Aos 14 anos, eu me achava o máximo da malandragem ao cortar o cabelo no glorioso “Aqui Jazz – Cabeleireiros”, que existe ainda hoje diante do Cemitério da Aclimação. O local atraía todo o tipo de doidões e esquisitões do bairro, bem como qualquer jovem cabeludo que se achasse alternativo. No meio desse verdadeiro circo, despontava a figura do proprietário, o Magrão, sempre acompanhado de seu fiel braço direito, o Ameba, que eu desconfiava estar eternamente chapado.
É estranho que os cabeludos do bairro tivessem como ponto de encontro justo uma barbearia, mas isso diz muito sobre o frouxo grau de radicalismo dos jovens de classe média da época. Os anos de ouro do Movimento Jovem já haviam acabado há muito e, sob o peso da repressão dos últimos anos do Regime Militar (por essa época, também bastante frouxa), nosso radicalismo se limitava a ouvir discos de rock, dos dinossauros do rock (The Who, Deep Purple, Led Zeppelin) e a olhar com desprezo a moçadinha que ia dançar nas tardes de sábado ao som da disco music de então (Donna Summer, Sylvester e – deus me livre ! – Bee Gees). No "Aqui jazz", preferìamos aquelas bandas que dificilmente tocavam no rádio, exceto por uma ou outra baladinha besta do tipo Stairway to heaven. E, claro, nada de jazz.
Na época, quando se falava em jazz, eu pensava em algo do tipo dixieland, que era cultivado por umas poucas bandas em São Paulo. Das atrações estrangeiras que aqui chegavam, quase todas se esmeravam no fusion ou em outros sons experimentais e, convenhamos, começar a ouvir jazz por aí é um tiro no pé. Nunca esqueço um show de Chick Corea, transmitido pela TV Cultura, quando o músico americano sentou-se diante de um magnífico piano de cauda, inclinou-se diante de sua tampa aberta e começou a batucar na madeira do piano, para delírio da platéia e minha perplexidade total. Eu ainda levaria anos para conhecer o verdadeiro jazz, que foi vanguarda nos anos de 1920 e 1930, e que acabou dando origem a bebop, west coast e outras maravilhas.
Porque o jazz é feito de nuances, e pedem um ouvido minimamente competente. Da minha precária formação musical, resultou o longo tempo que levei para educar os ouvidos, sem método nenhum, sem conhecimento técnico, apenas ouvindo milhares e milhares de músicas, de todos os tipos, sem parar, ao longo de muitos anos. Acredito que todas as pessoas que gostam de música um dia chegam no mesmo ponto e passam a ouvir música adulta, jazz, ou mesmo música clássica.
Na verdade, não só o jazz, mas o mundo é feito de nuances, e é pena que elas se percam por simples desconhecimento. Nas aulas, enfatizo as nuances e as múltiplas leituras de obras de arte, eventualmente de uma ou outra música, do clássico ao blues. Mas não são apenas quadros, todo a natureza, todas as pessoas podem ser lidas de mil formas. Recentemente, em um alegre colóquio, até me falaram sobre as múltiplas leituras que são possíveis a partir da observação de um olho e de suas sutis mudanças de cores.
[Interlúdio pop: lembram-se do filme A garota com o brinco de pérola ? (se não conhecem, assistam). No filme, o pintor Vermeer diz para a jovem Griet (Scarlett Johansson, em um de seus primeiro papéis) olhar o céu e dizer a cor das nuvens. A moça, mal olhando pela janela diz, “Oras, elas são brancas”. Porém o pintor insiste e diz, “Olhe bem, olhe com atenção. Todas elas. São brancas mesmo ?” E o olhar da jovem Griet começa a perceber milhares de nuances e reflexos e texturas que ela, maravilhada, jamais havia percebido. Pois o grande livro do mundo nos fala o tempo todo, e é inesgotável a reserva de símbolos que ele emprega, como dizia o frei Guilherme em O Nome da Rosa. Ainda no registro da cultura pop, lembro de um episódio de Sex and the City, quando Carrie namorava um músico de jazz. Ele pergunta se ela gosta desse tipo de música e ela diz, “mas como vou gostar de um tipo de música que não se pode cantar junto, não se pode dançar ?” Trata-se de outra relação com a música, válida (por que não ?), mas que nada tem a ver com a sutiliza instrumental do jazz. Me arrisco a dizer que talvez mulheres se liguem à música com mais facilidade através de outros registros, por exemplo, o corpóreo: através da Dança.]
Porque o jazz tem alma. Assim como o blues, uma mesma canção de jazz é diferente cada vez que é tocada novamente. São os mesmos acordes, a mesma letra, a mesma tudo, e ainda assim a música sai diferente. Paradoxalmente, na música pop, canções diferentes parecem ser todas a mesma coisa. É por isso que muitas vezes os CDs de jazz apresentam, por exemplo, música 1, “Bag’s Groove – take one”; música 2, “Bag’s Groove – take two”; música três, “Bag’s Groove, take three”, e assim vai.
E porque é impossível falar do jazz sem falar da história do jazz (enquanto boa parte da música pop se resume ao mero aqui agora). Me encanta a história da disseminação do jazz, de como ele foi sendo descoberto no mundo inteiro. A Primeira Guerra Mundial foi decisiva, quando soldados norte-americanos (incluindo cerca de 200 mil negros) foram para a Europa, particularmente para a França, levando suas armas e seus instrumentos musicais. Após o conflito, muitos músicos negros ficaram, outros para lá se mudaram, fugindo da segregação racial e criando uma nova vida, com muito mais dignidade. Como o clarinetista Sidney Bechet e o trompetista Arthur Briggs, aos quais se juntou a cantora e dançarina Josephine Baker, todos atuando em Paris.
Na Alemanha, o jazz foi copiado por músicos brancos, e mais tarde acabou sendo considerado uma arte degenerada pelo regime nazista recém instalado; vejam no magnífico poster acima, como o jazz era visto pelos alemães. Na União Soviética, o grande desenvolvimento da música clássica sempre foi acompanhado da dedicação de seus músicos ao jazz, nas horas vagas. A cidade de Odessa, chegou a ser conhecida durante algum tempo como a New Orleans soviética, onde despontava a banda de Leonid Utyosov.
No início da Segundo Guerra Mundial, o gênero já estava estabelecido, e pode-se até dizer que o swing de bandas como a de Benny Goodman e Glenn Miller (que morreu na guerra) foram a trilha sonora do conflito. Mas nessa época já estava nascendo o bebop e, da mesma forma que no final da Primeira Guerra, ao final da Segunda não foram poucos os americanos que ficaram pela Europa, voltando a encher de jazz os cabarés esfumaçados de Berlim e Paris da Guerra Fria. Nessa época, mudou-se para Paris o saxofonista Johnny Griffin, e Sidney Bechet começou a ser chamado de “Le dieu”/“o Deus” pelos existencialistas. Também nessa época, Josephine Baker foi condecorada pelo próprio general De Gaulle, pelos serviços prestados junto à Resistência Francesa contra os nazistas.
Finalmente, chego onde queria: há cidades que incorporaram uma vocação jazzística, e Paris é, de longe, a mais importante delas. Outrora, os bares de jazz se multiplicavam na região de Montmartre, hoje em dia já é mais difícil encontrá-los. Mas, quando viajo, ainda gosto de freqüentar um ou outro porão onde se toca o bom jazz em Paris (e a aproximação da viagem do Anglo para a França me faz pensar se devo levar os jovens para algum desses adoráveis buracos). Para sentir o gosto do ambiente de jazz na capital francesa, recomendo uma das melhores programações de jazz do rádio, em http://www.tsfjazz.com/ (clique em “écouter l’antenne”). E divirtam-se.