segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Da Razão Prática à Razão Eficiente



Ponto 1

A rede ferroviária alemã sempre foi uma maravilha. Modelo de eficiência, sempre teve como  característica fundamental o cumprimento dos horários e o bom funcionamento geral, e é assim desde sua integração, em 1866, quando foi essencial para o sucesso alemão na Guerra das 7 Semanas. Falando em conflitos, durante a Segunda Guerra Mundial, a rede foi posta à prova de forma absolutamente radical: em meio a ataques aéreos cada vez mais devastadores – que incluíam como alvo entroncamentos ferroviários e pontes – foi  mantido um alto padrão de eficiência. Engenheiros ferroviários estabeleciam previamente soluções de tráfego, os funcionários redobravam sua dedicação e faziam horas extras, os passageiros participavam dos esforços repensando suas rotas, os mecânicos adaptavam composições e os operários reconstruíam linhas danificadas em tempo recorde.

O resultado dessa mobilização foi um triunfo da eficiência: em 1943, mesmo em meio a condições altamente adversas, a média semanal de atrasos era semelhante à da época anterior a guerra. Claro, em meio ao tráfego, incluíam-se os trens de deportados, que levavam sua carga humana para os campos de extermínio, mas pouco importa, pois no que se refere ao funcionamento da máquina, tudo correu sem nenhum transtorno. E, convenhamos: aquele engenheiro ferroviário que puxou a alavanca, desviando a composição para a direção certa, nunca sequer viu um judeu deportado, e considerá-lo como cúmplice do extermínio parece ser um exagero. Ele apenas fez o que devia: foi e-fi-ci-en-te.

O ponto todo é esse. A eficiência só têm sentido se subordinada à reflexão, fundada em um pensamento ético que questiona seus fins. Sem a reflexão, a eficiência – tornada um fim em si mesmo – se presta aos maiores desvios e nos cega diante das piores atrocidades.

Ponto 2

O que se ensina na escola ? Qualquer pessoa com experiência escolar ou que simplesmente acompanhou o crescimento de uma criança, sabe que o conteúdo do que é ensinado vale bem menos do que os exemplos dados, ou a sociabilidade vivida na escola. Os conteúdos escolares aparecem diante de alunos como uma série de objetos, que vão sendo trocados na exata medida em que os professores se sucedem, um após o outro. Aprender esses conteúdos (para ir bem na prova etc.) é uma habilidade que os alunos desenvolvem rapidamente, mas poucos se identificam com o que é ensinado. Em outras palavras, ocorre uma cisão entre o objeto estudado e o sujeito estudante. Suspeito que a própria forma da escola estimula esse distanciamento que, seja qual for sua origem, é evidente. Os conteúdos ensinados não tocam os alunos e dificilmente promovem alguma identificação, e as tentativas de aproximar os conteúdos com o cotidiano dos alunos muitas vezes soam patéticas (por exemplo, o professor de Química que, ao final da aula, anuncia triunfalmente: “E é assim que funciona o detergente !, em meio a bocejos generalizados).

Um caso clássico é o da Filosofia, onde se estuda ética. Assunto tão vital abordado na sala de aula pode ser muito interessante, e não tenho dúvidas que muitos professores enriquecem as aulas e tentam tocar os sujeitos que formam sua “plateia” citando exemplos e propondo impasses éticos para discussão (“Se um médico sabe que matar uma pessoa salva a vida de duas outras, o que ele deve fazer?” etc.). Todavia, dificilmente se “ensina” ética a partir daí. No fundo, a única escolha ética real com a qual o aluno se depara em toda sua vida escolar é “Devo ou não colar na prova ?”, e aqui a ética formal não vai fazer nenhuma diferença.

O ponto todo é que o conteúdo dessa ou daquela proposição que é ensinada (“devemos ser sujeitos éticos” ou “devemos refletir antes de agir”) não vale nada em função da forma como se organiza a escola e de como se justifica o conhecimento.

Ponto 3

Nietzsche, em Aurora (§550):

Conhecimento e beleza. – Se as pessoas, como sempre fizeram, guardam sua reverência e seu sentimento de felicidade para obras de imaginação e dissimulação, não devem surpreender que se achem frias e desanimadas ante o oposto da imaginação e dissimulação. O deleite já vem com o mínimo passo ou progresso seguro e definitivo na compreensão, que da ciência atual já emana abundantemente e para tantos – nesse deleite não acreditam, no momento, todos aqueles que se acostumaram a deleitar-se apenas abandonando a realidade, saltando nas profundezas da aparência.  Eles pensam que a realidade é feia: mas não acham que o conhecimento até da realidade mais feia seja belo, nem que quem sabe muito esteja bem longe, enfim, de achar feio o imenso conjunto da realidade, cuja descoberta sempre lhe deu felicidade. Existe, então, algo belo “em si” ? A felicidade do homem que conhece aumenta a beleza do mundo e torna mais ensolarado tudo o que há; o conhecimento põe sua beleza não só em torno das coisas, mas, com o tempo, nas coisas; - que a humanidade vindoura dê testemunho dessa afirmação ! Enquanto isso, lembremos de um antigo saber: dois homens bastante diferentes, Platão e Aristóteles, concordaram que a felicidade suprema, não só para eles ou para outros homens em geral, mas em si mesma, até para deuses de altas venturas, consiste no conhecer, na atividade de um bem treinado entendimento que procura e inventa (não na intuição, como os teólogos e semiteólogos alemães; não na visão, como os místicos e tampouco no fazer, como todos os práticos). De modo semelhante julgaram Descartes e Espinosa: como devem ter fruído o conhecimento todos eles ! E que perigo para sua honestidade, o de assim tornarem-se panegiristas das coisas !


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