sexta-feira, 9 de julho de 2010

Viagem infinita




Costumo chamar de “trama da existência” toda aquela teia que construímos no cotidiano e da qual fazem parte desde o nosso de universo de relações pessoais até o espaço por onde circulamos habitualmente. Enredar-se na teia da existência significa estar cercado de um universo de referências seguras, dentro do qual podemos efetivamente habitar.

Chamo atenção para a semelhança entre o verbo habitar e as palavras habitual, hábitos. É na nossa trama da existência que praticamos os hábitos que resultam na criação de nossa habitação, o local onde nos sentimos seguros. O filósofo Martin Heidegger vai além, lembrando da semelhança que existe no alemão entre o tempo verbal bin (de ich bin, eu sou) e o verbo bauen (construir). Parte daí para apontar que a maneira como somos é a maneira como construímos o espaço em que habitamos. As múltiplas referências à etimologia das palavras alemãs e gregas – tão comum em Heidegger, e de que lanço mão tão frequentemente no blog – devem ser vistas como uma forma de aproximação da linguagem primitiva (ou Ursprache) indo-européia, ou seja, do sentido original das coisas no momento mesmo em que essas coisas começaram a ser nomeadas. Da sua essência, diria o eremita da Floresta Negra.

Dessa forma, através da trama da existência construímos o nosso ser. Mas isso não basta. Quantas vezes não desejamos simplesmente sumir, desaparecer desse entorno ? Se por um lado a teia que nos envolve é garantia de segurança, por outro deixa muito pouco a ser descoberto, por mais que deixemos certos espaços a serem explorados como se fossem novos. “Hoje vou sair com uma pessoa diferente” ou “Amanhã vou para a churrasco em um bairro novo” ainda fazem parte dessa teia, constituindo uma brecha antecipada, com a finalidade de evitar o tédio puro e simples. (Mas quantas pessoas não se negam mesmo essas pequenas aberturas, permanecendo seguramente instaladas em seu tédio cotidiano ?).

Daí a necessidade da viagem, palavra da qual tiram-se dois significados possíveis. Em primeiro lugar existe a viagem física, o deslocamento para além dos espaços habituais. Além disso, existe a viagem enquanto operação do pensamento, que é experiência bastante comum: quantas vezes não percebemos que uma pessoa “está viajando”, ou seja, completamente descolada da realidade que a cerca ?

Chego ao meu ponto de reflexão. Só vejo a viagem física como ruptura da teia da existência quando ela é feita dentro de uma certa radicalidade, que inclui transformá-la também em experiência do pensamento. “Descer para o litoral no fim de semana” ou “Ir para Campos com os amigos” podem ser aventuras válidas, mas dificilmente constituem uma experiência que leve para além do conhecido ou que rompa com a teia da existência.

Como transformar a vigem física na experiência transcendente do pensamento ? Talvez partindo da própria especificidade de atravessar um espaço de dimensões tão grandes que implicam em uma redefinição da relação com o tempo. Durante a longa viagem, dentro do espaço sem graça do avião ou do ônibus, abre-se a possibilidade para um momento de introspecção. Além disso, na chegada, o contato com hábitos culturais diferentes (língua, alimentação, clima) exige uma redefinição do habitual em cada um, com Heidegger nos lembrando da importância de habitar na constituição do ser. Perdemos o nosso chão, devemos nos redescobrir, e daí vem o medo, como bem apontou Camus:

O que dá valor à viagem é o medo. É o fato de que, num certo momento quando estamos tão longe de nosso país, somos tomados por um vago receio e pelo desejo instintivo de voltar à proteção de velhos hábitos. Nesse momento, atravessamos uma cascata de luz e ali está a eternidade. Viajar é uma ciência grande e grave que nos traz de volta a nós mesmos.

Finalmente, a viagem se transforma em experiência transcendente quando, antes da partida, antecipamos mentalmente sua realização e, após a chegada, reconstruímos cada etapa com ajuda da memória. Nesses momentos, viajar em grupo ganha significado: cada um antecipa e, sobretudo, reconstrói a viagem através de seu próprio olhar. A troca das experiêncais, o contato com a multiplicidade dos olhares e narrativas de quem esteve junto viajando, permite que cada viagem seja repetida mil vezes, com a transformação das experiências vividas em algo novo cada vez que elas se repetem em nossa mente ou em alegres colóquios com os companheiros de viagem.

Aos que partem de férias, boas viagens.

6 comentários:

Lucas Bispo disse...

Concordo com o que diz no texto. Meus pais adoram ir à praia, todo fim de semana e feriado que a viagem seja possivel de se realizar nós vamos à praia (aliás,é onde estou esse feriado), neste caso a sensação de viagem não é a de estar viajando, o apartamento da praia é a extensão da minha casa, eu me conheço aqui e não preciso me redescobrir neste local. Diferentemente é viajar para outro estado (viajarei para Sergipe) ou pais (apesar de nunca ter saido do Brasil), há toda uma sensação de descoberta e como você diz, de construção. Quando viajo seja no carro, ou no avião, fico pensando muito no que deixei em casa (no sentido amplo de local de origem) e, por tabela, no que eu sou. Lembrei do filme e livro Na Natureza Selvagem ao ler seu post, ele diz exatamante isto. Quando assisti ao filme também viajei, mas nem precisei sair do sofá. Viajei lendo esse texto também, viajei assistindo à aula sobre segregação...não no sentindo de não prestar atenção, rs, mas no sentindo de entender um pouco mais quem eu sou, no sentindo da construção. Boas férias professor e obrigado pela aula de quinta.

Honey and Milk disse...

Sabe aquela frase bem manjada: "Façam, todos os dias, uma coisa que te da medo" ?!
Foi exatamente dela que eu me lembrei quando li seu post!
E viajar me transmite essa sensação de frio na barriga,medo e curiosidade que me faz sentir livre. Livre de toda essa "teia de existência" que por muitas vezes me inibe e me prende numa realidade nem sempre agradável.
E é por isso que eu vou morar num apartamento ovo e gastar o meu dinheiro dando voltas pelo mundo =)

Beeijoo

ps: Te quiero bandida!
( não lembro se era essa a frase que eu tinha prometido! hahaha )

Anônimo disse...

Neste momento estou em Caraguatasoool (MUITO sol, por sinal). E o interessante é que a minha sensação foi exatamente oposta à do Lucas Bispo.
Aqui, eu me sinto em casa ainda, afinal, foi onde morei 10 anos da minha vida. Essa casa é mais do que uma extensão da minha casa em São Paulo. Acho até que devo dizer que a minha casa em São Paulo é que é a extensão da minha verdadeira casa, em Caraguá. Mas, ainda assim, houve uma certa redescoberta de mim mesma aqui, principalmente no primeiro dia, quando cheguei: acordei, resolvi ir à praia de BICICLETA (antigamente eu jamais faria isso; olha a preguiça!) e passear pelo condomínio olhando o céu, as árvores, respirando bem o ar e prestando atenção em tudo o que antes era insignificante pra mim. Chegando na praia, fiquei instalada perto das pedras (aquelas que eu e meus irmãos - meio loucos - escalávamos quando éramos muito pequenos, deixando minha mãe de cabelos em pé por conta do perigo em que nos metíamos) e comecei a ver o mar, o céu, o horizonte com saudades. Saudade de tudo o que vivi nesse espaço, que hoje é outro pra mim. Ou melhor, o espaço é o mesmo, eu é que sou outra. Da mesma forma, Gian, que você tem visitado Ouro Preto por 10 anos, e a cada visita há uma sensação nova, uma redescoberta.

Lucas disse...

E quando não temos bem definido, quem somos?Quando nossa teia da existência é um enaranhado de vazio e contradições?Na possibilidade de alguém que não se encaixa,que não consegue definir seu espaço seguro, quem não construiu um espaço que lhe dê confira algum resquício de personalidade?Como resolver um problema da exsitência sem apelar para o argumento dela por ela mesma?

Erica Watanabe disse...

Oi Gian, gostei muito do texto. Também gostei da explicação de Camus - concordo plenamente com a ideia do medo ser o limite entre o apego ao conhecido e a eternidade. E, seguindo esse pensamento, acho que a viagem solitária ganha uma dimensão ainda maior nesse sentido.

Li Into the Wild (J. Krakauer) outro dia e tem um trecho em que ele conta sobre quando ele escalou uma montanha no Alasca, sozinho. Ele diz que, quando só, o meio se torna infinitamente mais assustador, inóspito e misterioso. O medo te engole, te tira completamente do senso de normalidade e familiaridade.

Eu percebo isso quando viajo e é por isso que sempre prefiro viajar sozinha. O frio na barriga é sempre maior. A sensação de atravessar a cascata de luz e de se reencontrar no final é muito mais profunda quando se tem essa falta de amparo total.

E também concordo que viajar nos traz de volta a nós mesmos. A gente aprende a se enxergar melhor quando as diferenças em relação ao outro são mais óbvias.

Erica Watanabe disse...

Ah, Traveling Girl sou eu, Erica Watanabe.