se torres ao lado de igrejas centenárias, tampa-se o horizonte com uma profusão de paredes e superfícies verticais cinzas, sempre cinzas. Às vezes, chega-se ao requinte de tapar o céu com um viaduto.

Depois reclamam quando o pixo contra-ataca.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Uma foto qualquer



A foto é aparentemente banal, e o fotógrafo certamente não pensou em suas múltiplas implicações quando, meio ao acaso, apontou para mim a câmara e registrou a cena: à bordo de um barco, olhando para o horizonte, em uma manhã de sol. A única justificativa para a foto ser tirada: o braço de mar por onde passa o barco é o Bósforo e, no horizonte, começa a Ásia.

Minha primeira reação à foto também foi trivial e, como sempre acontece quando vemos nossas próprias fotos – ou, pior, ouvimos nossa voz gravada – egocêntrica e autocrítica: que perfil horrível ! Que barba escandalosa ! Que nariz turco, que faz de mim uma espécie de xerox do sultão Mehmet VI (sem o harem, infelizmente), que quase sempre se fazia retratar de perfil.

Por pior que achasse a foto, não conseguia deixar de observá-la e, lentamente, suas formas foram se revelando para mim. Talvez fosse o jeito como meu braço (no primeiro plano) e o litoral da Ásia (ao fundo), ajudem a determinar espaços geométricos no plano da foto, quadrados, triângulos. Sempre tem algo de cubismo na decomposição das imagens em formas geométricas, gosto muito quando o efeito é obtido através de fotos. Por exemplo, veja a imagem feita por Cristiano Mascaro, “Árvore em Cachoeira” (2002): http://bit.ly/bgM7kE.

Porém, muito mais do que dividir o espaço em formas geométricas, o meu braço e o litoral da Ásia apresentam uma estranha simetria: estendidos em um sentido vagamente horizontal (pois a foto está um pouco torta, o litoral está levemente inclinado para a direita), apresentando um suave ondulado, como que reproduzindo as ondas do Bósforo que eles emolduram. Pois meu braço e o litoral da Ásia foram o que me chamou atenção para o conjunto surpreendente de simetrias que essa imagem apresenta.

Refletir o céu no mar já é quase um lugar comum, e aqui céu e mar como que têm vida própria (um é quadrado, outro é triângulo). Mas os reflexos da luz no mar repetem-se no céu, sob a forma de fiapos de nuvens, e aqui está uma simetria. Da mesma forma, as finas barras brancas que sustentam o parapeito onde apoio meu braço como que se reproduzem no meu ombro, nas dobras da camisa embranquecidas pela luz do sol; e a agressividade das linhas repetidas é suavizada pelo semi-círculo que as envolve, sob a forma de uma bóia, além do parapeito, ou de minha gola redonda, de onde irradiam os vincos da camisa.

O olhar atento percebe ainda mais uma simetria no litoral ao fundo. À esquerda, o mastro onde tremula uma bandeira turca, símbolo da República secular; e á direita a torre de um minarete, de onde os clérigos gritam as orações diárias, símbolo do Islamismo. Trata-se da maior tensão que existe na Turquia de hoje, ser ocidental ou oriental, moderno ou tradicional, religioso ou leigo. Ou na tensão de sempre: viver nas margens do Bósforo implica este ponto de inflexão, onde cada um coloca em jogo o seu próprio ser. As margens do Bósforo são como espelhos - invertidos, quase sempre -, e enxergar a própria imagem implica no trabalho cuidados de desconstruir todas as inversões.

Envolvida nesse jogo curioso, paira, na foto, uma única imagem que não tem seu duplo, aparentemente escapando de qualquer simetria. Sou EU, reduzido a um mero rosto que se projeta olhando sabe-se lá para quê. Pairando como forma maciça, escura, e dominando todo canto esquerdo da foto, só posso buscar um paralelo à minha frente, no local para onde olho, infelizmente fora do enquadramento da foto. Mas quem disse que eu olho para algum lugar ? Tenso, quem sabe imerso em pensamentos, apenas tenho diante de mim o CÉU, diáfano, claro, dominando todo canto direito da foto, justamente lá onde há poucas nuvens. E é somente nele que posso traçar alguma simetria.

Como em todas as imagens criadas na foto, trata-se de uma imagem refletida. Pois eu sou o oposto do céu e, por mais que pense diferente e tenha os pés no chão, só consigo uma aproximação de mim mesmo diante desse mesmo céu.

sábado, 2 de outubro de 2010

Istanblues





24 de setembro, hora indeterminada, sobre o Atlântico

“Por favor, solicitamos a presença de um doutor. Comparecer com urgência à cabine do fundo do avião”, grita o alto falante à bordo do vôo TK0014 da Turkish Airways rumo à Istambul. Achei curioso que não chamaram um médico, mas um doutor. Será que podia ser alguém de Humanas ? Será que eles estavam necessitando de um doutor, digamos, em Filosofia ? Imagino a emergência: o doutor em Filosofia chega afobado na cabine do fundo e encontra um passageiro angustiado, sofrendo calafrios, que pergunta com a voz rouca (enquanto a aeromoça tenta afrouxar sua gravata): “Doutor... me ajude... será que a ontologia pura serve apenas para dar forma ao entendimento ?” E o filósofo responde – como se fosse um dentista chamado para atender um ataque cardíaco: “Xeeeeee, lamento, mas minha área é a Estética”.

24 de setembro, 18h34, Aeroporto Internacional de Istambul

A vingança turca. Ressentidos por não serem aceitos na União Européia, os turcos se vingam. A entrada na Turquia só é permitida mediante um visto que é emitido no próprio Aeroporto, quando se chega no país. Porém, para algumas nacionalidades o tal visto não é necessário. No Aeroporto, vejo uma fila enorme de italianos, alemães, franceses, espanhóis, todos eles aguardando o demorado visto. Como brasileiro, sou dispensado de visto, e passo ao lado da fila dançando um samba.

24 de setembro, 23h49, um meyhane em Sultanahmet

O som das borbulhas de dezenas de narguiles sendo aspirados ao mesmo tempo. Cheiro adocicado de tabaco. Café turco, forte. Ao meu lado, dois turcos jogam gamão.

25 de setembro, 11h36, mesquita de Sultanahmet

É gratuita a entrada na famosa Mesquita Azul, aquela que foi construída diante de Santa Sofia para rivalizar em grandeza com o templo bizantino. Na saída, um funcionário pede uma contribuição em dinheiro para a manutenção da mesquita. Sensibilizado pela generosidade do ingresso grátis (e estimulado pelo pouco valor do dinheiro turco), deposito 5 liras na urna. Imediatamente, o funcionário me passa um recibo. Penso comigo: “Uma indulgência !” Agora, o paraíso islâmico é todo meu.

26 de setembro, 16h32, porta de hotel

Conversa com um turco: “O que você acha de Orhan Pamuk ?”. “Ah, aqui não gostamos muito dele, não. É um filhinho de papai, sua opinião é a da elite rica da cidade”. Tento argumentar que condenar a estética em função da origem social é um procedimento arriscado, e que seus escritos provavelmente irão sobreviver até bem depois que a atual estrutura de classes da Turquia mudar. E chamo atenção para o conceito de hüzün (=melancolia), que passou a ser fundamental para se pensar a cidade desde que Pamuk o discutiu. “Isso é bobagem”, diz o interlocutor turco, “a tal hüzün de Istambul não existe”. Como não existe ? Então eu posso dizer que o princípio segundo o qual “só Alá é Deus e Maomé é seu profeta” não existe só porque eu não acredito nisso ? Subitamente, o turco perde interesse na conversa.

26 de setembro, 19h05, entrada do mosteiro de dervixes de Mevlana

Nesses tempos tão corretos, me provoca um sorriso o cartaz afixado na entrada do mosteiro: “Este edifício NÃO é adequado para cadeiras de rodas”.

26 de setembro, 19h34, salão do mosteiro dos dervixes de Mevlana

Entra a banda dos dervixes, com seus longos chapéus cilíndricos. Em meio à solenidade de seus movimentos rituais de apresentação, subitamente lembro-me dos Keystone Cops, e sinto uma vontade desesperada de rir. Porém, logo começa a música e eu fico mudo de admiração. Quando os dervixes começam a rodopiar, chego próximo de um transe extático.

27 de setembro, 10h59, Palácio do Sultão (Topkapi)

A entrada do harem continua sendo um lugar assustador. Um beco estreito, ganchos para iluminação com lâmpadas de óleo, uma fileira de portas entreabertas com os aposentos dos truculentos eunucos, um corredor escuro no final. Era essa a primeira visão que as moças – seqüestradas em todo Império Otomano – tinham do palácio luxuoso onde passariam o resto de suas vidas. Sua maior aspiração: serem escolhidas como uma das “favoritas” e, com sorte, gerarem o príncipe herdeiro.

27 de setembro, 21h05, Sultanahmet

A comida de rua em Istambul é boa, aprendi isso da outra vez que aqui estive. Morrendo de vontade de comer um kokoreç - uma espécie de kebab feito com intestinos de carneiro - pergunto ao garçon de um dos muitos restaurantes de Sultanahmet, bairro dos hotéis ao lado de Santa Sofia: “Onde eu posso comer um kokoreç?”. Assutado, ele me responde, “Hayir ! Não, kokoreç não tem mais ! É contra as normas de higiene da União Européia !”. Penso se seria elegante da minha parte lembrar que a Turquia não faz parte da União Européia, mas prefiro ser simpático. Depois de muito insistir, ele me passa, quase em segredo, um endereço em Beyoglu. E acrescenta em voz baixa: “Best kokoreç in town !”. (http://sampiyonkokorecci.com/)

28 de setembro, 9h45, rua Akbiyik


Conversa com um turco: “Você se sente mais asiático ou mais europeu ?”. A resposta vem direto: “Ah, sem dúvida, mais asiático.” Suspeito que se um turco fizesse a mesma pergunta ele responderia: “Mais europeu”. Viver entre o Oriente e o Ocidente, o tradicional e o moderno, deixa todos os turcos meio esquizofrênicos.

28 de setembro, 17h52, Santa Sofia

De onde vêm esses olhos azuis e cabelos claros de alguns turcos ? Várias origens, e uma delas se encontra nos guerreiros vikings contratados como mercenários a partir do século X pelos imperadores bizantinos. Tais guerreiros, denominados varegues, chegaram a ter um papel importante na defesa de Constantinopla contra o saque realizado pela Quarta Cruzada (1204). Enquanto não se dedicavam a atividades guerreiras, os varegues deviam perambular por Constantinopla e eis que, nos parapeitos internos da Santa Sofia, encontram-se inscrições feitas por esses guerreiros nórdicos em seu alfabeto rúnico. Gravadas no mármore por espadas, assinalam os nomes de “Halfdan” e “Ari”, verdadeiros precursores da pichação.

29 de setembro, 8h12, Aeroporto Internacional de Istambul

Na livraria do aeroporto, encontra-se à venda a edição de bolso (completa, em turco) de O Capital de Marx



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(foto: Ara Güler)