domingo, 11 de outubro de 2009

Refletindo sob(re) a chuva



Mal tinha dez anos quando comecei a falar da “minha chuva preferida”: é aquela que aparece nas primeiras páginas de “O Caso Girassol”, 17º volume das aventuras de Tintim, na edição cânone de 22 álbuns. Trata-se de uma narrativa soberba, poucas vezes um autor de história em quadrinhos foi tão feliz quanto Hergé na abertura de “O Caso Girassol”. Para recordar, a história começa com Tintim e o Capitão caminhando serenamente pelo campo, quando são surpreendidos pelo trovão que anuncia uma tempestade. A chuva marca o início de uma sucessão de fatos tremendamente perturbadores, que incluem raios cada vez mais próximos, corte na energia elétrica, chegada de personagens misteriosos e ameaçadores, tiros no parque, buracos de bala, vítimas que desaparecem e, sobretudo, vidros se estilhaçando por todos os lados. Todo o universo tranquilo e muito bem conhecido do castelo de Moulinsart desmorona a partir do início da tempestade.

Garoto, eu corria para reler pela centésima vez “O Caso Girassol” cada vez que uma tempestade de verão se anunciava. Tinha um estranho prazer em começar a ler a aventura ao mesmo tempo que percebia as inúmeras mudanças provocadas pelo início iminente da chuva: o vento morno que precede as tempestades de verão, portas e janelas batendo, gritos vindos dos fundos das casas vizinhas, na medida em que as donas de casa corriam para pegar a roupa estendida no varal. Logo, gotas imensas começavam a cair, lentamente preenchendo todo o espaço do chão seco, ao mesmo tempo em que um cheiro único, indescritível, se desprendia do chão, algo como uma mistura de vegetação e de pedra, mofo, cimento.

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Que estranha atração é essa que a chuva provoca ? Além de estranha, inesperada: apenas recentemente, graças ao Twitter, descobri como as pessoas gostam da chuva, anseiam pelo início da chuva e talvez de alguma forma se descubram sob a chuva. Na minha vida, fui acrescentando várias outras chuvas ao meu repertório de preferidas: a chuva ácida que cai sobre Los Angeles no futurista Blade Runner, a chuva interminável sobre Macondo em Cem Anos de Solidão. Ou ainda em um esquecido filme francês da década de 1950, Rififi. Seu diretor, o norte-americano Jules Dassin, fugitivo do macartismo, recriou a atmosfera do film-noir em Paris, fotografando a cidade de forma única: sem nenhuma das paisagens que fizeram a fama da cidade, mas apenas mostrando uma sucessão de ruas sempre molhadas, sempre após a chuva, sempre em preto e branco. (Subitamente, lembro de Walter Benjamin falando sobre a beleza do Sena: o rio é belo porque reflete a cidade, duplicando Paris).

Porém, as descrições de chuva na Lisboa de Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa) são particularmente tocantes. Copio fragmentos de uma de suas descrições da chuva, no caso, de um final de tempestade:

Depois que os últimos pingos da chuva começaram a tardar na queda dos telhados (...) ouviu-se o abrir de janelas contra o desesquecimento do sol. Então, pela rua estreita, do fundo da esquina próxima, rompeu o convite alto do primeiro cuteleiro, e os pregos pregados nos caixotes da loja fronteira reverberaram pelo espaço claro (...)

O silêncio que sai do som da chuva espalha-se, num crescendo de monotonia cinzenta, pela rua estreita que fito. Estou dormindo desperto, de pé contra a vidraça, a que me encosto como a tudo. Procuro em mim que sensações são as que tenho perante esse cair esfiado de água sombriamente luminosa que destaca das fachadas sujas e ainda mais, das janelas abertas. E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou (...)

Mas que pensava eu antes de me perder a ver ? Não, sei. Vontade ? Esforço ? Vida ? Com um grande avanço de luz, sente-se que o céu é já quase todo azul. Mas não há sossego – ah, nem o haverá nunca ! – no fundo do meu coração, poço velho ao fim da quinta vendida, memória de infância fechada ao pó no sótão da casa alheia. Não há sossego – e, ai de mim !, nem sequer há desejo de o ter...

Foram esses trechos que me ajudaram a refletir sobre a chuva. O início e o fim da chuva são dois momentos em que o mundo – ou , mais precisamente, a cidade – se transforma diante de nossos olhos. Trata-se, portanto, de dois momentos privilegiados para contemplar o mundo a nossa volta e entendê-lo, talvez até a achar nosso lugar dentro dele. O início ou o fim da chuva representam um limiar, em que nossa faculdade de observação e compreensão das coisas é despertada: é quando desaparece o nosso olhar "de sempre", desprovido de sentido, com o qual contemplamos uma realidade cotidiana que se repete infinitas vezes e no qual estamos imersos. Em outras palavras, desaparece um olhar que é pura objetividade, e que nos mostra uma sucessão de atividades banais, de coisas entediantes e repetitivas que fazem grande parte de nosso dia a dia. Quando ultrapassamos o limiar, graças as mudanças provocadas pela chuva, emerge nossa subjetividade, que acaba por dar contexto e significado às coisas, que nos faz descobrir um sentido que está oculto na banalidade que, descobrimos, é só aparente. Assim, a paisagem vista pela janela mil vezes da mesma forma passa a apresentar uma multidão de figuras novas: o grito do cuteleiro, o martelar de pregos (ou mesmo a corrida da dona de casa rumo ao varal de roupa) todos eles vão ganhando forma e ocupando o universo das sensações a nossa volta, mais ou menos como um artista começa a despejar cor sobre uma tela. A cidade vai tomando forma como um organismo vivo diante de nossos olhos, e as infinitas particularidades que acabam por formar o todo, perdem o seu caráter de forma única a passam a ser uma construção cultural, um sentido.

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Volto para o Tintim. Na página 2 de “O Caso Girassol”, a chuva despenca com intensidade, e fatos perturbadores logo irão começar. O primeiro deles encontra-se no último quadrinho da página, um dos meus quadrinhos preferidos em toda obra de Hergé, e cujo significado total eu demorei a perceber. Na imagem, Tintim, o Capitão e o “bravo” Nestor correm da chuva, sem saber que estão sendo observados por um espião da Sildávia. Mas, no mesmo quadrinho, um espião da Bordúria observa o espião sildavo que observa nossos heróis. E, nessa estranha operação do olhar, nesse verdadeiro ziguezague de olhares que se superpõem sem nunca se cruzarem, há ainda um outro: o do leitor, que é o único que tem conhecimento do que acontece, o único que vê tudo.

Ter a experiência da chuva nos dá a ilusão de poder tudo saber, de quem sabe poder construir o mundo onde estamos, a partir de seu aparente desmembramento. E isso é o que mais desejam todos aqueles amantes da chuva, que não superaram a sensação de estranheza e desassossego que é estar no mundo.

10 comentários:

Willzito disse...

Vc poderia pegar o post do AMOR e da TRISTEZA pra fazer esse da chuva. Chuva lembra o amor, beijar ou chorar pelo amor perdido na chuva =)
Eu adoro chuva, seja com Sol ou chuva em dias cinzas. Sempre procuro estar fora de casa quando chove, se estou em casa no momento da chuva sinto q o mundo acontece e estou parado. Ja estive feliz e triste em momentos d chuva, ja brinquei na chuva, ja torrei meu celular num temporal, ja cai, ja tomei chuva d proposito. Chuva é algo romantico, alguns beijos na ficçao acontecem na chuva, cenas marcantes do cinema sao na chuva. Nao sei se é pq estou com calor, ou por adorar chuva, ou pq vc disse no twitter q ta esperando a chuva, mas eu tb to esperando.... Alias chuva e frio pra mim é o ideal.
Fa che piova...

Unknown disse...

Acho que a chuva provoca deslumbramento e introspecção em quase todos nós, e isso é algo tão universal e facilmente compreensível que em várias representações artísticas ela é relacionada a emoções: em "Vidas Secas" é um motivo de festa e provoca o surgimento de um sentimento de esperança na familia de retirantes; em romances é associada a paixões (o tradicional beijo na chuva; quando em alto mar provoca tormentas e desespero; em dramas provoca reflexão e está frequentemente ligada a tristeza; e curiosamente ja provocou até riso, numa cena hilária de "friends" que faz uma parodia da chuva dramática... enfim, a chuva tem algo de extraordinario que mexe com nosso interior... talvez seja o modo como aparece repentinamente, da mesma forma que aparecem, as vezes, todas essas emoções.

Alias... adoro chuva!!!

sumasumares disse...

Também acho interessante ver as reações das pessoas à chuva. Algumas continuam o que estão fazendo, outras aceleram o andar pra não se molhar, outras procuram desesperadamente alguma cobertura. Acho que, nesse momento, algo de íntimo e particular de cada pessoa se revela.
Me lembro a cena, besta talvez, mas interessante: um dia, eu e uma menina corriamos para fugir da chuva. No meio do caminho, já ensopados, desencanamos e começamos a jogar água um no outro. Foi imensa a sensação de intimidade. como se todos os problemas da chuva (molhar a roupa, desarrumar o cabelo, etc) fossem uma mera idiotice da sociedade, e que ninguém se da conta do quão mágico é o fato: está caindo água do céu.

Unknown disse...

lembro que, até alguns atrás, sempre q eu acordava num sábado ou domingo chuvoso, imediatamente eu sentia algo estranho (ainda deitado), e q se aproximava dessa descrição do Bernardo Soares: "E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou"

lembrei tbm da música "Ladeira da Memória" do Grupo Rumo (não sei se vc conhece), q aborda o tema de maneira mais "leve" e simples. Se quiser ouvir:
http://www.youtube.com/watch?v=H20t4nn_t54

Roberta disse...

Com ou sem dilúvios emocionais, sempre te vejo no reflexo das ruas molhadas, em noites chuvosas. (Vide e-mail de 13/3/2008!)

Sentir disse...

o importante é evocar um sentir.

Gian disse...

Me pergunto se o fascínio com a chuva é universal. Acho que, por exemplo, na Bélgica (onde chove à beça) ou na Índia (das monções) niguém vê nada muito mágico em água que cai do céu. Me pergunto até se nós, brasileiros, não gostamso da chuva por causa de um certo peso que o Sertão tem em nossa cultura.

Já a música indicada pelo Heitor é uma graça, foi bem isso que eu quis dizer quando comecei a falar de chuva.

Unknown disse...

Olha ela aí!!A chuva.Uma noite de insônia faz bem, afinal.Em plena 2 da matina e eu comentando aqui.

"A cidade vai tomando forma como um organismo vivo diante de nossos olhos..."
O sinal de que a chuva está chegando, provoca em mim aquela sensação de que a cidade tem vida realmente.Estamos sempre na rotina, e a chuva nos lembra de que a cidade pode mudar.Ela se tranforma ao receber as primeiras gotas.

E peça ao senhores Allen e Pamuk um pouco dos direitos, G. Eles bem que andaram fuçando nesse seu post. =)

Cold Heart disse...

Certa vez, li que a chuva desnuda as pessoas. Desfeita a maquiagem, é possível ver se a beleza da pessoa é verdadeira ou não, se o que ela quer mostrar ser é o que ela realmente é.

Chuva também é uma forma de ilustrar o sentimento de liberdade. Uma cena bastante viva é aquela de "Um Sonho de Liberdade": depois que o Andy percorre o túnel, o esgoto, se esfrega e finalmente se vê livre da prisão, estende os braços e recebe a chuva sobre o rosto, liberto. A impressão que fica para o telespectador é que a chuva o lavou, o refez.

Também tem aquele quê de Romantismo, aquela relação de cumplicidade entre a Natureza e o eu lírico. Quando ele está triste, chove, como se a Natureza partilhasse da tristeza e chorasse com ele. Ex de filme: MIB II. Ou, de certa forma, High Fidelity. Chuva aumenta o drama do mocinho do lado de fora da casa, no orelhão, falando ao telefone com a ex-namorada observando a sua sombra na cortina.

A chuva, assim como lava, limpa, esclarece e revela, também esconde e tem seu quê assustador.
Imagine-se só, com uma pesada chuva caindo. O som de passos se aproxima da sua porta, mas você não ouve: o som da água caindo o abafa. A porta se abre lentamente, sem fazer ruído. Uma pessoa caminha lentamente até a sua cama, onde você dorme, deixando um rastro de água no carpete. Um brilho metálico surge ao alto. Um golpe. Sangue quente molha o lençol. Uma respiração ofegante tenta se fazer ouvida e, no meio da visão nebulosa, você vê um rosto. Os seus olhos se dilatam e, antes que se fechem, recebe um beijo úmido e gelado na fronte.
Esse foi um dos sonhos mais estranhos que já tive. Na época, achei perturbador. Hoje, sei lá o que acho. Enfim. Perdi o fio de pensamento sobre a chuva....

Cold Heart disse...

Chuva lembra arrependimento.
Chuva lembra cartas escritas numa tarde cinzenta.
Chuva lembra panquecas de banana.
Chuva lembra morte.
Chuva lembra limpeza dos pensamentos.
Chuva lembra Alcatraz.
Chuva lembra chá morno e livro.
Chuva lembra cochilo à tarde abraçado com alguém.
Chuva lembra poesia.
Chuva lembra choro escondido no travesseiro.
Chuva lembra bolo recém-assado.
Chuva lembra tranquilidade.
Chuva lembra 5ª Sinfonia de Beethoven.
Chuva lembra desenhos feitos com carvão.
Chuva lembra tragédia.
Chuva lembra Peter Rabbit e seus amigos.
Chuva lembra solidão.
Chuva lembra Napoleão em Elba.
Chuva lembra paixão voraz.
Chuva lembra Drácula.
Chuva lembra felicidade.
Chuva lembra... Chuva lembra muita coisa. É um símbolo universal e pode ser relacionada com tudo e qualquer coisa. Vai ver é por isso que nutrem por ela certo... Fascínio, como foi dito anteriormente. Por mais ordinária que ela seja, há sempre algo diferente nela. E algo sempre acontece quando chove.