sábado, 9 de abril de 2011

Alô, alô, torcida do Flamengo

1 Me pergunto por que diabos no Brasil as tragédias atraem multidões. Quase sempre vestindo bermudão, chinelo e camiseta, pessoas podem ser vistas se acotovelando diante das câmeras de TV ou apenas paradas ao longe, contemplando a cena, mãos para trás e com os quadris inclinados, numa tentativa de descansar as pernas depois de tantas horas em pé. Se o episódio for no Rio de Janeiro, a camiseta invariavelmente será do Flamengo.


Acredito que o que leva essa gente para o palco das tragédias é o estranho e jamais confessado desejo de ver o sofrimento alheio, o que no fundo expressa uma forma de regozijo diante da própria sobrevivência. Acho até que é esse mesmo sentimento que leva as pessoas a darem uma desaceleradinha no carro e espichar a cabeça para fora da janela quando se passa ao lado de um acidente. Nessa hora, pouco importa piorar o trânsito que vai se formando em uma via já parcialmente interditada, o que interessa é ver sangue. Ou então, não é nada disso, apenas o desejo de se distrair do tédio.

O fenômeno está longe de ser novo. Lima Barreto, em Triste fim de Policarpo Quaresma, dá uma viva descrição da Revolta da Armada de 1893 no Rio de Janeiro, episódio que ele presenciou:

Os soldados já estavam nas trincheiras, armas à mão; o canhão tinha ao lado a munição necessária. Uma lancha avançava lentamente, com a proa alta assestada para o posto. De repente, saiu de sua borda um golfão de fumaça espessa: Queimou! -- gritou uma voz. Todos se abaixaram, a bala passou alto, zunindo, cantando, inofensiva. A lancha continuava a avançar impávida. Além dos soldados, havia curiosos, garotos, a assistir o tiroteio, e fora um destes que gritara: queimou!

E assim sempre. Às vezes eles chegavam bem perto à tropa, às trincheiras, atrapalhando o serviço; em outras, um cidadão qualquer, chegava ao oficial e muito delicadamente pedia: O senhor dá licença que dê um tiro? O oficial acedia, os serventes carregavam a peça e o homem fazia a pontaria e um tiro partia.

Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade


2 Na tragédia do Realengo, a imagem mais impressionante talvez tenha sido a de um desses observadores anônimos (devidamente vestido de bermuda sem camiseta) beijando a mão do policial que deteve o Atirador. A mão direita, que efetuou o disparo. Nessa foto, a estúpida busca de heróis convive com o desejo de santificá-los, demonstrado por um ato de subserviência normalmente praticado em cerimônias religiosas (e mesmo nessas, o beija-mão sempre causa algum constrangimento). Parece que não era somente o Atirador que vivia em um estado de pobreza espiritual compensada por uma religiosidade mórbida: sua platéia também.

3 “Lavem meu corpo, me enrolem em branco, me enterrem ao lado de minha mãe”, diz o testamento do Atirador. E pronto, está tudo resolvido. Estranha essa relação com deuses que tudo perdoam. Até quando vamos continuar insistindo nessa bobagem de vida eterna e perdão para os “puros de alma” ? Penso que, no passado, quando o discurso da virtude era predominante e os vícios ocultados, qualquer pessoa que se achasse “anormal” (assassino, estuprador, pecador) remoía-se em uma culpa que, em casos extremos, talvez até contivesse seus piores impulsos. A isso dou o nome de Medo do Inferno.

Se outrora o “anormal” sentia-se doente diante da aparente virtude das demais pessoas, hoje, em plena liberdade dos costumes, ocorre uma inversão: é o “anormal” que passa a se achar virtuoso diante da sociedade corrompida. O mundo está errado, porém eu ainda entendo a palavra de deus. Daí o desejo de purificar as pessoas ou mesmo puni-las em nome de um deus que aceita e perdoa os poucos que ainda o seguem. A isso dou o nome de Certeza do Paraíso.

7 comentários:

Will disse...

O mundo todo é atraido por tragedias. Oq atrai multidoes no Brasil(além das tragedias) sao cameras de Tv, essas sim exercem um fascinio muito grande. Nao é a toa q emissoras de tv preferem fazer externas nas ruas do centro velho de Sao Paulo. Um caminhao de uma emissora para, monta a camera, um apresentador com microfone e a multidao cerca o carro esperando oq vai acontecer. Uma produtora pega um dos espectadores, informa sobre oq será o quadro, dá algumas instruçoes e o feliz escolhido fala para as cameras. Pronto!!! Pare o mesmo carro nos Jardins, Paulista e o numero de interessados será menor. É o diferente q atrai multidoes. Ouvi/Li comentarios q o moço do massacre nao tinha Deus no coraçao, sabemos q ele acreditava em Deus(da forma dele, mas acreditava). Vc ja viu algum ateu fazer algo parecido? Eu nao tenho certeza do paraiso. Costumo andar pelo centro d Sao Paulo e com certa frequencia alguem sempre se mata ali no Viaduto do Cha, ouço os comentario: "Deus nao vai perdoar", "essa vai direto pro inferno", "A alma dele vai ficar vagando". Tirando minhas divagaçoes, penso q oq nos atrai nao seja exatamente o sofrimento alheio, mas o sofrimento q foge do cotidiano, akele q vc nao ve todo dia como foi o caso do RJ. Sofrimentos comuns como acidentes em estradas a gente nem dá bola. Vc deveria escrever sobre o castigo de Deus, Iria me divertir a valer =)

Will disse...

Outra cena q esqueci d mencionar é a Dilma chorando ao falar dos 'brasileirinhos', amidia repetiu a cena ate cansar. Por acaso essa prezer d ver Dilmea chorar teria alguma relaçao de trazer um Deus imortal(Dilma) ao patamar dos mrotais(nós)?? Parece q assim tb a Presidenta se iguala a nós, alem disso alimanta o ego d alguma forma. Traçando um paralelo quando Obama chamou Lula d "o cara", o Brasil(eu nao) ficou orgulhoso.

Victor disse...

Brasileiro precisa de heróis? Sim... quem não precisa?
Vasily Zaytsev foi um exemplo de que em lugares carentes, fragilizados, um herói, uma lenda, pode servir como elemento motivacional ou mesmo de fuga.
Só digo uma coisa: melhor beijar a mão do policial que cumpriu seu dever e impediu que as coisas ficassem pior ainda do que beijar a mão da esquerdinha-caviar dos direitos humanos, que afaga esses psicopatas.

Mariana Teresa Galvão disse...

Por que não pensar que, ao invés de se regozijar diante do sofrimento alheio, o homem tenta, num ato de humanidade e piedade, ser fraterno mesmo que por um instante?

Qual a diferença entre a atração d"essa gente" e a atração daqueles que analisam, friamente, a repercussão "do povo" diante de tais tragédias?

O pior mesmo somos nós que ficamos tão frios diante das barbáries humanas que não mais vamos ao palco da tragédia para uma sensibilização. Sequer reparamos nas tragédias diárias, mas passamos apenas a analisar, criticamente, os atos "daquela gente" que "de bermuda e sem camisa" se regozija diante do sofrimento do outro, nos distanciando tanto “daquela gente” que nos perguntamos o porquê deles fazerem isso, sem olharmos nossa própria atitude.

Melhor eles que pelo menos sentem (qualquer coisa) e não usam outros palcos para se regozijar diante da tragédia da humanidade.

Gian disse...

Então, Mari, aquele troço do esquerdismo que falei. Fica a impressão que sua leitura passa pelo crivo do social: "aquela gente" é povo, portanto é sagrada é deve-se atribuir a ela sentimentos elevados como a "fraternidade" e a "humanidade" (ao contrário do critico diabólico de classe média - deus me livre! - e seu blog pretencioso). Oras, faça-me o favor. "Essa gente" que tem um gosto particular pela tragédia e que corre para contemplá-la é aquela que sai por aí gritando "Mata!" e "Lincha!" à torto e à direito, algo que cansamos de ver. "Sob a miséria não pode florescer a santidade", disse não lembro qual personagem de Brecht, e eu realmente não espero ver nenhuma "bondade" especial no pobre só porque ele é pobre. Da mesma forma, claro, não espero nenhuma maldade especial. Escrevo sobre o que vejo, uso as lentes que tenho e tento me regozijar com a comédia humana.

Gian disse...

Meu caro Will, chamo atenção para o fragmento do Lima Barreto: em 1893 o pessoal já corria para ver a tragédia mesmo antes de existirem câmeras (ou pelo menos antes de sua onipresença). Mas concordo, câmaras atraem pessoas como os cadáveres fazem com as moscas.

Daniel disse...

Post genial. Parabéns professor.