terça-feira, 7 de setembro de 2010

Pas de faune ce soir



Não sei exatamente que horas eram, mas eu estava no terraço quando começou a chover no fim de semana. A chuva começou fraca e mesmo o vento não chegava a perturbar, a temperatura apenas começava a cair naquela hora. Notei que as árvores estavam esquisitas: depois da longa seca, as folhas – algumas amareladas – estavam apenas frouxamente presas em seus cabos e agitavam-se de forma singular, pois o vento não tinha força suficiente nem para dobrar os galhos, nem para arrancá-las. Nas árvores imóveis, apenas folhas balançavam, como que rodopiando em torno de seus eixos, fazendo rápidos movimentos giratórios. Dessa forma, as folhas, as árvores pareciam bastante alegres, é como se celebrassem a chegada da chuva depois de tanto tempo.

A imagem que me veio à cabeça, imediatamente, foi a de um ballet, com centenas de folhas-bailarinas se agitando em uma fremente coreografia. O insight veio em seguida: imaginei que talvez o homem tenha inventado a dança por mimese, copiando as árvores, as folhas das árvores em um vento de chuva. Não é difícil imaginar uma situação em que grupos humanos, coletores-caçadores, talvez já agricultores ou seja lá o que fossem, saindo de seus abrigos, felizes com a chuva e identificando no movimento das folhas a mesma alegria que sentiam. E imediatamente copiando esses movimentos com seus corpos.

[Interlúdio: “Consulte sempre um Antropólogo”, é um adesivo que jamais vi afixado em nenhum vidro de carro. Mas, que eles fazem falta às vezes fazem, e poderiam estar agora nos entretendo, a falar sobre coisas arquetípicas como danças-da-chuva e tudo mais. Um brinde a Jimmy Cliff-ord Geertz e seu estudo seminal sobre as brigas de galo na Jamaica.]

Seja como for, tive uma estranha epifania ao perceber que experimentava um sentimento idêntico ao de meus ancestrais neolíticos. Por um instante, tive o impulso de dançar com as árvores, no terraço mesmo, conforme a chuva começava a apertar. A vontade era de sair na chuva, fechar os olhos e deixar o corpo acompanhar o vento e o movimento das folhas, sentindo ao mesmo tempo o frio da água escorrendo pelo corpo. Seria um espetáculo bizarro diante das janelas dos vizinhos, mas estes, que se danem, a essa altura já viram de tudo.

Claro que não fiz nada disso, apenas voltei para o sofá e comecei a refletir sobre a dança, e tudo que ela tem de impensado e espontâneo. Distanciando-se de outras artes, a dança pode ser a mais irracional expressão estética humana, e nem por isso a menos bela ou autêntica. Na dança, não há necessariamente uma “moral” ou “mensagem” a ser passada, trata-se sobretudo de entrega, com tudo que isso traz de risco, de coragem, de vontade. A dança é exaltação dionisíaca, para usar o termo do velho Nietzsche, figura constante nestes alegres colóquios. Sabemos que duas das mais perigosas características de Nietzsche são escrever em aforismos e usar metáforas. Com os aforismos, tornou-se pop: todo mundo sempre tem uma ou duas de suas frasezinhas bem decoradas (e mal compreendidas) guardadas no bolso do colete para usar em uma culta mesa de bar. Com as metáforas, tornou-se mais pop ainda, com as pessoas adorando histórias sobre velhos eremitas que descem da montanha e saem gritando que deus morreu e outras coisas divertidas.

Pois o andarilho de Sils-Maria frequentemente usava a metáfora da dança e, para ficar em seus mais rápidos e conhecidos aforismos, cito: “É necessário que o caos vos habite para que possa dar a luz a uma estrela bailarina” e “Só acreditaria em um deus que soubesse dançar”. Nos dois casos a dança surge como a metáfora da realização humana mais sublime, ou melhor, daquele tipo de realização que nos leva para além do humano.
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Para os interessados, a São Paulo Companhia de Dança apresentará nesse fim de semana um programa altamente promissor, incluindo o “Prélude à l’aprés-midi d’un faune”, de Debussy (que – lembremos – quando coreografado por Nijinsky em 1912 provocou um impacto semelhante ao que teria no ano seguinte a “Sagração da Primavera”, que tanto tenho citado por aí).

5 comentários:

Alê Bezerra disse...

Tive um pequeno déjà vu...

Lembrei de uma madrugada de Janeiro de 2009...
Uma garoa. Um grupo de douuuuze pessoas. Seus sobretudos. Volta do Café du Mogador. Uma pessoa levemente alterada pelo álcool. Placas espalhadas pela rua... E uma música em mente: Singing in the rain!
Extremamente sugestivo...
A somatória, álcool + placas + garoas, resultou em uma cena inesquecível, de poucos segundos, com direito à batida de pernas no ar...
Só terminando com uma sessão de risadas na porta do no. 30 da Rua Joubert.

(Desabafo meio esquizofrênico, não? Mas... O que vale é a intenção!)

Unknown disse...

Gianpaolo
querido,

por mais desfavorável à doce lembrança e à grata menção aos antropólogos - e mais ainda à locução e ao lance de palavras - eis a participação ativa - e como esse papel ativo me cai bem! - da antropóloga de plantão: Jimmy Cliff-ord Geertz buscava inspiração na Indonésia, não na Jamaica. O sujeito correu bastante atrás das brigas de galo balinesas. Enfim, cada um com seu fetiche...



E eis uma nota de encorajamento aos possíveis aspirantes à antropólogos profissionais:

a exemplo do citado Geertz, a gente também pode correr atrás do que for durante a formação e ainda consegue uma carreira de razoável respeito na área! Eu, por exemplo, sempre corri atrás de sujeitos vestidos de múmia nas festas à fantasia que freqüentei durante o mestrado, sou um fenômeno de downloads na biblioteca de teses/dissertações e estou publicando um livro (depois de três convites de editoras - uma delas, estrangeira).

Hahaha!!!

Honey and Milk disse...

Só imagino a cena de você rodopiando que nem uma folha de arvore no meio da rua!

Sucessooo

Lucas Bispo disse...

Gian, já que esse texto novo é uma extensão da aula de hoje...gostaria de fazer uma observação, talvez meio óbvia para muitos, mas que apenas entendi agora. Quando tocou Assim Falou Zaratustra foi impossivel não lembrar da clássica cena do macaco de 2001, que se encontra justamente em um ato do filme que chama A Aurora do Homem. Um pouco antes dessa cena o macaco descobre como se defender atráves de um osso...podemos considerar o surgimento da violência, ainda que em defesa própria. Impossivel não relacionar isso do filme com a música e o bale do Igor (que apresentam uma sociedade semelhante a do filme, ainda que sjam já humanos) e, principalmente, o fato de a guerra ser o ponto de transformação na época, tal como no filme que a defesa por parte da violência é o momento que ocorre a elipse e vemos já o homem com toda sua tecnologia espacial.
Acho que viajei um pouco nas idéias e acho que elas ficaram meio confusas, mas é isso...

Gian disse...

Alê: esse Marcílio, viu... sempre dando trabalho.

Minha querida Japonaise: eu sabia que a referência a antropólogos não iria passar impune. Tinha certeza. Obrigado pela resposta.

H&M: Não foi na rua, né ?

Lucas: a lembrança de 2001 foi muito bem vinda.