Silêncio
O blog está abandonado. O último post descreveu uma experiência musical ocorrida quase um mês atrás. Talvez haja uma relação entre este abandono e aquela experiência: qual o sentido da escrita diante daquele choque que tive na Toscana, ao mesmo tempo tão descomunal e tão delicado ? Abandonar o blog significa que passei as últimas semanas em silêncio, mas não foi justamente o silêncio uma parte tão forte da última experiência cultural digna de registro ? Talvez, com meu silêncio, eu apenas tente perpetuá-la.
Ao mesmo tempo, os alegres colóquios escassearam. Os últimos têm sido fragmentados, quebrados. Meu desligamento faz com que pesque apenas fiapos de conversa, minhas intervenções se limitam ao mínimo. Na verdade, são colóquios bem pouco alegres, em que me recolho em pensamentos, nem sempre profundos. Seca a fonte da escrita, não consigo nada além de remoer sentimentos íntimos: assim o blog corre o risco de virar confessional (ao mesmo tempo meu maior medo e fonte das maiores repercussões, quando eventualmente desabafo).
A tela do computador se converte subitamente em um espelho, cuja imagem escondo por trás de um véu de silêncio.
O cerebral e o visceral
O blog nasceu sob a égide da música, falando de Richard Strauss e Igor Stravinsky. Vejo que tenho dedicado cada vez mais tempo à música clássica, dita “cerebral”, desde a freqüência a sala de concertos até um surto de ópera nos últimos dias. Constato que minha dedicação à música clássica começou a crescer no momento em que, anos trás, retomei a vida acadêmica justamente na Filosofia. Haveria alguma relação ? Pois a Filosofia me abriu os olhos para as nuances de significados, para a sutileza do pensamento, para o “cerebral” na sua forma mais elevada. Não estou só: Theodor Adorno (filósofo mais citados nessas cyber páginas) dedicou à música uns bons dois terços de sua copiosa obra.
Filosofia é criar conceitos, escreveu Gilles Deleuze em uma de suas páginas mais legíveis. Francisco Bosco, meu filósofo pop preferido, escreveu que o conceito é “uma pequena batalha que se trava em meio ao caos, a fim de fazer dele ressair, por meio de um meticuloso bordado semântico, uma forma luminosa”. Ouço música quando leio essas palavras.
Todavia, sinto falta do visceral. Da boa música trash que todos aprendemos a gostar quando moleques. Do rock, do blues, do funk de boa safra. Em um dos poucos colóquios do Baixo Verão, manifestei meu desejo de ver um bom show, como um dia eu vi o Black Crowes no Pacaembu ou Van Halen no Ibirapuera ou B.B.King no Velódromo da USP ou Otis Rush na Brixton Academy.
Abro o jornal e está lá: Buddy Guy em São Paulo, 26 e 27 de março. Me apresso a entrar no site, garantir os ingressos. Não conheço a casa de espetáculos, ela tem nome de banco. Vejo o mapa: os lugares são em... mesas ! Mesas ! Provavelmente apertadas mesas, com casais desconhecidos no seu nariz, olhando esquisito cada vez que você faz um comentário sarcástico.
Não existe nada menos visceral que uma mesa. Mesas são boas para agradáveis refeições ou alegres colóquios, mesas são ótimas para escorregarmos sob ou rolarmos sobre. Mas ouvir sentado em uma mesa um som visceral como o do “Sujeito Camaradinha” (sim, foi dessa forma que Buddy Guy teve seu nome traduzido um dia no Brasil, para horror dos que ouviram) ! Imagino quando ele soltar seu vozeirão cantando, berrando enlouquecido “THAAAAAANNNNNGS THAT I USED TO DO !”, eu vou fazer o quê na mesa ? Tamborilar os dedos ? Pegar uma azeitona com um palito ? Ou apenas contemplar o casal suburbano se beijando à minha frente, em sua redoma ?
Impossível. Buddy Guy vai ficar para a próxima
O blog está abandonado. O último post descreveu uma experiência musical ocorrida quase um mês atrás. Talvez haja uma relação entre este abandono e aquela experiência: qual o sentido da escrita diante daquele choque que tive na Toscana, ao mesmo tempo tão descomunal e tão delicado ? Abandonar o blog significa que passei as últimas semanas em silêncio, mas não foi justamente o silêncio uma parte tão forte da última experiência cultural digna de registro ? Talvez, com meu silêncio, eu apenas tente perpetuá-la.
Ao mesmo tempo, os alegres colóquios escassearam. Os últimos têm sido fragmentados, quebrados. Meu desligamento faz com que pesque apenas fiapos de conversa, minhas intervenções se limitam ao mínimo. Na verdade, são colóquios bem pouco alegres, em que me recolho em pensamentos, nem sempre profundos. Seca a fonte da escrita, não consigo nada além de remoer sentimentos íntimos: assim o blog corre o risco de virar confessional (ao mesmo tempo meu maior medo e fonte das maiores repercussões, quando eventualmente desabafo).
A tela do computador se converte subitamente em um espelho, cuja imagem escondo por trás de um véu de silêncio.
O cerebral e o visceral
O blog nasceu sob a égide da música, falando de Richard Strauss e Igor Stravinsky. Vejo que tenho dedicado cada vez mais tempo à música clássica, dita “cerebral”, desde a freqüência a sala de concertos até um surto de ópera nos últimos dias. Constato que minha dedicação à música clássica começou a crescer no momento em que, anos trás, retomei a vida acadêmica justamente na Filosofia. Haveria alguma relação ? Pois a Filosofia me abriu os olhos para as nuances de significados, para a sutileza do pensamento, para o “cerebral” na sua forma mais elevada. Não estou só: Theodor Adorno (filósofo mais citados nessas cyber páginas) dedicou à música uns bons dois terços de sua copiosa obra.
Filosofia é criar conceitos, escreveu Gilles Deleuze em uma de suas páginas mais legíveis. Francisco Bosco, meu filósofo pop preferido, escreveu que o conceito é “uma pequena batalha que se trava em meio ao caos, a fim de fazer dele ressair, por meio de um meticuloso bordado semântico, uma forma luminosa”. Ouço música quando leio essas palavras.
Todavia, sinto falta do visceral. Da boa música trash que todos aprendemos a gostar quando moleques. Do rock, do blues, do funk de boa safra. Em um dos poucos colóquios do Baixo Verão, manifestei meu desejo de ver um bom show, como um dia eu vi o Black Crowes no Pacaembu ou Van Halen no Ibirapuera ou B.B.King no Velódromo da USP ou Otis Rush na Brixton Academy.
Abro o jornal e está lá: Buddy Guy em São Paulo, 26 e 27 de março. Me apresso a entrar no site, garantir os ingressos. Não conheço a casa de espetáculos, ela tem nome de banco. Vejo o mapa: os lugares são em... mesas ! Mesas ! Provavelmente apertadas mesas, com casais desconhecidos no seu nariz, olhando esquisito cada vez que você faz um comentário sarcástico.
Não existe nada menos visceral que uma mesa. Mesas são boas para agradáveis refeições ou alegres colóquios, mesas são ótimas para escorregarmos sob ou rolarmos sobre. Mas ouvir sentado em uma mesa um som visceral como o do “Sujeito Camaradinha” (sim, foi dessa forma que Buddy Guy teve seu nome traduzido um dia no Brasil, para horror dos que ouviram) ! Imagino quando ele soltar seu vozeirão cantando, berrando enlouquecido “THAAAAAANNNNNGS THAT I USED TO DO !”, eu vou fazer o quê na mesa ? Tamborilar os dedos ? Pegar uma azeitona com um palito ? Ou apenas contemplar o casal suburbano se beijando à minha frente, em sua redoma ?
Impossível. Buddy Guy vai ficar para a próxima
O segredo do sol e da sombra
“Eu gosto mesmo é da penumbra. Não tenho prazer na sombra nem no sol... gosto da mínima luminosidade possível, apenas o suficiente para reconhecer o formato dos corpos”
Tem feito muito sol. A serena chuva que marcou muitos dias de verão deu lugar a essa luminosidade brutal, que começa desde cedo, que fere os olhos e que às vezes termina em um aguaceiro diluviano. Na Itália era o silêncio e agora, de volta aos trópicos, é a luz que afeta meus sentidos. Lá, a ausência, aqui, o excesso. Me vejo na posição do liberto da caverna: “... se o forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão ofuscados ? Não desviará ele a vista ? ... e quando tiver chegado à luz, poderá com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras ?”(A República, VII). Pois a luz e o calor dos últimos dias me cegam, sem a contrapartida de contemplar o conhecimento verdadeiro.
Na tradição, que remonta a Platão, a luz é sinônimo da razão, da certeza, daquilo que é verdadeiro (e, ao mesmo tempo, bom e o belo). Diante da luz diurna e da luz artificial que copia a luz diurna mesmo à noite, só temos certezas. Conforme escrevo, banhado em luz, sei que meu teclado é um teclado, a tela é uma tela. Porém, se privado de luz, vejo minhas certezas se esvaziaram. As coisas não são mais o que parecem, o teclado subitamente pode ser um piano ou uma caixa de peças quadradinhas, a tela pode ser um quadro, uma janela ou, mais do que nunca, um espelho.
Às vezes, anseio pela penumbra.