quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O Retorno do Ser - 2ª parte


Além disso, agora “sou italiano”. Ou seja, concluí o longo processo burocrático que me concedeu cidadania italiana, com a consequente emissão de passaporte, etc. O que diabos significa, a essa altura da vida, “ser italiano” ? Nada, provavelmente.

Tento traçar a origem do processo. Pensei pela primeira vez em ser italiano em algum momento da adolescência, época em que é normal para qualquer pessoa tentar “ser” alguma cosia, o que quer que seja.

[Interlúdio comportamental: lembram o saudoso Orkut ? Lembram como multidões de adolescentes adotaram o Orkut, que tinha a incrível capacidade de definir o Ser das pessoas bastando para isso participar dessa ou daquela comunidade ? Quanto maior a crise de identidade, maior o número de comunidades adicionadas pelo indivíduo. Com o tempo, essas comunidades compartilhadas ajudavam a definir identidades coletivas, e talvez daí a avidez com que grupos fascistóides – como as torcidas organizadas – adotaram o Orkut. Mais tarde, conforme a classe C foi aderindo ao Orkut, nossas hierarquias sociais brasileiras falaram mais alto e as “classes altas” começaram a mudar para o Facebook. Que, por sua vez, diz: sou moderno, sou internacional.]

Além disso, imaginava que um passaporte italiano um dia poderia ser – quem sabe ? – um motivo de segurança: nos anos 1990, a possibilidade do Brasil se transformar em um caos completo era bem real, e a doce península, embalada na prosperidade europeia, poderia ser uma eventual tábua de salvação. Finalmente, uma cidadania europeia poderia dar status, poderia resultar em vantagens práticas (e tolas) como evitar filas em aeroportos, não necessitar de visto para determinados países, enfim, milhares de pequenas coisas que me permitiriam contar vantagem em mesa de bar.

Hoje, finalmente, depois de mais de uma década na fila, tenho o passaporte vermelho e posso me perguntar mais seriamente qual o significado disso tudo. O que significa ser cidadão de um determinado país? Em linhas gerais, pertencemos a um país quando, vá lá, concordamos em ficar: por mais problemas que o Brasil tenha, é aqui que se constituiu meu Ser, através, por exemplo, da memória e da linguagem, esses dois pilares absolutamente essenciais da identidade. Isso para não falar dos afetos.

Todavia, há uma concepção de identidade nacional que parte de um princípio distinto. Ao conceder cidadania para filhos e netos e bisnetos de italianos mesmo que morando em outro país, a lei italiana parte do princípio de que existe uma italianidade que se transmite de pessoa a pessoa – e somente por linhagem masculina, o que, convenhamos, é bizarro –, independente da sociedade em que se vive, da língua que se fala, dos hábitos e costumes, das memórias e afetos construídos ao longo de uma vida.

O princípio é arcaico, e remete a ideias ao mesmo tempo ultrapassadas e perigosas – pois alimentam o racismo –, como a do “direito de sangue”. Acredito que o princípio de uma italianidade hereditária chega a ser contrário ao espírito republicano, uma vez que uma República e suas leis são para todos os cidadãos, independente do sangue e da ascendência. Aqui começa a ser patética minha ambição de levar vantagem em fila de aeroporto, uma vez que parte da rejeição ao princípio republicano que acabei assumindo quando resolvi ser cúmplice e participar do truque de “ser italiano”.

Tento buscar uma saída. Talvez a italianidade não deva ser vista como fruto do “direito de sangue”, mas sim compreendida em chave cultural. Ser italiano e participar de uma família de origem italiana talvez signifique incorporar um modo de vida que tenha lá suas origens na península e que, ao sobreviverem, passaram a fazer parte do meu Ser. Assim, sou italiano não porque tenho um eventual “sangue italiano”, mas porque... porque o quê ? Gosto de fettuccine ? Prefiro sangiovese a merlot ? Transformo o “e” final das palavras em “i” ?

Até concedo que um filho de italiano se sinta italiano e veja na italianidade uma parte de seu Ser. Mas, no meu caso, desconfio que a Itália já ficou para trás.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O Retorno do Ser

“Eu sou...” não se começa uma frase assim impunemente. Dizer “eu sou” traz infinitas implicações e a mais séria delas talvez seja a crença de que o Ser se define pelo próprio sujeito, quando na verdade é bem possível que aquilo que somos só seja efetivamente percebido pelo Outro. “Você é...” certamente causa muito mais preocupação – e está muito mais próximo do verdadeiro - do que um simples e surrado “eu sou”. Aliás, sempre desconfiei das pessoas que insistem em começar frases com "Eu sou...” e chega até a ser meio comum ouvir aqueles que começam frases com “sou o tipo de pessoa que....”. Essas frases costumam ser mais profissões de fé do que qualquer outra coisa – wishful thinking, alguns diriam. Ou então, pura insegurança: tenho que sair por aí dizendo o que sou, caso contrário corro o risco de ser nada.

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Conto pela milésima vez a mesma história, que envolve meu sobrinho (“quando deus não dá filhos o demônio manda sobrinhos”), então com uns 5 ou 6 anos de idade. Sua mãe e sua professora conversavam na saída da escola e eis que a tia diz: “Mas este menino tem muito boa índole !”, ao que a mãe orgulhosa respondeu, “Sim é verdade, ele tem boa índole !”. O moleque, perplexo ficou contemplando os adultos: pois e não é que sua mãe (principal enunciadora da verdade quando se tem 6 anos de idade) e a professora (mãe ersatz durante parte do dia) concordavam que ele possuía boa índole, e o moleque não fazia a mínima ideia do que isso queria dizer. Ou seja, afirmava-se o Ser do pimpolho, mas ao mesmo tempo ele era mantido na ignorância sobre seu significado, uma situação francamente perturbadora.

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O fato é que nos últimos meses, o mundo acabou acrescentando dois novos complementos ao meu Ser. A primeira delas é “Eu sou chefe”, fruto de uma evolução profissional mais ou menos normal ou previsível. Porém, certas coisas mudaram desde que “Eu sou chefe”. Amigos tratam-me diferente, as pessoas em geral tornaram-se mais atenciosas: ouço bom dia onde antes não ouvia, percebo subitamente que minhas piadas tornaram-se tremendamente engraçadas. Além disso, há uma tendência muito maior de as pessoas ouvirem o que eu falo, mesmo com o conteúdo da minha fala permanecendo o mesmo do tempo em que “Eu não era chefe”.

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A nomeação burocrática mudou a minha forma de inserção no trabalho, bem como parte da minha interação social. Querendo ou não, passei a ter nas mãos um certo poder; bem escroto, é verdade, mas ainda assim um poder. Minha fala deixa de ser descompromissada: agora tudo que digo tem efeitos de poder, que podem se realizar ou não. Por exemplo, meu mau-humor matinal, que me levava a dizer raros bons-dias, agora deve ser combatido: não posso ser um “chefe arrogante”. Ou então, quando digo, “Fulano é...” pareço estar enunciando uma sentença, pois sei que cada palavra minha vai ser interpretada, escrutinizada, torturada até que dela se extraiam todos os significados possíveis. Tenho que me policiar, ao mesmo tempo que, querendo ou não, espera-se que eu policie os outros.

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As pessoas me telefonam. Colegas passaram a me procurar, trazendo demandas que já não tem mais nada a ver com a profissão. Colegas com quem pouco conversei nos últimos anos se abrem para mim, até em questões familiares ou emocionais: a posse do poder me transforma em uma figura forte – penso no istos (ιστός) grego – mesmo que eu na verdade continue sendo um ser humano precário, inseguro e chorão.

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Da mesma forma que as pessoas dependem de mim, eu perco a minha independência. Em princípio, sempre valorizei a postura profissional de dizer o que penso, “e se não gostarem, tchau, peço demissão, vocês não me merecem”. Isso já não é mais possível. Há trabalhos em andamento, há projetos (alguns francamente empolgantes) dos quais eu quero participar, eu quero que funcionem como eu pensei. E é aqui que justifico meu poder escroto: com ele tenho a possibilidade de transformar o trabalho em algo estimulante, desafiador, rompendo com a mesmice de anos anteriores. Evito os detalhes técnicos, apenas penso na velha concepção marxista de realização do homem através do trabalho.

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O segundo novo “Eu sou...”, deixo para a próxima semana.