sábado, 17 de outubro de 2009

Do não-negativismo enquanto paradigma



Gostei da escolha do Rio de Janeiro como sede da Olimpíada de 2016, mas não pelos jogos em si, que acho uma bobagem entediante. Em geral, considero os esportes olímpicos de uma tremenda infantilidade: apostar corrida, ver quem pula mais alto, ver quem é mais forte. Tais modalidades Olímpicas são simples celebrações da força bruta, e convém lembrar que Jogos Olímpicos nasceram (Grécia Antiga) ou renasceram (Europa, 1896) em épocas marcadas pela valorização da guerra ou da figura do guerreiro habilidoso, algo que, sinceramente, já deu o que tinha que dar. Acredito que hoje em dia as Olimpíadas (e mesmo o futebol) se consolidam devido à possibilidade que esses eventos têm de transferir para arenas neutras um certo furor nacionalista (proto-fascista) que de alguma forma todos possuímos, sublimando assim o nosso eventual e sempre desconfortável desejo de sangue. (ando lendo muito Luis Felipe Pondé, raios...)

Desprezo esportes olímpicos da mesma forma que na infância não achava graça nenhuma em apostar corrida (eu sempre perdia; hoje em dia me vingo escrevendo um blog). A melhor crítica ao esporte que vi está em um dos meus filmes preferidos de todos os tempos, que é também um dos cinco filmes que eu levaria para uma ilha deserta (e que, curiosamente, trata de uma ilha deserta ), chamado Man Friday (no Brasil, Sexta-feira). Há um trecho absolutamente impagável de competição esportiva, uma corrida na praia entre Robinson Crusoé e Sexta-Feira, seguido de uma premiação patética ao som do grito das gaivotas. Mais eu não conto, apenas recomendo VIVAMENTE o filme.

Esportes com bola, por sua vez, tem outro significado. Primeiro porque incorporam um aspecto lúdico, de diversão, que vai muito além das brincadeiras infantis baseadas na força. Segundo, porque esportes com bola possibilitam uma enorme gama de movimentos corpóreos, que acabam muitas vezes por aproximá-los da dança, antítese da força bruta. E, finalmente, porque implicam em algum tipo de planejamento ou de estratégia para a vitória que traz junto alguma atividade do pensamento. Nesse sentido, esportes com bola têm como pré-requisito algo de minimamente cerebral, e não deixa de ser irônico observar que jogadores de futebol semi-alfabetizados e nada intelectualizados sejam dotados de uma capacidade de processamento de informação (articulando espaço, tempo, movimento) absolutamente surpreendente.

Isso para não falar das infinitas metáforas. A multiplicidade de eventos possíveis em uma mera partida de futebol abre-se para leituras que admitem “o épico, o trágico, o lírico, o cômico e o paródico”, citando o livro de José Miguel Wisnik, Veneno remédio: o futebol e o Brasil. Trata-se de um livro indispensável, de que se falou tão pouco, mas que deveria ser leitura obrigatória para entender o país, o esporte. Vejam por exemplo, os trechos brilhantes onde Wisnik comenta a Lógica do futebol, a onisciência do juiz e a questão do tempo.

Curiosamente os esportes com bola norte-americanos ainda se prendem à celebração da força bruta. Assim, no futebol americano, trata-se do embate puro e simples de dois corpos coletivos em função da ganho de terreno (diante do futebol americano, o Rugby passa a ter uma leveza insuspeita). Ou mesmo o baseball e o basquete (o mais plástico de todos os esportes norte-americanos), que são praticados de forma a repetir infinitas vezes um repertório reduzido de movimentos, produzindo dados em larga escala e permitindo o processamento desses dados em séries estatísticas infinitas. No futebol, séries estatísticas tem algo de patético e não costumam dizer nada.

Seja como for, celebro a escolha do Rio de Janeiro como sede olímpica por dois motivos que nada tem a ver com o esporte. Primeiro, porque nossas cidades estão tão degradadas, mas tão degradadas que qualquer operação urbana torna-se indispensável, nem que para isso tenha que haver uma Olimpíada. Um evento como esse ajuda a pensar a cidade, a refletir sobre o tecido urbano. Um evento como esse significa que o mundo vai pousar os olhos sobre a cidade e, o que temos a oferecer ? Falta de metrô ? Fiação elétrica em postes ? (minhas duas atuais nêmesis...) Intolerável ! Pois então pensemos na cidade e mãos à obra. “Ah, mas a roubalheira...”, isso é outro problema, que deve ser encarado com Olimpíada ou sem Olimpíada. E que o imenso volume de recursos mobilizados seja motivo para que se encare o problema como nunca.

Porém, há um outro aspecto no Rio de Janeiro enquanto cidade olímpica. Nos últimos anos, as sedes de Olimpíadas ou são cidades normais de países em condições de receber tal tipo de mega evento (Londres, Sydney, Atlanta, Barcelona), ou cidades simbólicas (Atenas e não há outra), ou cidades emergentes, de países cuja “normalidade” é reconhecida (Seul, Pequim). Não tenho dúvida sobre o grupo onde Rio de Janeiro se encaixa. Pois há no ar esse estranho otimismo em relação ao Brasil, esse estranho reconhecimento de que o país, apesar dos seus problemas, é como os outros, e respeitável a ponto de sediar um evento como a Olimpíada.

Trata-se de uma mudança de paradigma. Nos acostumamos a pensar o Brasil como um lugar onde nada dá certo e, de fato, nada deu certo nas décadas de 1980 e 1990. Foi a época da grande estagnação (e, que lindo, também foram meus verdes anos !), que se prolongou até o início do novo século e que fez com que adotássemos o pessimismo realista como forma de enxergar o Brasil. O último momento de otimismo, o milagre econômico dos anos 1970, provou ser uma mentira: um crescimento falso, fundado em uma dívida que um dia explodiu. Se lembrarmos que a década de 1960 foi de crise política e ditadura, constatamos que o clima otimista simplesmente desapareceu ou nunca existiu na memória das pessoas. A última vez que ouvimos um discurso positivo sobre o Brasil, ele foi pronunciado pelo regime Militar nos anos 1970, e descobrimos em seguida que era uma mentira.

A escolha do Rio de Janeiro pode representar uma mudança de paradigma na forma como enxergamos o Brasil. Claro, rejeitamos qualquer otimismo inocente (pois a miséria, a violência e a disseminação de práticas políticas arcaicas batem à porta). Porém, ao mesmo tempo, desconfiamos que o pessimismo pode ser paralisante. Acho que finalmente chegou a hora do não-negativismo.


10 comentários:

Alfafa disse...

Otimo texto Gian.
Às vezes me pego tentando encontrar respostas para essa minha aficção pelo futebol, qual magia será que está por trás desse esporte? Talvez no ápice da minha ignorância julgo acreditar que esse é, sem sombra de duvidas, o esporte mais nobre que já existiu. Já lí algo sobre os soldados nas trincheiras da primeira guerra mundial darem uma pausa nos combates para celebrarem a noite de natal e depois disputatarem uma partida de futebol. É algo incrivel.
Também fico feliz com a escolha do Rio de Janeiro como sede dos jogos olimpicos,o fato de acolhermos dois eventos de expressão mundial em seguida, Copa do Mundo e Olimpiadas, fará que os olhos do mundo se vire ao Brasil, é uma forma de mostrar que o brasileiro também é capaz de transformar, positivamente, o ambiente no qual vive.

Daisy K. disse...

No começo não estava tão hm, feliz com a idéia do Rio sediar as Olimpíadas, porém como disse, talvez seja com isso que o Governo faça algo pela cidade, melhorando-a.

Mas fico com aquela dúvida se eles não vão ter simplesmente colocado a violência e problemas urbanos "embaixo do tapete", dando um jeitinho pra dar tudo certo no momento pra depois a "poeira" voltar a acumular sobre o chão brasileiro.

Will disse...

Nao tenho esse otimismo, acho q as olimpiadas aki serao ate q bonitinhas e só.
Oq eles vao fazer com as favelas? Ou derrubam e constroem moradias populares, ou colocam o exercito pra segurar o povo no morro. Duvido q eles nao tentem segurar o povo nas falevas - é claro q com a cidade bombando d turista , ladroes irao fazer a festa(ou tentar).
Esses ginásios e centros olimpicos q vao construir, pra quem fica depois? Os ginásios eu duvido q vire algo pra populaçao carene usar e os centros olimpicos d luxo jamais irao virar moradias populares assim como virou em Barcelona(acho q foi em lah, nao lembro).
To ate vendo - Um RJ pós-olimpiada quebrado, cheio d dívidas, denuncias d super-faturamento, q foram mascaradas pra nao estagar a festa durante o evento, reveladas e eu cantando a musiquinha "I've told you so" . =)
Eu nao sou otimista hehehehe. Pra deixar bem claro tb, oBrasil nao ganha a Copa ano q vem =]

Renata Zortéa disse...

Tenho que confessar que ainda não me animei com a idéia das olimpíadas no Brasil, pra mim, o não negativismo é quase impossível.

Lembro-me do Pan, de ter ido assistir meus amigos que conseguiram se classificar no tiro com arco, contudo me lembro também das obras superfaturadas e dos políticos dizendo "eu não sabia de nada". Acredito que o Brasil ainda não está preparado para estes eventos de tão grande notoriedade, sei que isso faria com que os olhos do mundo se voltassem para nós, mas o que temos para mostrar? Uma calmaria ilusória e um carnaval feito de garotas seminuas?!

Vários problemas (ou parte deles) deviram ser resolvidos antes de tudo isso, pelo menos a parte de habitação, e a prostituição de menores, que vai ganhar horrores com a vinda de tantos estrangeiros pra cá...

Pedro Gallo disse...

Gian, obrigado por mostrar esse outro ponto da discussão, que até agora ninguém tinha abordado. Realmente, parece que de uns tempos pra cá o brasileiro tem orgulho de dizer que o é. Paramos de nos ver como o país liderado por um "analfabeto" para sermos o país liderado pelo "cara".

Gian disse...

Alfafa: acho que muito mais importante que "os olhos do mundo se virarem para o Brasil" é o Brasil perceber que pode estar sendo olhado. Veja essa lambança nos morros do Rio de Janeiro nos últimos dias. Até outro dia, a reação seria, "Ah, que se dane, é guerra de traficante mesmo, que morram todos. E se tiver bala perdida, problema de quem mora no morro". Hoje, o discurso é "Meu deeeeus, o que o mundo vai pensar ! Precisamos fazer alguma coisa !"

Daisy: certamente os problemas não serão resolvidos, muita coisa vai pra abixo do tapete. Mas, no texto, tentei ver a coisa em um plano mais geral.

Will: O que seria de nós sem seus comentários cáusticos ? Continue assim, de alguma forma vc nos ajuda a manter a nossa sanidade. Nem que seja ao preço da sua, ho ho ho !


Re: Acho que nunca vai ter isso de ter todos os problemas resolvidos. Também acho que faz parte do não-negativismo assumir que os problemas, sim, continuarão existindo. O meu ponto é que uma operação urbana que tenha como desculpa Jogos Olímpicos, já é um avanço, tal o tamanho dessa degradação.

Pedro: Curioso isso. O termo "analfabeto" é pessimismo (expressão do velho paradigma). Já o termo "o cara", vai para o outro extremo, do otimismo no estilo oba-oba. O Lula não é burro e também não e o cara. O Brasil não é um país que não tem jeito, mas também não é a super-potência do século XXI. É no espaço criado a partir dessa dupla negação que o país vai se transformar em algo.

Bruno disse...

gian,
nao acho que oq falta é a reflexao sobre o meio urbano:
creio que o pensar na cidade já é feito há muito tempo, temos um cartel de competentes economistas, arquitetos, geografos...que, diferentemente das atuais (atuais?) politicas publicas voltadas a construçao de novas pistas para novos carros e futuros e mais caoticos congestionamentos, pensam na rede urbana com sensatez (aperfeiçoamento do transporte coletivo, reabitaçao do centro etc...). Nao creio que, com as olimpiadas, o estado deixe em segundo plano os interesses privados, alias, o projeto das olimpiadas no rio, por exemplo, concentra sua infraestrutura em sua maioria na zona sul, deslocando a atençao para os pontos nobres da cidade e fugindo dos problemas estruturais da parte norte (o "encarar os problemas" toca nesse ponto) . enquanto o Estado privilegiar os interesses particulares (que vao contra, na maioria dos casos, o bem comum), nao haverá como colocar em pratica planos de reestruturaçao urbana realmente eficientes. Gian, vc é um provocador com esse otimismo!
(saudades da aula sobre o blues)

Pedro Barreto disse...

Negativismo é o que me perturba o tempo todo. E ainda mais agora que faço Direito na USP e já não tenho mais aquela felicidade estúpida de calouro. Tem muito tristeza por lá, mas mesmo assim não se pode deixar levar por um modo suicida. E eis que curioso: enquanto nossos amigos discutem a zetética das normas segundo uma visão kelseniana, ao lado há uma Igreja que ao mesmo tenta ajudar essas pessoas... Humanismo e Iluminismo em crise? Desde sempre. Por que a felicidade não se alcança, o negativismo prepondera? Eu estou lendo Gustavo Corção demais... O Desconcêrto do mundo...

Milton disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Milton disse...

"não deixa de ser irônico observar que jogadores de futebol semi-alfabetizados e nada intelectualizados sejam dotados de uma capacidade de processamento de informação (articulando espaço, tempo, movimento) absolutamente surpreendente."

na verdade, não deixa de ser irônico que o senhor desconsidere (ou desconheça) outros tipos de inteligências, que não apenas a lógico-racional, como, no caso, a inteligência corporal destes "jogadores semi-analfabetos".