domingo, 8 de fevereiro de 2009

"Essa maldita sensação de liberdade..."



San Gimignano é uma pequena cidade da Toscana com seus poucos mil habitantes, dos quais um punhado ainda vive dentro do centro histórico, cercado de muralhas. Sua principal característica são as maciças torres de pedra, que já fizeram a cidade ser chamada, com alguma ironia, de “Manhattan-in-Tuscany”. De fato, apesar de terem sido construídas sobretudo no século XIII, muitas das torres permanecem até hoje, criando um curioso “skyline” para quem vê a cidade de longe, no topo de uma colina, na estrada que vai de Florença para Siena. As famosas torres foram construídas como medida de defesa das casas de família em caso de lutas internas. Com o tempo, passaram a ser consideradas símbolos de prestígio, havendo inclusive disputas pela construção da torre mais alta. Das 72 torres do seu apogeu restam hoje 14, mais a Rocca di Montestaffoli, espécie de baluarte defensivo comum, encravado na muralha da cidade.

Visitar uma cidade como San Gimignano no inverno tem vantagens, sendo a principal delas a ausência dos turistas que ocupam ruidosamente todas ruas e os locais de interesse durante o verão. Em fevereiro, pode-se conhecer melhor a cidade e seus becos vazios, suas igrejas desertas e suas casas de pedra, suas torres imponentes e seus poços desertos (turistas não podem ver uma fonte ou um poço que já se precipitam em atirar moedas, acotovelando-se ruidosamente).

Em San Gimignano, no inverno, impressionou-me o silêncio. No alto das ruas estreitas, apenas o gralhar dos corvos, voando em bando de uma torre para outra. Chegando na Rocca, o silêncio era tão grande que por um instante tive a estranha sensação de ser simplesmente... surdo ! Tive que bater com o pé no chão para confirmar que ainda era capaz de ouvir algo.

Mas a Rocca trouxe-me outra surpresa. Quando cheguei, vi uma moça vestida com trajes medievais sentada em um muro baixo, ao lado de uma harpa. Percebi logo que não era alucinação, pois ao seu lado havia uma pequena mesinha, onde ela exibia e vendia seus CDs. Cena comum em locais públicos, por mais que a Rocca estivesse deserta. Em silêncio (muito silêncio), ela apenas me observava, única pessoa à sua frente. Caminhei até a cisterna, sentei na sua borda e observei a paisagem da Toscana através de uma brecha da muralha (mais ou menos a foto acima).

Foi então que aconteceu. Enquanto contemplava os campos da Toscana, o silêncio passou a ser ensurdecedor. Uma brisa fria começou a soprar no meu rosto, senti meu pé afundando na grama meio molhada e, subitamente, a Mulher Medieval soltou a sua voz. Deixando a harpa de lado, ela entoou o mais belo canto que jamais ouvi. Uma canção melancólica - com sonoridades medievais, certamente - e uma bela voz de soprano, pura, sem nenhuma interferência, sem nenhum outro som que não fosse sua voz clara, limpa, perfeita. O vento soprava na sua direção, talvez fazendo com que cada nota, ao chegar aos meus ouvidos, permanecesse um pouco mais de tempo no ar, criando um efeito jamais encontrado em nenhuma sala de concerto. Nesse momento, atravessei minha cascata de luz. A intensidade das sensações que me afligiam era tão grande, que por um instante suspendeu-se meu estado de consciência. Me entreguei a elas e por uma fração de segundo, minha mente ficou desguarnecida, perdi o controle sobre meus pensamentos. E nesse instante, abriu-se na minha frente o meu Aleph pessoal: um turbilhão de imagens, dezenas, centenas, milhares de imagens, uma sobre a outra, todas misturadas, superpostas, porém perfeitamente distinguíveis.

[Pausa. Fala o coro: nunca tive a ambição de redigir um blog confessional, mas... como não compartilhar essa epifania ? Devo prosseguir ? Devo seguir adiante descrevendo o conteúdo das imagens que apareceram na minha frente, mesmo sabendo que isso significa um tipo de confissão, incompatível com o grau de publicidade de blog ? Pois vá lá, prossigo.]

Vi dezenas, centenas de rostos, não sei quantos, todos ao mesmo tempo. Uns maiores outros menores, uns mais nítidos outros não. E eram os rostos de pessoas de quem gosto, talvez de todas as pessoas que amei ou que me amaram na vida (ou que amarei ou que me amarão). E elas apareceram juntas na minha frente, como se eu as trouxesse para perto de mim de muito longe, como se minha mente, livre de todo controle, expressasse o meu desejo mais íntimo: a proximidade das pessoas, o afeto de que todos precisam. Como na frase de Camus, eu instintivamente retornei ao meu lugar de origem: não necessariamente um lugar no espaço, mas um lugar afetivo, construído por uma teia de relações familiares, amorosas e de amizade, construídas ao longo de uma vida, e do qual eu estava tão distante naquela hora.

E foi uma experiência estética (musical) que me deu abertura para essa visão. Ou melhor: foi uma experiência total, mais do que apenas estética, mas sensorial, que eu sabia que só seria perfeita se compartilhada com os que amo. Longe de todos, livre, independente, não consegui expressar mais nada senão o desejo de compartilhar essa experiência, ou de torná-la completa com a presença dos que amo (e que são ao mesmo tempo a maior riqueza e uma grande fraqueza).

Repito, a experiência toda durou uma fração de segundo, tento eternizá-la com as palavras. Quando o canto da Mulher Medieval se encerrou (tão rápido !), quando outras pessoas entraram no pátio da Rocca e juntaram-se a mim, quando minha consciência retomou o controle sobre minha mente, tudo já havia passado. Lembrei os versos de Goethe, no Fausto:

Zum Augenblick, dürfte ich sagen:
Verweile doch, du bist so schön !
(Queria dizer ao momento que passa:
Pois eternize-se, és tão belo !)


Sorri e segui em frente.

15 comentários:

Unknown disse...

Droga, nunca sei o que comentar,
Mas no final vc comprou o cd dela?

Juliana I. disse...

Gian, se já foi intenso o seu relato, posso imaginar o quão foi plena essa sua sensação. E tão fascinante quanto o que você relatou foi a forma como escreveu. Emoção a cada palavrinha. Demais...

Renata M. disse...

Lindo....e o mais legal é que foi algo que vc nunca mais vai esquecer.

Beijos da menina que grita.

Unknown disse...

Gian morri de vontade de estar nesse lugar....acho q nao tem nada melhor do que sentir essas confusas sencacoes q normalmente são inesplicaveis e maravilhosas!E tudo isso se completando com essa vista que o permitia estar sozinho com vc msm!

Unknown disse...

Nossa. Sem palavras.

Suma disse...

Deve ter sido realmente assombroso. Lugar maravilhoso, música maravilhosa... Só posso imaginar a intensidade do momento.

Fui fazer matrícula hoje no prédio de história e geografia da FFLCH e lembrei muito de voce Gian, haha. Obrigado!

Vinicius disse...

Uau... Acho difícil conseguir comentar sua epifania. Sobre essas teias que nunca se apagam em nós, mas gostaria de dizer que talvez eu entenda, só um pouco seu momento de plenitudade!!

Sentirei falta de suas aulas!

Abeaços

Gloriannu disse...

Gian, parabéns pelo blog.
Seus textos são muito bons e me fazem pensar em muita coisa. Pretendo, mesmo como ex-aluno agora, continuar frequentando "alegres colóquios".

Anônimo disse...

haha eu também quero saber o que a Dani Lie perguntou, vc acabou comprando o cdzinho dela?

esse trecho aqui: "Longe de todos, livre, independente, não consegui expressar mais nada senão o desejo de compartilhar essa experiência, ou de torná-la completa com a presença dos que amo" me lembrou aquele filme sobre o garoto que saiu da faculdade pra cair na estrada e seguir uma Grande Aventura Rumo Ao Alaska! o ator do filme é o Emile Hirsch e acho que o nome em português é "Na Natureza Selvagem".

Willzito disse...

Vc nao ta dizendo q passou por isso tudo e nao comprou o cd neh?? "Sorri e segui em frente."
Caso tenha comprado, a musica q ela cantou tinha no cd??

Gian disse...

Ah, mas se eu comprasse o cd o troço iria perder todo encanto e a magia. Primeiro porque eu teria que CONVERSAR com a moça, e ouvir sua voz falando comigo, e ela diria coisas rudes como o preço e "muito obrigado". Ela deixaria de ser, na minha lembrança, algo como um espectro, uma aparição, ela se tornaria humana demais.

Segundo, porque o que eu faria com o cd ? Ouviria aquela música tomando banho ? Lavando louça ? No carro, no trânsito ? Não, deixa ela como está na minha memória. Um dia vou perdê-la, paciência.

Unknown disse...

conheço bem essa frase...rs.
bjo
marina

Unknown disse...

cadê a atualização?? =/

Sentir disse...

É o momento do sempre no nunca...comentado por Paloma.

Rebecca disse...

Tão lindo... arrepiou-me a espinha!!!
Tô com mta saudade de vc e de suas aulas.

Du bist so schön !!

Um beijo ENORME